Max Gimenes[1]
A correspondência entre dois indivíduos, documentação de caráter privado, torna-se de interesse público na medida em que revela informações sobre histórias de vida extraordinárias, sobre o funcionamento de uma área de atuação específica em determinado momento ou sobre a gênese e o processo de elaboração de uma obra. Nesse caso, o que poderia ser simples meio de comunicação circunstancial ganha relevância histórica e se transforma em importante fonte primária de pesquisa para especialistas e de conhecimento geral para o público mais amplo.
É esse, precisamente, o caso de Conversa cortada: a correspondência entre Antonio Candido e Ángel Rama, livro que revela informações interessantes em todos esses níveis. O início da interlocução, por exemplo, mostra o descompasso entre as diferentes inserções profissionais de cada crítico na fase da vida em que se conheceram, no começo de 1960. Enquanto o uruguaio Rama atuava sobretudo na imprensa e publicava apenas textos de fôlego mais curto, Candido já se profissionalizara como crítico literário acadêmico e publicara sua obra-prima, Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1959). Nesse momento, o crítico brasileiro alude às “condições materiais tão favoráveis para o trabalho” de sua “experiência de Assis” (carta de 22 de novembro de 1960), quando pôde se concentrar no trabalho intelectual, talvez até pelo isolamento geográfico imposto pela migração institucional para uma cidade do interior. Foi nesse período, por exemplo, que ele pôde se dedicar à preparação para publicação das teses acadêmicas que defendera nas décadas anteriores, O método crítico de Sílvio Romero (1963)[2] e Os parceiros do Rio bonito (1964)[3], consolidando, assim, sua posição e influência acadêmicas. Enquanto isso, a atividade intelectual de Rama se dava com a intervenção no debate público por meio da imprensa, para a qual, aliás, buscou atrair a colaboração de Candido, convidando-o a participar da revista de cultura e política Marcha, ao que o crítico brasileiro, que a essa altura já se afastava progressivamente da crítica de imprensa e contribuía com ela apenas ocasionalmente, respondeu de maneira negativa, alegando justamente o foco no trabalho acadêmico naquele período (carta de 26 de abril de 1960).
É possível acompanhar também, ao longo da correspondência, o processo de incorporação do Brasil à identidade latino-americana da crítica feita na região, que era até então hispano-americana ou brasileira. Esse, aliás, é um dos interesses do organizador do livro, Pablo Rocca, em sua tese de doutorado, Ángel Rama, Emir Rodríguez Monegal y el Brasil: dos caras de um proyecto latino-americano, em cujo anexo documental foi reunida pela primeira vez a correspondência e que serve de base para as notas, o prólogo e a sugestão de bibliografia que complementam o livro. Em relação a esse ponto, há mais um descompasso inicial: quando se conheceram, Rama, por razões identitárias e linguísticas compreensíveis e no bojo de esperanças de integração latino-americana despertadas pela Revolução Cubana, possuía amplos conhecimentos sobre a literatura hispano-americana e já se interessava também pela cultura brasileira; Candido, ao contrário, demoraria para reverberar esse entusiasmo revolucionário, bem como para aderir mais ativamente ao latino-americanismo do colega uruguaio, o que aconteceria apenas na última fase de sua vida, no final da década de 1970, na esteira de sua aposentadoria e da abertura política que culminaria na redemocratização brasileira: “Espero daqui por diante ampliar o conhecimento da América Latina e trabalhar um pouco, na velhice, pela aproximação cultural entre os nossos países, à qual você se dedicou desde moço. Lembro que quando o conheci em 1960, esta já era uma obsessão sua” (carta de 27 de março de 1979). Essa adesão tardia à temática é curiosa se lembrarmos que o tema do curso de verão de Candido no Uruguai em 1960 tinha como tema justamente a “Unidade cultural latino-americana”. Porém, como ele próprio confessou em uma entrevista, o retorno que recebeu de um dos organizadores do evento foi de que suas aulas eram interessantes quanto ao método, mas revelavam conhecimentos limitados da literatura latino-americana em geral.
