Texto originalmente publicado em dezembro de 1984 na Revista Lua Nova (vol.1 n.3).
Em alguma época de nossas vidas, quem sabe na escola, já ouvimos falar de Paulo Freire e seu famoso método de alfabetização. Os mais velhos ainda se lembram do furor que ele fez nos anos 60, inovando a concepção de alfabetização e de educação popular no Brasil. A proposta básica desse método era a educação pela conscientização política através da alfabetização. Ou, como ele prefere dizer, o ensino da palavra a partir da compreensão do mundo onde a palavra surgiu e existe.
Com o golpe militar, Paulo Freire teve de se exilar. Morou primeiro no Chile, onde, a convite do presidente Eduardo Frei, dirigiu com grande sucesso um programa de educação popular. Foi nessa época que ele escreveu suas obras mais conhecidas: Educação como prática de liberdade e A pedagogia do oprimido. Em 1970, mudou-se para Genebra, na Suíça, onde, a convite da UNESCO e como consultor do Conselho Mundial das Igrejas, fundou a IDAC (Instituição de Ação Cultural). Viveu em Genebra até 1979.
Com a anistia, Paulo Freire voltou e retomou seu trabalho de educador na PUC de São Paulo. O que mudou no seu pensamento nesses anos todos? Na sua opinião, quais são as prioridades para a educação no Brasil, hoje?
Marília Garcia e Edison Nunes, de LUA NOVA, foram ouvir o depoimento de Paulo Freire.
MARÍLIA — A experiência do exílio certamente mudou a sua visão do mundo e do Brasil. Como é que foi essa experiência?
PAULO — Indiscutivelmente, o exílio muda o exilado. E, em geral, a prática do exílio acrescenta sua própria existência. No momento em que chega à terra de empréstimo, o exilado ganha uma distância de seu contexto original, daquele pedaço de mundo que ele conheceu. E logo começa a viver essa ambiguidade: de um lado, está sendo desafiado por algo novo diante dele; de outro lado, ele está amarrado e querendo continuar amarrado ao que ele viveu. Essa distância que ele toma do seu país é, ao mesmo tempo, uma distância geográfica e uma distância no tempo. Esse é um dos riscos graves que o exilado corre. O risco de se perder num tempo que ele, emocionalmente, imobiliza.
Eu não poderia ser uma exceção. Nos dezesseis anos de exílio, em que eu vivi andarilhando pelo mundo, meu tempo se desdobrou em múltiplos espaços. E durante todo esse tempo eu tentei sempre caminhar muito curiosamente e, ao mesmo tempo, ser fiel às minhas marcas de brasileiro. E a Elza, minha mulher, esteve sempre junto comigo nesse aprendizado.
Mas nós não fizemos disso uma espécie de nacionalismo barato. Nada disso. Para nós, a maneira nossa de falar, o som da voz da gente, um certo jeitão de dizer as coisas, a insinuação numa reticência… tudo isso tinha a ver com a nossa identidade cultural, de família de classe média. Esse esforço todo da gente foi feito como um direito fundamental do ser que está distante do seu meio. Em certo sentido eu e a Elza aprendemos isso tudo e testemunhamos aos filhos mais jovens. E nós não podíamos permitir que essa relação, entre nós, fosse mediada pela nostalgia e virasse razão de enfermidade. Ela devia, pelo contrário, ser motivo de saúde.
Eu faço diferença entre saudade e nostalgia: saudade é exatamente a falta da presença. Saudade era a falta da minha rua, a falta das esquinas brasileiras, era a falta do céu, da cor do céu, da cor do chão, o chão quando chove, o chão quando não chove, da poeira que levanta no Nordeste quando a água cai em cima da areia, do gostinho que a chuva faz brotar, do verde, do orvalho da manhã, da água morna do mar… Eu não tinha por que reprimir essa saudade. E mesmo, para criar, eu precisava ter essa saudade comportada. Ela era razão de ser para mim.
Com isso a gente aprendeu uma coisa fundamental: jamais transformar a saudade numa enfermidade que nos acabasse. Senão, nós teríamos necessariamente de começar a ter raiva do lugar em que a gente estava, como se fosse ele o culpado de estarmos longe do nosso meio. Por isso eu nunca tive raiva dos diversos lugares e comecei a querer ter a eles também.
E foi no exílio, com a distância, com as viagens, que eu comecei um novo processo de aprendizado. Imaginas tu o que significa para mim, em matéria de aprendizagem, em matéria de emoção, chegar à índia e passar uma semana discutindo com um grupo de 25 educadores, que representavam diferentes Estados da índia, às vezes com 50 milhões de habitantes? Em torno de uma mesa, eu via aqueles homens discutindo algumas das sugestões, das proposições que eu faço da pedagogia, alguns com seus turbantes, outros sem, e em certo momento era como se eu me visse com um turbante também. No fundo eu era um outro Paulo Freire, um Paulo Freire reinventando na índia.
