Isabella Meucci[1]
“(…) o conflito entre América Latina e marxismo converte-se em um problema teórico quando a prática constata um desencontro constante, uma espécie de mútua e secreta repulsão, que afasta a América Latina do marxismo (isto é, a realidade da teoria) e expulsa o marxismo da América Latina (isto é, a teoria da realidade)”
(FRANCO, 1982, p.11)
A epígrafe acima, já bastante difundida entre os estudiosos do marxismo latino-americano, retrata um de seus maiores problemas: o permanente “desencontro” entre o materialismo histórico e a América Latina. O recente livro de André Kaysel, fruto de sua tese de doutoramento na Universidade de São Paulo (USP), nos fornece pistas para uma melhor compreensão dessa problemática, especialmente ao apresentá-la como pano de fundo de seu objeto central: as relações contraditórias entre o nacionalismo popular e o marxismo de matriz comunista no Peru e no Brasil. É o próprio recorte do objeto que possibilita um entendimento mais profundo do conhecido “desencontro”, visto que o marxismo de matriz comunista é compreendido em sua relação com o nacionalismo popular – ou seja, tanto a partir de suas tensões quanto aproximações, em uma constante correlação de forças. Para tanto, Kaysel analisa as particularidades da formação dessas correntes no Brasil e no Peru, posteriormente indica como a relação entre ambas se estabeleceu em cada um desses países e, por fim, compara essas diferentes dinâmicas de aproximação e afastamento nos dois países.
Nessa esteira, cabe destacar que, ainda que o autor seja abertamente inclinado à corrente do nacionalismo popular, recorre a uma ampla bibliografia em seu empreendimento, mobilizando criticamente seus argumentos. Isso porque, como reforça André Singer no prefácio da obra: “embora explícito e aguerrido nas opiniões que professa, André não perde nunca o gume crítico do verdadeiro intelectual” (SINGER, 2018, p. 12). Kaysel não escreve para legitimar o que defende, mas informa uma leitura possível com base em reflexões que podem servir também a outras leituras.
É interessante ressaltar que o autor busca, na Introdução, relatar os caminhos da pesquisa que o levaram até o livro que temos em mãos. Essa alternativa permite que o leitor compreenda não somente as estradas que levaram ao destino final, como também expõe as dificuldades e percalços do trabalho intelectual, nem sempre visíveis, mas extremamente importantes para que a pesquisa acadêmica seja entendida como um processo que demanda tempo, leituras, questionamentos e incertezas. A escolha em apresentar tal trajeto aproxima o leitor do pesquisador, ao mesmo tempo em que, ao não omitir suas escolhas e obstáculos, fortalece os argumentos da pesquisa.
Um desses maiores obstáculos parece ter sido a própria nomenclatura e, obviamente, conceituação, de uma das correntes ideológicas em tela. Enquanto os grupos que enfatizam a noção de “classe” na composição das identidades subalternas podem ser melhor agrupados nas correntes ideológicas de esquerda de orientação marxista, tanto socialistas quanto comunistas, aqueles que reivindicam as noções de “povo” e “nação” perfazem uma corrente um pouco menos organizada, constantemente chamada de “populista” ou “nacional-popular”, e que pode estar circunscrita tanto à direita quanto à esquerda. Além disso, a auto identificação dos adeptos da primeira corrente costuma ser mais precisa do que na segunda.
A solução proposta pelo autor é o emprego do termo “nacionalismo popular” para tal corrente, caracterizada pelos seguintes elementos ideológicos básicos: oposição à oligarquia latifundiária e à presença espoliativa do imperialismo, responsáveis pelos males econômicos, políticos e sociais do subcontinente; defesa de reformas sociais e econômicas estruturais para solucionar o “subdesenvolvimento”; concepção policlassista dos sujeitos que empreenderiam tais mudanças, especialmente agrupados na ideia de “povo” e “nação”; uma ideia de “povo” que, embora fluida, não implicaria o apagamento dos antagonismos; a busca de uma “nova teoria” que fosse capaz de dar conta das especificidades de cada país ou do subcontinente como um todo; por fim, a defesa de certo “continentalismo”, ou seja, da integração econômica e política da América Latina, em clara relação com as ideias do período da independência da região (KAYSEL, 2018, p.22-27).