Seja como for, essa relação de “afinidade eletiva” entre eles repercutiu na trajetória e na obra de ambos de maneira decisiva. Talvez pela atuação mais “teórica” de um e mais “prática” de outro no momento em que se conheceram, são mais conhecidas as influências teóricas e metodológicas de Candido na crítica de Rama, como dos conceitos de “sistema literário” e “super-regionalismo”, ou as influências do ativismo latino-americanista de Rama na participação de Candido em projetos críticos de âmbito regional. Em relação a estes, vale destacar a redação do ensaio “Literatura e subdesenvolvimento” (1970) para a UNESCO, por indicação do colega uruguaio em 1967; a Biblioteca Ayacucho, lançada em 1974 com o objetivo de reunir toda a contribuição relevante da literatura e do pensamento latino-americanos para publicação e difusão com aparato crítico de qualidade, com contribuição de Candido na seleção de autores e títulos brasileiros e na indicação de colaboradores para a preparação de cada um desses volumes, além da participação direta naquele dedicado a Sílvio Romero; o projeto de uma história literária da América Latina surgido no final dos anos 1970 por iniciativa da crítica chilena Ana Pizarro, no âmbito da Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC), com participação de Rama e Candido, que resultaria mais de uma década depois em América Latina: palavra, literatura e cultura, obra em três volumes publicada entre 1993 e 1995.
Um aspecto aparentemente ainda pouco explorado pela literatura sobre Antonio Candido é a influência das ideias de Rama propriamente ditas sobre o colega brasileiro, por exemplo o impacto do livro La generación crítica (1972), que Candido recebeu e leu em primeira mão: “Achei-o exemplar como visão da literatura entrosada na cultura, e da cultura como visão orgânica da sociedade. Poucas vezes tenho visto uma solução tão forte e harmoniosa para este difícil problema, que é ver a sociedade do ângulo da literatura e a literatura do ângulo da sociedade, sem paralelismo mecânico, mas de um modo orgânico e vivo. De tudo resulta uma visão política e estética plenamente convincente” (carta de 15 de maio de 1973). Sem alongar a nota, basta dizer que o livro trata, entre outras coisas, da participação dos intelectuais na sociedade de modo muito semelhante à ideia de “radicalismo de classe média”, e que essa reflexão de Candido, com esses termos, surge pela primeira vez em entrevista concedida logo em 1974, tornando-se a partir daí tema bastante recorrente, na última fase de sua trajetória.
O livro contém, ainda, dois anexos do maior interesse. O primeiro deles é a correspondência de Rama e Gilda de Mello e Souza, entre 1976 e 1978, em torno da colaboração dela na seleção e apresentação das obras escolhidas de Mário de Andrade para a Biblioteca Ayacucho, o que daria ensejo para a redação do clássico ensaio O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma (1979), publicado depois também no Brasil. Esse pequeno conjunto tem ao menos duas particularidades: seu valor literário, pela maneira como Gilda, com seu “temperamento de ficcionista” (a expressão é dela), maneja a escrita, criando uma voz subjetiva que, não obstante a narração de eventos objetivos relacionados ao trabalho, dá forma expressiva a emoções e sentimentos dramáticos, de modo a conquistar o leitor; e o interesse que desperta também do ponto de vista das relações de gênero, pois, entre as emoções e sentimentos que expressa estão a insegurança e angústia com o trabalho intelectual, num espaço que era então sobretudo de homens e causava dilaceramento interno às mulheres que buscavam, como Gilda, equilibrar carreira e família, quando a regra era a opção, preferencialmente pela última. Já o segundo anexo é o discurso de agradecimento de Candido ao título de doutor honoris causa recebido em 2006 da Universidad de la República, em Montevidéu, ocasião que aproveitou para discorrer sobre sua relação afetiva com o Uruguai, que remonta à estadia no país vizinho não apenas do pai, como ele já sabia desde a infância, mas também do bisavô materno, provavelmente descoberta ao longo da pesquisa que realizou para contar a história desse antepassado em Um funcionário da monarquia: ensaio sobre o segundo escalão (2002).
Entre cartas, bilhetes, cartões-postais e telegramas, somam oitenta e sete as comunicações reunidas no livro, que foram trocadas por Candido e Rama entre 1960, quando se conheceram, e 1983, ano da morte do uruguaio em acidente aéreo, a qual interrompeu o plano que tinham de voltar a se encontrar no ano seguinte, para dar continuidade ao trabalho que então realizavam no âmbito do projeto de história literária latino-americana capitaneado por Pizarro. Apesar de precocemente interrompido, esse conjunto documental não deixa de constituir um importante legado e ponto de referência para quem pensa o trabalho intelectual como participante das lutas emancipatórias, o que na periferia do capitalismo passa pela integração regional como forma de resistência a eventuais interferências imperialistas. Não é demais lembrar que, se o momento atual parece hostil a essas ideias, Candido e Rama enfrentaram ditaduras (e, no caso do último, também exílio em diferentes países), sem com isso perder as esperanças ou a determinação.
[1] Doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).
[2] Tese de livre-docência originalmente apresentada em 1945.
[3] Tese de doutorado em Sociologia apresentada em 1954.