Leonardo Belinelli[1]
1 de abril de 2024
Este texto inicia a série especial do Boletim Lua Nova sobre os 60 anos do Golpe Cívico-militar de 1964. Confira os demais textos da série aqui.
Como se sabe, efemérides estimulam reflexões sobre os vínculos entre o passado e o presente. De maneira geral, procura-se, como exercício intelectual e político, indagar o que há de passado no presente, sem que se esqueça do movimento contrário – isto é, como o presente aparece à luz das lutas e dos projetos que ficaram para trás. Assim, o passado se torna presente, interrogando-o e interrogando-se, ampliando a própria maneira como o presente é visto.
Em se tratando do golpe de 1964, tais movimentos já aconteceram nos demais “aniversários” ocorridos na Nova República, momentos em que interpretações historiográficas renovadas surgiram e antigos debates foram retomados. Porém, há algo particular nesse caso que merece nossa atenção. Mariana Joffily (2018) observa que, à medida que o período democrático avançou, o debate sobre o golpe de 1964 se tornou mais intenso.
Em 1994, poucas obras foram produzidas a respeito. No plano acadêmico, além da tese de doutorado de Argelina Cheibub Figueiredo, publicada em 1993 com o sugestivo título Democracia ou reformas?, destacou-se nos 21 anos de regime militar (FGV), organizado por Gláucio Soares e Maria Celina D’Araújo, e as discussões que deram origem à coletânea 1964, visões críticas do golpe: democracia e reformas no populismo (Unicamp), organizada por Caio Navarro de Toledo e só publicada três anos depois. Em tom memorialístico, e de mais ampla circulação, ganhou destaque Trinta anos esta noite (Companhia das Letras), de Paulo Francis.
Eduardo Santos e Vágner Camilo Alves (2014, cf. 145) recordam que, ainda que minoritários, naquela altura havia grupos de pressão política formados por militares, como o “Guararapes” e o “Araucária”, que continuavam a bradar pelo golpe. Outros continuavam a atuar em órgãos próprios de imprensa em defesa dos valores militares. Em 1995, e tendo Emílio Garrastazu Médici como patrono, surgiu o grupo “Terrorismo Nunca Mais” (Ternuma), nítida resposta ao grupo “Tortura Nunca Mais”. Não custa lembrar que, em 1993, o então deputado federal Jair Bolsonaro defendeu o fechamento do Congresso, a reinstalação do regime de exceção e a morte de Fernando Henrique Cardoso, ocupante da cadeira presidencial àquela altura (Filho, 2019). Ainda assim, a sensação era a de que se tratava de grupos residuais, minoritários.
Com alguma surpresa, Daniel Piza anotava em 2004: “Em comparação com os 30 anos do golpe, a diferença é gritante” (Piza, 2014). O jornalista destacava “pelo menos 13 livros novos”, alguns deles de perfil biográfico, como Jango, um perfil (Globo), de Marco Antônio Villa, Castello: a marcha para ditadura (Companhia das Letras), de Lira Neto; outros de memórias de militantes, como Trajetória rebelde (Cortez), de Pedro Viegas, e O baú do guerrilheiro (Record), de Ottoni Fernandes Júnior. Em registro acadêmico, houve a publicação de Além do golpe (Record), do historiador Carlos Fico, dedicado à revisão das controvérsias sobre o golpe. Deve-se lembrar que, ainda em 2003, Élio Gaspari já havia publicado os dois primeiros volumes de sua série sobre a ditadura militar, a saber A ditadura envergonhada e A ditadura escancarada, ambos pela Companhia das Letras. Entre 1994 a 2004, o que mudou?
Segundo Joffily (2018, p.223), a distância temporal, a disponibilização de arquivos, as transformações internas às disciplinas da História, bem como a primeira eleição presidencial de Lula (PT), foram fatores decisivos. Sem dúvida, o passado era, cada vez mais, visto como superado, ou, ao menos, em processo de superação. Ainda que já houvesse ruídos a respeito das orientações do governo petista – lembremos, por exemplo, das polêmicas em torno da Reforma previdenciária de 2003 – e ceticismo sobre as possibilidades de se completar a “formação nacional”, bem expresso por Francisco de Oliveira em O ornitorrinco (2003), havia pouca dúvida de que a política brasileira atingira um nível de estabilidade, a princípio com a exclusão de fato, mas não de direito, dos setores alinhados ao extremismo conservador. Afinal, que maior prova haveria de que “as instituições funcionavam” do que a eleição e a posse de um partido organizado por perseguidos pelo regime de 1964?
