Maurício Santoro[1]
Há 30 anos, ocorreu o massacre da Praça da Paz Celestial em Pequim, no qual o governo da China desmantelou com tanques de guerra o maior movimento de protesto da história contemporânea do país. Os números de mortos são incertos, mas estima-se que tenham sido em torno de 3 mil, seguidos de uma onda de repressão política que encarcerou dezenas de milhares de pessoas (Lim, 2014).
A geração pós-massacre foi educada em meio ao silêncio acerca do fato e no contexto de um intenso e prolongado crescimento econômico que reduziu algumas das tensões que levaram às manifestações de 1989.
A busca pela Quinta Modernização
O processo de abertura e reforma econômica da China começou oficialmente em dezembro de 1978, com a liberalização da propriedade privada na agricultura e a criação de Zonas Econômicas Especiais (ZEEEs) no litoral. Tais medidas resultaram no maior período de crescimento elevado do Produto Interno Bruto (PIB) da história do capitalismo e transformaram a China, fazendo com que ela saltasse da condição de um dos países mais pobres do mundo para uma nação de renda média-alta.
O governo chinês anunciou as reformas como parte de um ambicioso programa de “quatro modernizações”: agricultura, indústria, defesa e ciência/tecnologia. Os objetivos eram superar o atraso econômico no qual a China havia caído durante a liderança de Mao Tsé-Tung (1949-1976) e tornar o país novamente uma grande potência na política internacional (Spence, 1996).
Contudo, o acelerado desenvolvimento do país também trouxe à tona diversos problemas sociais, em particular o choque entre as expectativas crescentes da população com o autoritarismo do sistema político, e a dificuldade do governo em enfrentar questões como desigualdade e corrupção. Muitas dessas tensões afloraram nos anos anteriores ao massacre e explicam o surgimento da um movimento de protesto tão massivo.
Os anos iniciais das reformas foram marcados não só pelo crescimento econômico, mas também por uma inflação elevada para os padrões chineses, que alcançou, na época dos protestos, cerca de 20%. Embora o número pareça trivial para a experiência latino-americana, era preocupante para uma população habituada ao controle de preços da era maoísta. Muitas famílias pobres se viram com dificuldade para custear suas despesas básicas e para ter acesso aos novos bens de consumo que passaram a estar disponíveis nas lojas. São fatores importantes para explicar a grande presença de trabalhadores – e não apenas estudantes e intelectuais – nos protestos de Pequim (Santoro, 2013).
Outra razão dos protestos foi a disputa de poder dentro do Partido Comunista da China. Os líderes pró-reforma, como Deng Xiaoping (1904-1997) tinham que enfrentar uma resistência considerável por parte da sua ala conservadora, que achava que as mudanças na economia destruiriam o regime. Por conta disso, Deng e outros dirigentes, com o objetivo de pressionar seus colegas de partidos, incentivavam, até certo ponto, os protestos.
Os manifestantes levantaram a bandeira da “Quinta Modernização” – a democracia –, apontando como, sem ela, as demais seriam inúteis. Não foi o primeiro protesto democrático da história da China. Os ativistas se declararam herdeiros do Movimento 4 de Maio (1919), que havia sido organizado em torno de um projeto de reforma inspirado nesses princípios e na adoção de modelos políticos e econômicos do Ocidente. Ele também aconteceu na Praça da Paz Celestial e foi igualmente liderado por estudantes e professores da Universidade de Pequim, a mais antiga e importante do país.
Nos anos 1970 e 1980, o campus da Universidade de Pequim foi o epicentro de várias mobilizações. Seus muros eram cobertos por cartazes e jornais-murais que expunham o descontentamento dos estudantes e os convocava para manifestações. Em 1989, esses protestos cresceram de tamanho, estimulados pela conjuntura internacional – os regimes comunistas na Europa Oriental e na União Soviética (URSS) eram abalados por revoltas semelhantes. Os estudantes chineses queriam fazer parte desse momento global. Os grandes atos foram marcados para coincidir com a visita do líder soviético Mikhail Gorbatchev a Pequim. Os manifestantes admiravam o modo como ele tentava conciliar abertura econômica e política, esforçando-se por reformar o sistema autoritário.
