Marcia Baratto[1]
“A América não foi descoberta, foi invadida” (JENNINGS, 1975). Essa clássica afirmação foi feita para demonstrar a perspectiva dos povos indígenas sobre o estabelecimento dos europeus em terras norte-americanas e denunciar a ideologia do descobrimento, de efeitos nefastos para o reconhecimento dos indígenas e seus povos como sujeitos históricos. Os sobreviventes, moradores originários dos territórios no continente americano, como atores políticos que são, também demandam ser reconhecidos como os merecedores de direitos de manutenção, preservação e promoção de suas culturas. O direito à manutenção de suas línguas, à educação especial (no Brasil, feita por meio de educação fundamental bilíngue e iniciativas da capacitação universitária indígena, e das cotas especiais), à representação política e jurídica em órgãos públicos e o acesso à terra, são os direitos originários reconhecidos pela Constituição de 1988 aos povos, comunidades e indígenas no Brasil e agora se encontram ameaçados pela ofensiva do governo de Jair Bolsonaro (PSL), que declarou guerra aos movimentos sociais indígenas e acredita poder representá-los escolhendo membros de comunidades indígenas alinhados aos interesses de desenvolvimento econômico do governo.
A ameaça concreta é deixar povos, comunidades e movimentos sociais indígenas, que não se alinham com os interesses ruralistas e dos mineradores, sem políticas públicas voltadas à implementação de seus direitos, e, principalmente, sem voz capaz de ser ouvida nos espaços estatais de resolução de conflitos. É importante recordar que o título de ‘portadores de direitos’ é uma construção jurídica relativamente jovem na história dos direitos dos Estados que emergiram do processo colonial e, por muitos séculos, literalmente, não foi oferecido aos indígenas e aos escravos africanos trazidos à força ao continente (CARNEIRO, 1992). Essa condição de subalternidade política e social é uma constante desafiada pelos atores políticos pró-direitos indígenas e é importante para entender o que significa a destruição das políticas públicas existentes para os indígenas no país.
A história da junção da democracia com os direitos humanos é marcada por ciclos de lutas e confrontos, cujos resultados convergem, geralmente, para a ampliação de quem pode ser considerado portador de direitos; ou seja, da capacidade política de representar seus interesses no palco de ações coordenado pelo estado. Retrocessos, infelizmente, também são uma constante para a história dos diversos povos indígenas no continente americano. No Brasil, onde os povos indígenas foram cooptados, escravizados, assassinados, e os sobreviventes submetidos às novas formas de dominação impostas pelos colonizadores, os indígenas remanescentes traçaram sua história de resistência por muito tempo sendo observados como ‘objeto do direito’ e não como ‘sujeitos portadores de direitos’. O reconhecimento do ‘Índio’ (substantivo masculino singular) como sujeito de direito, na história do constitucionalismo brasileiro, inicia-se no século XX, precisamente com a constituição de 1946. Mais recente ainda é o reconhecimento de que indígenas podem e devem decidir por si mesmos como manter, exercer, preservar e legar seus meios tradicionais de vida, bem como sua herança cultural ancestral, conquista juridicamente plena da Assembleia Constituinte de 1988, mas politicamente problemática exatamente por que insiste na ‘singularidade do Índio’ no país.
A amarração entre democracia e direitos indígenas como direitos humanos, construída nas décadas de 1990 e 2000, requer tornar os povos, as comunidades e os indivíduos indígenas os protagonistas de sua história e não mais os sujeitos/objetos precários que, por misericórdia cristã, precisam ser guiados pelo Estado ao patamar ‘civilizatório adequado’ de todos os homens (idem). Do antigo paradigma assimilatório, do qual infelizmente ainda temos uma herança persistente nas nossas instituições, com a Constituição de 1988, passamos ao paradigma multicultural do respeito à diversidade cultural e seus peculiares meios de vida. Mas isso não significa que os direitos indígenas da Constituição de 1988 não estejam ameaçados, como revela a avidez do governo Bolsonaro em desmontar as políticas públicas criadas para executar os direitos que a constituição garante e, sobretudo, aquelas que ela acolheu da ordem internacional dos direitos humanos. O discurso integracionista, mais uma vez, se faz presente no Executivo brasileiro, na contramão do estipulado na Carta Magna de 1988.