Isso tudo ensinou a mim, entre outras coisas, o dever de ser mais responsável, o dever de ser mais coerente, de brigar comigo mesmo para fazer coincidir, tanto quanto fosse possível, o meu discurso com a minha prática. Isso também me ensinou a humildade de, tendo de voltar ao Brasil um dia, não pretender chegar aqui pensando que eu podia simplesmente começar a querer ensinar aos que ficaram.
Por causa de quem, mesmo, foi possível que eu voltasse? Eu sempre digo: os exilados internos tornaram possível a volta dos exilados externos. Como pensar então que eu pudesse voltar e dizer aos jovens brasileiros — alguns dos quais nunca tinham me visto, nasceram até depois de eu ter saído —, como pensar em dizer a eles: “Como eu ia dizendo em 1963, o método Paulo Freire…”.
O único espaço em que eu podia fazer isso era o espaço da afetividade. A muitos amigos e amigas eu pus a mão no ombro, indo mansamente, gostosamente, e disse: “Como eu ia te dizendo em 1963, eu te quero muito”. Só nesse espaço é possível dizer isso.
MARÍLIA — E, especificamente através da educação, o que mudou? Ainda hoje, a prioridade para o Brasil seria um programa de alfabetização em 40 horas? Ou há outras prioridades?
PAULO — Nos anos 60, a demanda popular pelo direito de ler e escrever a palavra vinha no bojo de reivindicações maiores, que eram as reformas de base. E essa reivindicação vinha também através da experiência de uma presença mais intensa e mais visível das massas populares no processo político nacional. Meu trabalho, nessa época, era principalmente uma resposta à demanda que emergia nesse momento histórico em que a presença popular tinha um grande significado.
Mas, pela própria ambiguidade do populismo, a intensa presença popular fazia mal à democracia dos dominantes, que têm horror ao povo. No Brasil, é engraçado, as classes dominantes falam muito de democracia, mas, toda vez que o povo chega, atrapalha a democracia deles. E foi o meu trabalho, que tomava como ponto de partida uma leitura do real, com o povo, que deu exílio para mim.
Ao contrário do que pensa muita gente, que me critica ingenuamente, meu exílio não foi fruto da irracionalidade da direita, que via comunismo em tudo. Meu exílio foi fruto do meu trabalho que fazia a relação entre ver a realidade e ler a palavra e escrever. E, certamente, o fato de eu propor ao alfabetizando que ele começasse a compreender a ambiguidade de populismo, que fazia parte da sua realidade, não podia agradar a nenhuma classe dominante. Foi isso, e não o medo do comunismo, que explicou o meu exílio. Se fosse apenas a questão do comunismo, haveria outros tantos educadores que poderiam ter ido para o exílio, e, no entanto, ficaram.
Um tempo de hibernação
MARÍLIA — E como é que esse Paulo Freire educador, que foi reinventado lá fora, teve de se reinventar de novo aqui no Brasil?
PAULO — Hoje, eu acho que a situação mudou muito. Em primeiro lugar, nós tivemos um longo período de silêncio mais uma vez imposto concretamente às massas populares brasileiras. Esse silêncio ensinou às massas que o tempo era de parênteses, de hibernação. Historicamente, elas já tinham aprendido que qualquer movimento de cabeça, qualquer tentativa de protesto significava sempre uma cacetada, que inevitavelmente aparecia. O populismo ameniza as cacetadas. A repressão que volta as faz aparecer de novo. A repressão reativa o “desconfiômetro” das massas, reativa a sua manha necessária para sobreviver, e as massas não mais ficam pedindo nem mesmo alfabetização.
Depois do golpe, quando alguns grupos populares desejaram aprender a ler, esse desejo, por necessidade de defesa, se restringia à aprendizagem da palavra do ponto de vista do ba-be-bi-bo-bu. Não se manifestava o desejo de aprender a relação entre a palavra e o mundo, entre a palavra e a verdade. Por quê? Porque não é possível a discussão da realidade de onde vem a palavra, sem o pensamento. E não é possível o pensamento sem mundo, mundo onde se inclui também a classe social. A discussão do mundo de onde vêm as palavras é explicitamente política.
E o silêncio imposto às massas as fez reaprender facilmente que já não era mais tempo de estar discutindo sobre socialismo, capitalismo, populismo, mas era tempo só, no máximo, de aprender a palavra e a escrever a palavra. Eu te diria que esse tempo não chegou ainda a ser totalmente superado.
Entretanto, eu acho que agora começam a se gerar novamente as condições históricas e políticas para que se volte a fazer um trabalho que não é necessariamente de alfabetização no sentido linguístico, mas um trabalho de educação popular baseado fortemente na leitura e na compreensão do mundo. É isso que eu costumo chamar de pós-alfabetização, mesmo quando não houve alfabetização ou educação.
