Caroline Silveira Bauer1
06 de maio de 2024
Este texto faz parte de uma série especial do Boletim Lua Nova sobre os 60 anos do Golpe Civil-militar de 1964. Confira os demais textos da série aqui.
Este texto apresenta uma breve reflexão sobre a negativa do governo Lula III em rememorar os 60 anos do golpe civil-militar de 1964, que implantou uma ditadura e um regime de terrorismo de Estado. Esta atitude, que surpreendeu a muitas pessoas depois da gestão presidencial anterior legitimar discursos negacionistas sobre o período, pode ser considerada um fomento a uma política de esquecimento. A reflexão se divide em duas partes: em um primeiro momento, farei algumas considerações sobre as potencialidades de atos de rememoração como o sexagésimo aniversário do golpe; depois, apresentarei a argumentação da existência de uma política de esquecimento, alimentada pela lógica da conciliação, examinando a decisão tomada pelo governo federal.
Comemorações/Rememorações
“Datas redondas”, como os 60 anos do golpe civil-militar de 1964, são momentos ativadores de memórias e versões sobre o período. São episódios em que se observa a ação do chamado “dever de memória”, um imperativo moral de não-esquecimento e não-repetição a partir do aprendizado com a história, ainda que se possa questionar o potencial que essa aprendizagem realmente possua. Por fim, são ocasiões em que se transmite memórias por meio de testemunhos, uma atividade extremamente ética e política (GAGNEBIN, 1998).
As datas comemorativas ou rememorativas são, portanto, um campo de análise privilegiado para observar a memória como uma batalha, disputa, negociação, como um território de conflitos. Nesse espaço ocorre a ressignificação do passado a partir de objetivos do presente (SILVA, 2002, p. 432). Segundo Helenice Silva, “[…] no processo comemorativo, um duplo movimento parece configurar-se. Ele consiste em retirar o acontecimento do passado para penetrá-lo nas realidades e nas questões do presente, criando a contemporaneidade e abolindo o tempo e a distância” (Ibid., p. 436).
Em função dos usos do passado que ocorrem em datas redondas, é provável que observemos diferentes manifestações memoriais sobre a ditadura, algumas em defesa do período, outras contrárias e críticas. É claro, existem muito mais do que apenas duas memórias sobre a ditadura; o que gostaria de chamar a atenção é para o fato de que talvez nunca consigamos estabelecer uma “memória definitiva” sobre o período. Isto porque as pessoas vivenciaram a ditadura de formas muito diferentes, e a memória traz consigo essas marcas da experiência.
O passado se torna presente em rituais públicos e, desta forma, sentidos e significados do passado são interrogados, se construindo e reconstruindo as memórias do passado, de acordo com os atores sociais que realizam essas operações de recordar e esquecer (JELÍN, 2004).
Durante a vigência da ditadura, os aniversários do golpe eram lembrados como eventos comemorativos e de propaganda, e a rememoração era monopolizada pelas Forças Armadas e seus apoiadores civis. Já na democracia, os meses de março e abril se tornaram um espaço privilegiado para que as pessoas pudessem tornar pública suas memórias sobre a ditadura, memórias traumáticas que demoraram muito tempo para serem reconhecidas.
Portanto, essas memórias não são estáticas, mas mutáveis, passíveis de sofrer enquadramentos de memória diferentes, de acordo com as conjunturas em que são ativadas. As mesmas datas têm sentidos e significados diferentes para os diversos grupos sociais; e as memórias suscitadas estão impregnadas por questões relativas ao presente, e não necessariamente pelas lembranças dos acontecimentos, pois o passado é sempre pensado a partir do agora.
Política de esquecimento
A notícia de que o governo Lula III teria proibido as comemorações/rememorações dos 60 anos do golpe de 1964 começou a circular em meados de março de 2024, e pegou muitas pessoas de surpresa. Entretanto, em 31 de março de 2004, ou seja, durante a primeira gestão do presidente, havia indícios do relacionamento que seria mantido com as Forças Armadas. Na ocasião, o porta-voz da Presidência da República, André Singer, concedeu uma entrevista coletiva no Palácio do Planalto, sede do governo brasileiro, transmitindo a mensagem do presidente:
“Devemos olhar para 1964 como um episódio histórico encerrado. O povo brasileiro soube superar o autoritarismo e restabelecer a democracia no país. A nós corresponde lutar diariamente para consolidar e aperfeiçoar essa democracia reconquistada. Cabe, agora, aos historiadores fixar a justa memória dos acontecimentos e personagens daquele período.” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2004)
Ao transferir toda a competência para falar sobre a ditadura aos profissionais da história, o Estado omitia-se de elaborar políticas de memória e reparação em relação ao período. Protelava-se, uma vez mais, o enfrentamento em relação a esse passado e seu legado na democracia, algo que seria efetivado apenas anos mais tarde, com a Comissão Nacional da Verdade (2011-2014). Ao eximir-se em 2004 e em 2024, os governos Lula contribuíram para a promoção de uma política de esquecimento da ditadura.