No primeiro dia de funcionamento do governo Bolsonaro, a Fundação Nacional do Índio (Funai) perdeu sua competência para iniciar o processo de demarcação de terras (Cf. BRASIL, 2019a). O órgão já enfrentava restrições de orçamento e de pessoal desde o segundo governo Dilma Rousseff (PT) e foi objeto de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e corte de verbas após o golpe que levou Michel Temer (PMDB) ao governo (Cf. BARCELOS; STREIT, 2018). A Funai é responsável por desenvolver a maior parte das políticas para pessoas indígenas no país, do registro pessoal para documentos, pelo encaminhamento para serviços públicos de educação e saúde, e, até janeiro de 2019, era responsável pelo processo administrativo da demarcação das terras indígenas, o coração dos direitos constitucionais para povos e comunidades indígenas no país. Hoje, o órgão perdeu sua competência para esse fim e está com o orçamento congelado (Cf. BRASIL, 2019b), o que levou à paralisia do atendimento à população indígena em muitas comunidades e territórios no país. Até o momento, desde janeiro, são mais de 14 terras indígenas invadidas (Cf. WATSON, 2019).
A violência da sociedade parece encontrar apoio na iniciativa desmobilizadora do governo, que pretende permitir a mineração em terras indígenas e reduzir o número de políticas públicas voltadas para populações indígenas. O resultado é a destruição do espaço estatal destinado aos indígenas, reduzindo drasticamente o canal de comunicação entre governo e essas populações. É também contra a possibilidade de falar de seus interesses e ser escutado que se voltam as ações do governo Bolsonaro, sobretudo daqueles organizados nos movimentos sociais indígenas. Isso, novamente, os torna objetos da regulação estatal que não mais reconhece seu status sujeitos de direitos. “Fala até bem” foi a expressão utilizada, na última live feita pelo Facebook, pelo presidente ao se referir à capacidade de comunicação de um representante indígena no que teria sido um encontro com lideranças dispostas a verem aprovadas leis para a mineração em terras indígenas (Cf. TAJRA, 2019). O evento, não por acaso online, aconteceu após a repercussão negativa da declaração falaciosa sobre o financiamento do Acampamento Terra Livre (ATL) que, segundo o Bolsonaro, seria ‘um encontrão de Índio’ mantido com dinheiro público (Cf. LEITE, 2019). O ATL será realizado com recursos das organizações indígenas congregadas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que recebeu doações individuais para o evento. Este ano, a pedido do General Augusto Heleno, aceito pelo ministro da justiça, Sérgio Moro (Cf. BRASIL c, 2019), a guarda nacional foi autorizada a intervir no ATL, para ‘proteger o patrimônio e evitar violência’. A tentativa de criminalizar o mais tradicional evento dos movimentos sociais indígenas dirigido ao governo federal é preocupante: recusa o direito de fala, recusa a política como forma de resolução de conflitos e também o cumprimento dos direitos constitucionais dos povos indígenas; entre eles, o de serem sujeitos políticos com direito democrático de protesto e manifestação livre de expressão. A APIB afirmou em sua nota contra a ofensiva do planalto:
Parem de incitar o povo contra nós! Não somos violentos, violento é atacar o direito sagrado a livre manifestação com tropas armadas, o direito de ir e vir de tantas brasileiras e brasileiros que andaram e andam por essas terras desde muito antes de 1500. Que saibam: A história da nossa existência, é a história da tragédia desse modelo de civilização referendado pelo atual governo que coloca o lucro à cima da vida, somos a resistência viva, e nos últimos 519 anos nunca nos acovardamos diante dos homens armados que queriam nos dizer qual era o nosso lugar, agora não será diferente. Seguiremos em marcha, com a força de nossa cultura ancestral, sendo a resistência a todos esses ataques que estamos sofrendo.