Uma vez caracterizadas as duas correntes ideológicas, há ainda alguns conceitos fundamentais que são analisados antes que as relações sejam estabelecidas. Nesse sentido, Kaysel aprofunda as abordagens marxistas sobre a noção de “povo” e, posteriormente, a questão de “nação”. O primeiro capítulo visa, portanto, fazer uma revisão crítica da literatura sobre o “populismo” na América Latina, com ênfase em três vertentes do tema: o populismo como chave explicativa para certo momento histórico latino-americano; o fenômeno do populismo como modalidade de discurso político que pode emergir em contextos distintos e com diferentes conteúdos ideológicos; o populismo como conceito rejeitado por alguns autores devido às suas imprecisões. No segundo capítulo, para compreender a questão da nação e do nacionalismo para o marxismo, especialmente a complexidade de tal temática na América Latina, Kaysel relaciona as teorias de Benedict Anderson e Tom Nairn. Do primeiro, destaca a formulação da nação como “comunidade imaginada” enquanto do segundo apreende a ideia do surgimento do nacionalismo como fruto do desenvolvimento desigual do capitalismo mundial. Os dois primeiros capítulos acabam por contextualizar não somente os debates nos quais as duas correntes analisadas se inserem, mas também permitem compreender o núcleo central das divergências entre ambas.
Na segunda parte da obra, o autor especifica as particularidades da formação e desenvolvimento do nacionalismo popular no Peru e no Brasil. As diferentes origens dos dois movimentos são importantes também para o entendimento das distintas relações que estabeleceram com o marxismo. Para Kaysel, enquanto no Peru a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), símbolo do primeiro movimento nacionalista popular do subcontinente na década de 1920, origina-se na sociedade civil em oposição ao Estado oligárquico, o trabalhismo brasileiro invoca a sociedade civil a partir do Estado.
Por fim, a terceira e última parte da obra compara as relações entre as duas correntes ideológicas no Peru dos anos 1920 e 1930 e no Brasil dos anos 1950 e 1960. As diferentes origens do nacionalismo popular, as posições próprias ao marxismo de matriz comunista e os distintos momentos históricos teriam levado também a caminhos contrários nessa relação: “Se no Peru, ambas correntes foram de uma origem comum ao antagonismo, no Brasil confluíram a partir de posições originalmente hostis” (KAYSEL, 2018, p.38).
Como buscou-se demonstrar aqui, as contribuições de Entre a nação e a revolução não se limitam à comparação da relação entre duas correntes ideológicas em dois países do subcontinente. O livro de André Kaysel também oferece uma interpretação acerca do populismo na América Latina, caracteriza e delimita o chamado “nacionalismo popular” e concebe uma análise crítica acerca dos impasses das nações periféricas para o marxismo – talvez aqui uma das maiores pistas do conhecido desencontro. A obra, portanto, torna-se incontornável para aqueles que buscam compreender a formação e os dilemas ainda tão atuais do pensamento político latino-americano.
Referências bibliográficas
FRANCO, Carlos. Apresentação. In: ARICÓ, José. Marx e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
KAYSEL, André. Entre a nação e a revolução: marxismo e nacionalismo no Peru e no Brasil (1928-1964). São Paulo: Alameda, 2018.
SINGER, André. Prefácio: entre classes e massas. In: KAYSEL, André. Entre a nação e a revolução: marxismo e nacionalismo no Peru e no Brasil (1928-1964). São Paulo: Alameda, 2018.
[1] Doutoranda em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro da Comissão Editorial do Boletim Lua Nova.