Recentemente, a partir das reivindicações pelas diretas-já, nós percebemos que houve uma mudança de qualidade extraordinária no panorama político deste país. E essa mudança, que veio de baixo para cima, traz em si um não categórico, veemente, fantástico a esse espúrio Colégio Eleitoral fabricador de presidentes nomeados. E com as mudanças que ocorreram, em função da própria necessidade popular, hoje, eu acho que possivelmente a ênfase na alfabetização se deslocasse para uma visão mais ampla de educação popular.
Hoje, como ontem, como amanhã, cabe à educadora, ao educador com sensibilidade histórica e política, encontrar os veios da ansiedade popular. Por mínimos que sejam esses veios, partindo deles, estará dado o salto, não apenas para o esclarecimento de ansiedades populares, que é a ansiedade de arrepiar esta sociedade numa perspectiva socialista, correta, democrática e profunda.
O professor é diferente do aluno
MARÍLIA — A partir do momento em que se coloca ao educador essa quase missão de descobrir os veios da ansiedade popular, cria-se na dinâmica educador-educando (ou, professor-aluno) uma relação de poder, já que existe alguém que sabe mais e outro alguém que sabe menos. Pode ou deve ser quebrada essa relação de poder?
PAULO — A gente deve partir da seguinte afirmação: o educador é diferente do educando. Até mesmo do ponto de vista da sua chegada ao mundo. Em geral, eles pertencem a gerações diferentes. Essa diferença de tempo e de chegada tem de ver com o saber de experiência feito e com o saber sistematizado, que se supõe que seja adquirido na Universidade, na prática, na escolarização. Então, evidentemente, a própria estrutura da organização da escola dá ao educador um conjunto de responsabilidade e deveres diferentes das responsabilidades e deveres do educando. Dizer que o educador é igual ao educando é, na melhor das hipóteses, demagogia.
O problema que eu me coloco agora é: até que ponto essa diferença pode e deve constituir-se numa diferença de opostos sem que isso, porém, signifique que eu esteja pretendendo fazer uma análise de classes entre o educador e o educando. O que eu quero dizer com isso é que eu sou diferente dos educandos, mas eu não sou proprietário deles.
Mas, a partir dessa diferença, eu tenho uma autoridade indiscutível diante da liberdade dos educandos, o que gera uma relação tensa. Essa diferença se alia a uma opção política, não só pedagógica. É uma opção em favor das classes sociais oprimidas, para a transformação radical da sociedade, no sentido de inventá-la de novo a fazê-la uma sociedade menos injusta. Se essa é a minha opção, eu não posso permitir que, na relação diferente entre mim e o educando, eu transforme a minha autoridade em autoritarismo e castre a curiosidade do educando, em nome da sua formação.
EDISON — Um tema ligado à educação e à política é o tema da eficiência. Os nossos partidos e a nossa educação estão voltados para a competição e para a eficiência. Como você pensa essa questão?
PAULO — O político que não busque a eficiência está fadado a não fazer nada. Como qualquer um de nós. O problema é saber que eficiência é essa. Eficiência em torno de quê? Em favor de quem? E como, como ser eficiente?
Para mim, a eficiência política de um homem ou uma mulher de esquerda passa pela sua compreensão e pela sua comunhão com as massas populares. Eu diria mesmo que negar a comunhão com as massas populares, em nome da eficiência, é defender a eficiência de quem pretende fazer a transformação para as massas populares, de cima para baixo. Assim como eu não aceito esse tipo de transformação revolucionária, eu não aceito esse tipo de eficiência.
Entretanto, eu não quero deixar aqui a impressão de que eu acho que uma liderança tem de consultar as massas todo dia para saber o que fazer no processo de andamento revolucionário. Isso seria mesmo impossível. A liderança revolucionária tem de se obrigar a criar em si mesma algumas qualidades especiais. Por exemplo: a intuição, a sensibilidade histórica, a capacidade de prever, de sonhar a fantasia. Até do ponto de vista do conhecimento, a fantasia é uma espécie de antecipação do que pode ser um conhecimento de amanhã.
Como disse um dia Amílcar Cabral, o grande líder da libertação da Guiné-Bissau: “Ai do revolucionário que não sonha!” E acrescentou: “O problema apenas é saber se sonha um sonho possível. Além disso, ele precisa saber se é capaz de lutar para realizar o sonho. Fora disso: ai do revolucionário que não sonha!”
Essa sensibilidade à flor da pele, essa capacidade de sonhar, de fantasiar, de conhecer quase adivinhando os anseios das massas populares são virtudes que o revolucionário tem de criar. É preciso viver essas coerências. É o político que é educador e o educador que é político.