Diga aos povos que avancem! (Cf. APIB, 2019).
Se a recusa raivosa do reconhecimento dos direitos indígenas é a marca do governo atual, não faltam, como bem demonstra a nota APIB, coragem e protagonismo histórico aos movimentos sociais indígenas para questionarem a negação de seus direitos a serem, da sua perspectiva e para o mundo, os atores de sua própria história. Que a sua coragem nos inspire para outras pautas e mobilizações de direitos.
[1] Doutora em Ciência Política pela Unicamp, ativista de direitos humanos e pesquisadora autônoma.
Referências bibliográficas:
Articulação dos povos Indígenas do Brasil. APIB. Nota da APIB sobre o uso de força contra o ATL. Facebook, 17 de Abril de 2019. Disponível em: < https://www.facebook.com/apiboficial/photos/a.1853600214910139/2271222763147880/?type=3&theater>, acessado em 18/04/2019 às 22:00 hs.
BARCELOS, Iuri; STREIT, Maíra. Indígenas enfrentam a maior ofensiva parlamentar em 20 anos. Pública Agência de Jornalismo Investigativo. 24 de abril de 2018. Disponível em: <https://apublica.org/2018/04/indigenas-enfrentam-a-maior-ofensiva-parlamentar-em-20-anos/>, acessado em 02/05/2018.
BARROS, Ciro. Operando com 10% do orçamento, Funai abandona postos e coordenações em áreas indígenas. Pública Agência de Jornalismo Investigativo. 25 de março de 2019. Disponível em: <https://apublica.org/2019/03/operando-com-10-do-orcamento-funai-abandona-postos-e-coordenacoes-em-areas-indigenas/>, acessado em 02/04/2019 às 9:30hs.
BRASIL a. Medida Provisória Nº 870 de 1 de Janeiro de 2019. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Diário Oficial da União. 01/012019.Disponível em: <http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/57510830>. Acesso em 05/04/2019 às 18:00.
BRASIL b. Decreto nº 9.711 de 15 de Fevereiro de 2019. Dispõe sobre a programação orçamentária e financeira, estabelece o cronograma mensal de desembolso do Poder Executivo federal para o exercício de 2019 e dá outras providências. Presidência da República, Casa Civil. Brasília: Executivo, 2019. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9711.htm>, acessado em 16/02/2019 às 13:00.
BRASIL c. Portaria nº 441 de 17 de Abril de 2019. Dispõe sobre o emprego da Força Nacional de Segurança Pública na Esplanada dos Ministérios em Brasília/DF. Brasília: Ministério da Justiça. Disponível em: < http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/71925994>, acessado em 18/04/2019 às 17:53.
CARNEIRO (org), Manuela. A História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
JENNINGS, F. The Invasion of America: Indians, Colonialism, and the Cant of Conquest. Chicago: Chicago University Press, 1975.
LEITE, Marcela. Bolsonaro diz que “encontrão de índio” terá verba pública; Guajajara rebate. Portal Universo Online (UOL). 11/04/2019. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/04/11/bolsonaro-diz-que-encontrao-de-indio-tera-verba-publica-guajarara-rebate.htm>, acessado em 12/04/2019 às 9:03 hs.
TAJRA, Alex. Bolsonaro recebe índios após criticar evento e defende exploração em terras. Portal Universo Online (UOL). 17/04/2019. Disponível em< https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/04/17/bolsonaro-indigenas-funai-exploracao-de-terras.htm>, acessado em 17/04/2019.
WATSON, FIONA. Bolsonaro: 100 dias de guerra contra os povos indígenas. El País. 16 de Abr. 2019. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/11/politica/1554971346_439815.html> Acesso em 16/04/2019.
Referência imagética:
https://outraspalavras.net/outrasmidias/terra-livre-o-acampamento-indigena-que-faz-brasilia-tremer/ (Acessado em 22 de abr de 2019).