O júbilo com a civilizada transmissão da faixa presidencial entre Fernando Henrique Cardoso e Lula não excluía, no entanto, algum grau de mal-estar, como se certas fantasmagorias, não inteiramente bem identificadas, permanecessem circulando ao seu redor. Mesmo um filósofo rigoroso e lógico como José Arthur Giannotti não deixou de manifestar o sintoma. Ao resenhar – em 2003 – os dois primeiros volumes da série de Gaspari dedicada à ditadura militar, Giannotti registrava que “não há dúvida de que a democracia está razoavelmente implantada no Brasil, mas […] é como se ainda residisse no horizonte de nossas experiências a suspeita de que sempre é possível o ataque de uma burrice abissal a ameaçar as instituições democráticas” (Giannotti, 2003).
Ora, não é difícil perceber uma tensão na sua argumentação. Não havia dúvida de que o país se tornou razoavelmente democrático, mas havia certo mal-estar nessa certeza. À medida que o lulismo progredia, atingindo seu apogeu entre 2006 e 2010 – promovendo um deslocamento de bases sociais do voto e, pela primeira vez, alinhando a parcela de renda mais baixa da população brasileira a uma figura de esquerda -, o mal-estar também crescia. No interior da esquerda, aproximava-se a ideia de que seria preciso dar um passo adiante e, nas novas condições, passar o país à limpo.
Uma tentativa de elaboração a respeito se deu em evento na Universidade de São Paulo (USP) em 2008, com o título “O que resta da ditadura?”, depois transformado em livro com a organização de Edson Teles e Vladimir Safatle (2010). Cabe recordar que, em 17 de fevereiro do ano seguinte, a Folha de São Paulo publicaria um editorial em que qualificava o regime de 1964 como “ditabranda” (Folha de São Paulo, 2009). Entre os setores liberais, pairava no ar o receio da “venezuelização” do Brasil, supostamente entregue ao predomínio absoluto da popularidade e da habilidade política lulista.
Em intervenção no debate à época, Paulo Arantes era claro: “O fato é que ainda não acusamos suficientemente o golpe. Pelo menos não o acusamos na sua medida certa, a presença continuada de uma ruptura irreversível de época.” (ARANTES, 2010, p.206). A sociedade formada durante o regime de 1964 e o controle militar sobre a transição “lenta, gradual e segura” tornaram-se fatores fundamentais para explicar as limitações ao processo de democratização do país. Setores cada vez mais numerosos da sociedade civil organizada passaram a perceber que, em verdade, os vitoriosos da transição foram os militares, nada responsabilizados pelos 21 anos de violações.
O mal-estar ampliou-se e atingiu novo patamar com os 50 anos do golpe de 1964. Dilma Rousseff, a primeira mulher a se tornar presidente do país e portadora de passado guerrilheiro, criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) logo no seu primeiro ano de mandato, em 2011. A terceira vitória seguida do PT no pleito presidencial parecia dar força, por um lado, à remodelação do modelo econômico em favor de uma orientação industrializante e, ao mesmo tempo, ao enfrentamento dos vícios antirrepublicanos que assolavam o país, inclusive fantasmas do passado que, cutucados, encarnaram. (Singer, 2018)
Pela primeira vez, as violações aos direitos humanos pelo Estado brasileiro foram publicamente expostas e debatidas. Novas questões foram colocadas em debate, como a relação entre o regime militar e setores da sociedade civil. Diante dos avanços conquistados, os militares e simpatizantes do regime investigado reagiram. A verdade sufocada (Brilhante Ustra), livro de memórias publicado pelo coronel torturador Carlos Brilhante Ustra em 2006, tornou-se uma espécie de bússola para parte do segmento que, após a eclosão de junho de 2013, começou a organizar a nova, e extrema, direita no país. Caberia imaginar se foi nessa altura que foi inaugurado um novo momento ideológico da política brasileira, marcado pela disputa política imediata dos sentidos da memória da ditadura militar. Noutras palavras, as disputas pelo passado e pelo presente parecem não apenas terem se aproximado, mas se fundido, como revelou o grotesco voto de Jair Bolsonaro pelo impeachment de Dilma Rousseff. Fundi-las foi, sem dúvida, uma das façanhas do capitão reformado do Exército. Sob a nebulosa do meio século do recesso democrático, o país entrou numa nova temporalidade política e retrocedeu em diversos quadrantes.