Os estudantes em Pequim ocuparam a Praça da Paz Celestial e montaram um acampamento que durou várias semanas. Em frente à Cidade Proibida, ergueram uma estátua que chamaram de “Deusa da Democracia”. Ao longo dos dias, cantavam músicas de protestos, faziam discursos e davam entrevistas para a imprensa internacional. Os atos ganharam destaque na mídia global e com os correspondentes que chegavam à cidade para acompanhar a visita do líder soviético. Com o tempo, os moradores de Pequim começaram a se solidarizar com os estudantes. Indo até a praça, chegavam a participar das manifestações e, às vezes, levavam comida aos acampados.
O Partido Comunista da China se dividiu em como reagir aos protestos. O secretário-geral da instituição, Zhao Zyiang (1919-2005), defendeu a busca do diálogo, chegando a ir até a praça e chorar diante dos manifestantes. Ele perdeu a disputa interna para Xiaoping, que advogou dissolver o protesto à força.
Foi algo difícil mesmo para um líder com a influência de Deng. Havia muitas dúvidas sobre se o Exército aceitaria a tarefa – nunca ocorrera nada parecido desde a vitória dos comunistas na guerra civil. Para minimizar o risco de soldados se recusarem a atirar com medo de encontrarem amigos e parentes, Deng convocou unidades militares de províncias distantes.
A Praça da Paz Celestial é, na realidade, uma grande esplanada, um espaço aberto de centenas de metros de largura, semelhante em arquitetura à Esplanada dos Ministérios em Brasília. Ela não oferece locais para proteção em caso de um ataque armado. Os estudantes foram massacrados sem possibilidades de defesa. A imagem mais famosa é a de uma coluna de blindados entrando na praça e sendo detida por alguns segundos por um jovem que se interpõe a eles, até ser arrastado para longe. Sua identidade nunca foi descoberta – ele é conhecido apenas como “homem dos tanques” – mas acredita-se que era aluno ou professor da Universidade de Pequim.
O ativismo político na China após os protestos
A carnificina na praça foi o momento mais brutal da história chinesa desde o início da era da reforma, motivo pelo qual, por anos, deixou dúvidas sobre a continuidade das mudanças econômicas. Após o massacre, houve um expurgo no Partido Comunista da China, com o afastamento de muitos dirigentes acusados de cooperar com os manifestantes – o próprio secretário-geral Zhao perdeu o cargo e foi posto em prisão domiciliar, na qual morreria anos depois (Zhao et ali, 2009). Deng precisou de cerca de três anos para negociar um novo consenso entre a elite política com relação aos rumos do país (Martí, 2007).
Ele conseguiu manter e aprofundar as reformas, evitando que a China seguisse o rumo do colapso do regime da URSS. O desempenho econômico chinês após 1989 foi excepcional, com crescimento do PIB acima de 10% ao ano e atração de investimento estrangeiro. O governo conseguiu controlar a inflação e a pobreza foi reduzida de forma expressiva ao longo das décadas seguintes. O desenvolvimento do país se tornou um dos principais fatores mobilizados pelo regime autoritário para justificar sua legitimidade junto à população, ao mesmo tempo em que mostra protestos como riscos para a prosperidade recém-conquistado.
Desde o massacre da Praça da Paz Celestial, não houve um desafio contundente ao Partido Comunista Chinês, embora continuem a ocorrer muitas manifestações políticas no país, em especial por causa de questões trabalhistas, direitos humanos e a situação das minorias étnicas e religiosas. Se elas não questionam o próprio sistema e o monopólio do poder pelo partido, colocam em xeque aspectos importantes do governo e criticam diversas políticas públicas, ocasionalmente levando à sua revisão e modificação (Pinheiro-Machado, 2019).
Manifestações com relação a conflitos trabalhistas são provavelmente os protestos mais frequentes na China contemporânea. Em geral, envolvem disputas locais a respeito do cumprimento das leis trabalhistas – que são numerosas e abrangentes, ao contrário do que muitas vezes se acredita- e de condições de trabalho e alojamento em fábricas (Lee, 2007). Os sindicatos chineses não são entidades autônomas – são parte da estrutura oficial – mas têm algum papel em mediar disputas. Um mercado de trabalho muito aquecido, de alta demanda e baixo desemprego, faz com que as empresas com frequência disputem funcionários, dando mais capacidade de pressão aos trabalhadores.