Uma política de esquecimento não deixa de ser uma “política de memória”, algo que pode ser definido como uma ação deliberada, praticada por governos ou outros atores políticos, para gestar a memória coletiva, ou seja, preservar, transmitir e valorizar a lembrança de determinados aspectos do passado considerados particularmente significativos ou importantes. Uma política de esquecimento se caracterizaria pela omissão, que, por sua vez, promove a ideia de superação dos conflitos da ditadura civil-militar, permanecendo vigentes o processo de privatização da memória, que mantém a memória sobre o terrorismo de Estado restrita ao âmbito privado (VINYES, 2009).
Neste sentido, a ausência de iniciativas governamentais para pautar o debate público sobre a ditadura, reafirmando os compromissos éticos e morais e os valores democráticos, contribuiu para a constituição dessa política.
O fato do governo federal se eximir das discussões sobre o passado e se abster da responsabilidade sobre a ditadura é uma opção política que se crê benéfica e necessária para assegurar a “conciliação”. Os ex-presos e familiares de mortos e desaparecidos políticos, assim, sofrem uma inibição institucional de suas lutas, permanecendo atomizados, como se fossem as únicas vítimas do regime de terrorismo de Estado que fora implementado nos anos 1960. A sociedade, que se encontra ética, histórica e socialmente atingida por essa experiência, bem como pelos efeitos residuais da cultura do medo, não reconhece esse dano. O golpe e a ditadura tornam-se episódios esquecidos, inexistentes, silenciados.
Ao assumir o cargo da presidência da República em 2003, Lula “herdou” uma memória oficial sobre a experiência da ditadura civil-militar brasileira carente de aceitação, credibilidade e organização, que necessitava continuamente de um trabalho de sustentação (POLLAK, 1989, p. 9), porque apregoava que a ditadura era um assunto do passado, que imperava o princípio da conciliação e que trazer à discussão o assunto se tratava de atitude revanchista.
Essa memória oficial que se encontrava assentada na “ideologia da conciliação”, e, em consequência, interpretava qualquer questionamento em relação ao passado como revanchismo, passou a se tornar contraditória com o fato de que naquele momento, em 2004, “nenhuma pessoa, desde que minimamente informada e de boa fé, colocava em dúvida que a tortura foi sistematicamente utilizada pelas Forças Armadas brasileiras” (REIS FILHO, [s. d.]). Porém, o paradoxo de se conhecer os crimes cometidos pela ditadura militar e ao mesmo tempo sustentar a conciliação se mantém porque setores da sociedade brasileira, antigos apoiadores da ditadura, tentam, hoje, desvincular-se da imagem de colaboradores, representando-se como esmagados “por uma ditadura alheia a sua vontade, imposta, um corpo estranho […]” (Idem). Este deslocamento de sentido permitiu a perpetuação da impunidade e, ainda, a indisponibilidade dos arquivos da ditadura.
O ano de 2004 havia marcado uma diferença em relação às “datas redondas” anteriores. Foi o primeiro aniversário de 1964 ocorrido durante a gestão de um presidente que foi uma liderança operária presa durante a ditadura, em uma conjuntura que configurou novos marcos sociais da memória sobre a ditadura, pelas mudanças locais e internacionais em relação aos Direitos Humanos.
No caso mais recente, a proibição de comemorações/rememorações de 1964 adquire uma gravidade frente aos anos de legitimação dos discursos negacionistas da ditadura promovidos pelo bolsonarismo. Nesse sentido, a omissão se reveste de outros significados: perdeu-se a oportunidade de enfrentar as dimensões políticas da negação e seus efeitos extremamente perniciosos na construção de uma memória social sobre o período.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Verdade e memória do passado. Projeto História, São Paulo, n. 17, nov. 1998.
JELIN, Elizabeth. Introducción. In: JELIN, Elizabeth (comp.). Las conmemoraciones: las disputas en las fechas “infelices”. Madrid: Siglo XXI, 2002.
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, RJ, vol. 2, n. 3, p. 1989 p. 3-15.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretaria de Imprensa e Divulgação. Briefing do Porta-voz. 31 mar. 2004. Disponível em: http://www.info.planalto.gov.br/ Último acesso: 19 fev. 2010.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Os muitos véus da impunidade: sociedade, tortura e ditadura no Brasil. Disponível em: www.gramsci.org . Acesso em: 15 set. 2002.
SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História, 2002, v. 22, n. 44, p. 432.
VINYES, Ricard. La memoria del Estado. In: VINYES, Ricard (ed.). El Estado y la memoria: gobiernos y ciudadanos frente a los traumas de la historia. Barcelona: RBA, 2009.
Referência imagética: Pessoas em uma manifestação durante a ditadura militar no Brasil (Domínio público / Acervo Arquivo Nacional). Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Manifesta%C3%A7%C3%A3o_estudantil_contra_a_Ditadura_Militar_538.tif>. Acesso em 26 abr 2024.
- Caroline Silveira Bauer é professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integra o Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (Luppa). Bolsista do CNPQ. E-mail: caroline.bauer@ufrgs.br ↩︎