Chegamos a 2024 em um cenário em que se combinam continuidades e mudanças em relação ao momento anterior. No plano das continuidades, é patente a força organizativa adquirida pelo um terço da população alinhada à extrema direita. Por outro lado, a disposição do Judiciário e de setores organizados da sociedade civil em punir a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 traz bons augúrios para a democracia. Encurralado, o ex-presidente pediu, em público, uma anistia para si e seus asseclas – numa espécie de repetição farsesca da Lei de 1979.
Pensava-se que deveríamos acertars as contas com o passado para, em seguida, nos conciliarmos com um presente mais justo e democrático. Talvez se esteja abrindo uma janela de oportunidade que permita pensar o oposto: a partir do presente, voltar nossos olhos para o passado e elaborá-lo segundo os princípios da justiça democrática, eliminando privilégios e trazendo à luz, de uma vez por todas, os elementos obscuros sobre os quais parcelas inteiras de grupos e classes sociais brasileiras se apoiaram injustamente em detrimento de outros, perseguidos e explorados. Por suposta ordem de Lula, o governo recuou diante dos melindres militares, correndo-se o risco, como bem alertou Heloísa Starling, de manter a tutela dos fardados sobre a República (Haddad, 2024). Realismo em excesso vira apologia do real, como certa vez observou Gildo Marçal Brandão. Sem a audácia de aproveitar esse momento histórico propício para o acerto de contas definitivo, corremos o risco de que esses fantasmas permaneçam aí e a história do golpe de 1964 continue sendo a história do nosso presente.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
BIBLIOGRAFIA:
ARANTES, Paulo. 1964, o ano que não terminou. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
FILHO, William Helal. Há 20 anos, Bolsonaro defendeu fechamento do Congresso e a morte do então presidente, Fernando Henrique. Blog do Acervo, O Globo, 24 de maio de 2019. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/ha-20-anos-bolsonaro-defendeu-fechamento-do-congresso-e-morte-do-entao-presidente-fernando-henrique-cardoso.html
FOLHA DE SÃO PAULO. Limites a Chávez. Folha de São Paulo, 17 de fevereiro de 2009. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm
GIANNOTTI, José Arthur. Elio Gaspari faz história. Pesquisa FAPESP, edição 86, abril de 2003. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/a-ditadura-envergonhada-e-a-ditadura-escancarada/
HADDAD, Naief. Veto de Lula à memória de 1964 mantém tutela militar sobre a República, diz historiadora. Folha de São Paulo, 24 de março de 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/03/veto-de-lula-a-memoria-de-1964-mantem-tutela-militar-sobre-a-republica-diz-historiadora.shtml
JOFFILY, Mariana. Aniversários do golpe de 1964: debates historiográficos, implicações políticas. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 204 – 251, jan./mar. 2018.
PIZA, Daniel. Nos livros, os muitos golpes. O Estado de São Paulo, 31 de março de 2014. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/e-noticias/carlos-heitor-cony-25265/
SANTOS, Eduardo Heleno de Jesus e ALVES, Vágner Camilo. Os grupos de pressão formados por militares da reserva e o pensamento anticomunista. Mediações, Londrina, V. 19, n. 1, p. 135-150, jan.-jun. 2014.
SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
[1] Professor do Departamento de Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade (DDAS) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Referência imagética: Antecedentes do Golpe de 1964, Sindicato dos metalúrgicos, 26 de março de 1964, Correio da Manhã (Domínio público / Acervo Arquivo Nacional). Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Antecedentes_do_Golpe_de_1964.tif>. Acesso em 21 mar 2024.