Outro tema importante ligado ao trabalho é a situação dos migrantes com documentação irregular. Na China é preciso autorização do governo para mudar de cidade ou sair do campo para a zona urbana. Esse sistema de permissões, conhecido como hukou, vigora desde o início do regime comunista e tem sido usado pelo governo para tentar manter o êxodo rural sob controle, impedindo o inchaço das metrópoles. Na prática, resultou em muita migração não-autorizada – estima-se hoje algo em torno de 300 ou 400 milhões de trabalhadores nessas condições (Young, 2013).
Sem o hukou, os trabalhadores – e seus filhos – não podem acessar serviços públicos, como escolas ou hospitais. Em tese, podem ser relocados à força para seu local de origem a qualquer momento. As autoridades fazem vista grossa a esses migrantes, pois eles são necessários para as empresas, mas a precariedade de sua condição os torna também bastante vulneráveis diante de eventuais conflitos com os patrões. Com frequência, isso leva à separação de famílias, divididas entre os pais empregados na cidade e os filhos vivendo com os avós no campo, reunidas em poucas ocasiões, como no importante festival do Ano Novo Lunar, em fins de janeiro.
Há esforços de movimentos sociais e organizações não-governamentais (ONGs) para auxiliar esses trabalhadores, mas o governo só aceita esse tipo de engajamento na medida em que ele se limita a questões de caridade e filantropia. Tentativas de organizar os migrantes em sindicatos autônomos, por exemplo, foram duramente reprimidas (Fu, 2018). O governo teme o que Deng chamava de “doença polonesa” – o surgimento de um movimento operário fora do controle do Estado, como o Solidariedade de Lech Walesa (1943-).
Talvez a mobilização mais próxima do espírito dos protestos de 1989 tenha sido a Carta 08, um manifesto pró-direitos humanos de cerca de 300 artistas e intelectuais lançado às vésperas das Olimpíadas de Pequim em 2008. Inspirado na Carta 77 dos tcheco-eslovacos, demanda um amplo plano de reformas: abolição do sistema de partido único, eleições democráticas, independência do Judiciário, implementação de um regime federalista. O manifesto teve grande repercussão internacional e foi decisivo para que seu líder, o crítico literário Liu Xiaobo (1955-2017), ganhasse o Nobel da Paz em 2010 (Osnos, 2015).
A repressão aos signatários foi rápida. Centenas foram presos e interrogados. O próprio Liu morreu na prisão, de câncer, após anos no cárcere. Outro signatário ilustre, o artista plástico Ai Weiwei (1957-), foi preso brevemente e acabou deixando a China para fugir do assédio das autoridades. O caso dele impressionou por se tratar de um intelectual mundialmente respeitado e por vir de uma família com forte tradição comunista. Nem a fama, nem o prestígio junto ao partido, o protegeram.
Por fim, mas não menos importante, há também o ativismo de minorias étnicas e religiosas: os budistas do Tibete, os muçulmanos de Xinjiang (oeste da China) e os adeptos do grupo Falun Gong. Nos dois primeiros casos, há o conflito entre esses grupos sociais e o Estado chinês pelo controle de regiões consideradas estratégicas por seus recursos naturais e localização junto às fronteiras. O governo estimula a migração de chineses da maioria han para esses territórios e há disputas com os habitantes locais, além de ocasionais choques violentos em protestos ou na ação de separatistas. A situação em Xinjiang tem sido brutal nos últimos anos, com prisões em massa nos campos de detenção e a implementação de um duro regime de vigilância.
Fundada em 1992, a Falung Gong é um grupo religioso que mistura elementos de várias culturas, além de atividades físicas. A doutrina é inócua, mas seu crescimento acelerado – até 100 milhões de praticantes no fim da década – despertou receios no governo, que teme o estabelecimento de organizações amplas da sociedade civil fora de seu controle. As autoridades iniciaram perseguições aos adeptos da Falun Gong, com prisões e torturas, que levaram aos maiores protestos em Pequim desde o massacre da Praça da Paz Celestial. O grupo foi tornado ilegal na China, mas continua a crescer no exterior (Osnos, 2015; Johnson, 2017).
Conclusão
A Praça da Paz Celestial é hoje um dos espaços urbanos mais vigiados do mundo. O acesso a ela é controlado por meio de barreiras que envolvem policiais, revistas e máquinas de raio X. Toda sua área é monitorada por câmeras, razão pela qualé muito difícil entrar com cartazes ou outros materiais de protestos. Aquele que tentar realizar algum ato desse tipo, provavelmente, será preso em questão de segundos.
O governo chinês continua a temer o simbolismo associado à praça. Sediada em frente à entrada da Cidade Proibida, o antigo palácio imperial, ela é uma grande área de paradas junto a alguns dos principais prédios públicos do Pequim. Tem uma história rica em termos de ativismo social, que inclui o já mencionado Movimento 4 de Maio, a proclamação do regime comunista (1949) e as manifestações de 1989. É um dos locais mais visitados da China, frequentado por multidões de turistas do mundo todo.
O governo tem se recusado a discutir o massacre e menções a ele são fortemente censuradas na imprensa e na Internet. A geração mais jovem na China continental pouco sabe a seu respeito, embora o tema seja bastante presente em Hong Kong e em Taiwan. É difícil acreditar que o silêncio será quebrado neste 30º aniversário, em particular no contexto de mais repressão política que tem caracterizado o governo do presidente Xi Jinping (1953-) (Economy, 2018; Minzer, 2018).
Contudo, fica o lembrete de que a China pós-massacre também é o palco de muitos movimentos de protesto e de diversos tipos de ativismo político. Suas mobilizações podem não ser tão impressionantes e abrangentes quanto a de 1989, mas dizem respeito a temas fundamentais do cotidiano e dos direitos humanos dos chineses.
[1] Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPER), professor-adjunto do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Referências Bibliográficas
ECONOMY, Elizabeth. The Third Revolution: Xi Jinping and the new Chinese state. Oxford: Oxford University Press, 2018.
FU, Diana. Mobilizing Without the Masses: control and contention in China. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.
JOHNSON, Ian. The Souls of China: the return of religion after Mao. Nova York: Pantheon Books, 2017.
LEE, Ching Kwan. Against the Law: labor protests in China´s rustbelt and sunbelt. Los Angeles: University of California Press, 2007.
LEONARD, Mark. What Does China Think? Londres: Fourth Estate, 2008.
LIM, Louisa. People´s Republic of Amnesia: Tiananmen Revisited. Oxford: Oxford University Press, 2014.
MARTI, Michael. A China de Deng Xiaoping: o homem que pôs a China na cena do século XXI. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2007.
MCGREGOR, Richard. The Party: the secret world of China´s communist rulers. Nova York: HarperCollins, 2010.
MINZER, Carl. End of an Era: how China´s authoritarian revival is undermining its rise. Oxford: Oxford University Press, 2018.
OSNOS, Evan. A Era da Ambição: em busca da riqueza, da verdade e da fé na nova China. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2015.
PILS, Eva. Human Rights in China: a social practice in the shadow of authoritarianism. Cambridge: Polity Press, 2017.
PINHEIRO-MACHADO, Rosana. “A Lição dos Chineses sobre como Protestar em Tempos Autoritários”. The Intercept Brasil. Publicado em 30 de abril de 2019. Disponível em: https://theintercept.com/2019/04/29/licao-dos-chineses-protestos-china/.
SANTORO, Maurício. Ditaduras Contemporâneas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2013.
SPENCE, Jonathan. Em Busca da China Moderna: quatro séculos de história. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1996.
YOUNG, Jason. China’s Hukou System: Markets, Migrants and Institutional Change. Londres: Palgrave MacMillan, 2013.
ZHAO, Ziyang, BAO Pu, CHIANG Renée e ADI, Ignatius. Prisoner of State: The Secret Journal of Premier Zhao Ziyang. Nova York: Simon & Schuster, 2009.
Referência imagética:
https://istoe.com.br/o-massacre-na-praca-da-paz-celestial/ (Acesso em 2 de junho de 2019).