Fabio Magalhães Candotti[1]
Entre o fim de 2017 e o ano de 2018, foram lançados sete livros sobre crime, segurança pública e prisões em São Paulo. Escritos que podem ser considerados frutos maduros de engajamentos intelectuais variados e crescidos ao longo de duas décadas, em meio a diálogos intensos entre si. A proximidade das publicações expressa um processo comum e mais amplo, cuja potência encontra-se na sua diversidade, capaz de tornar compreensíveis diferentes processos de transformação histórica que atravessaram a vida paulista e brasileira das últimas décadas. Processos que aí estão, muito vivos, talvez em seu momento mais luminoso e terrível.
Dentre os sete livros, A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, de Bruno Paes Manso e Camila Dias, oferece uma narrativa detalhada das mudanças nas relações – ou na “guerra” – entre as “cúpulas” do Primeiro Comando da Capital (PCC) e de outras facções brasileiras e entre essas e as “autoridades” da segurança pública e do sistema carcerário. O PCC é, por um lado, definido politicamente, como “governo paralelo” e “sindicato” nas prisões e periferias. É por essa face política – e opressora – que atribuem a ele o protagonismo na grande queda da taxa de homicídios no estado de São Paulo durante os anos 2000. Acontecimento que reaparecerá de modo mais detalhado em outros livros dessa leva. Por outro lado, a facção é uma “agência reguladora” e “uma grande empresa”, principalmente de tráfico de drogas.
A história da expansão da facção é narrada como um deslocamento, no qual o plano econômico prevalece sobre o político. E é analisada tanto como efeito colateral das políticas estatais de segregação territorial, encarceramento e extermínio, quanto pela incapacidade estatal de entender a facção, de agir de maneira coordenada e inteligente para bloquear a atuação da cúpula criminosa, superando as competições internas e garantindo o monopólio legítimo da violência pelo estado. O livro, nesse sentido, aperfeiçoa de maneira muito competente uma narrativa bastante vitoriosa no campo intelectual e político da esquerda, que sustentou a defesa de uma gestão democrática e humanista da segurança pública e do sistema carcerário nos últimos 30 anos.
Os demais livros se distanciam bastante dessa interpretação, oferecendo narrativas e análises não centradas nos grandes personagens e na oposição entre crime e estado como dois sujeitos em guerra.
O livro de Adalton Marques, Humanizar e Expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo, demonstra como uma “razão democrática e humanista” colaborou na expansão do encarceramento paulista – de 10 mil presos/as em 14 unidades, em 1983, a 240 mil presos/as em 173 unidades, atualmente (com 10 em construção). Essa razão emerge pela estabilização, a partir do governo Franco Montoro (1983-1987), de um regime de enunciação que conectou três noções centrais para o debate público na passagem dos anos 1970 aos 1980: democracia, segurança pública e direitos humanos. Regime que abstraiu essas noções de seus dissensos iniciais – que atravessavam as atuações da Igreja Católica, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Comissão Teotônio Vilela (CTV) – e deu sentido, ainda nos anos 1980, ao aumento de investimentos no sistema penal e nas polícias, ao apoio à prisão temporária e à deflagração da primeira “operação” policial dos novos tempos “democráticos” (Operação Polo).
Paralelamente, o livro persegue o debate acadêmico, do mesmo período, sobre “criminalidade” e “violência urbana”, demarcado pela oposição teórico-política entre o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e o Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (CEDEC). Desse confronto nasce uma Sociologia (paulista) da Violência, institucionalizada em 1987 com a criação do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Três efeitos sustentaram essa invenção: o enfraquecimento de teorias que correlacionam pobreza e criminalidade; a identificação de uma cultura política autoritária entre as classes populares; e a legitimação como ciência de uma teoria institucionalista, que explica a criminalidade – e, como no livro de Manso e Dias, projeta seu enfrentamento – em função das reformas estatais.
Com o Massacre do Carandiru, em 1992, essa ciência e a razão democrática e humanista se entrelaçam e passam a informar as denúncias internacionais contra o estado brasileiro e, em seguida, os programas e planos de direitos humanos e segurança pública dos governos estaduais e federais do PSDB entre 1995 e 2002, cujo efeito foi a multiplicação de penitenciárias. Simultaneamente, desaparecem as palavras dos/as presos/as, tão centrais para a militância da década anterior, num silenciamento que se exacerba na medida em que o “crime organizado” desponta como termo-chave. Na sequência, os governos federais do PT intensificam essa conjugação perversa – e neoliberal – entre democracia e punitivismo.
O livro, contudo, não se fecha na crítica e convida ao fortalecimento de uma antiga “esquizofrenia cívica” – assim definida por Paulo Sérgio Pinheiro – do debate público sobre segurança: aquela que permite que as perspectivas institucionalistas dominantes convivam, mesmo que tensionadas, junto às que buscam correlações complexas entre pobreza e criminalidade e, ainda, com as das pessoas que estão presas e/ou no crime.
Os outros cinco livros reforçam essas duas últimas perspectivas descartadas historicamente pela gestão democrática e humanista da segurança pública. Todos reivindicando a etnografia como processo de conhecimento. Dentre eles, Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida, de Daniel Hirata, e Irmãos: uma história do PCC, de Gabriel Feltran, oferecem, de maneiras distintas, uma interpretação sociológica sobre o crime em São Paulo, atenta à experiência de quem vive nas fronteiras entre a prisão e as ruas, o legal e o ilegal, o crime, o trabalho e a religião.
Sobreviver na adversidade é norteado pelas trajetórias de três trabalhadores que viveram, entre os anos 1980 e 2000, numa das favelas consideradas mais “violentas” de São Paulo. O primeiro é um “fiscal dos fiscais” do transporte coletivo e, principalmente, dono de uma “birosca”, comércio e ponto de encontro para criação negócios legais e ilegais. O segundo é um ex-perueiro cuja trajetória é marcada pelo processo de regularização do transporte coletivo, no qual convergem transformações na política partidária, nos controles de estado e no crime. Por último, há o “patrão” de uma “biqueira” (ponto de venda de drogas), em cuja história aparecem os deslocamentos nas relações entre crime, polícia e prisão.
Conceito central nesse livro é o de “ilegalismos”, extraído do clássico de Foucault, Vigiar e Punir, cuja releitura – no original – foi crucial para essa geração de pesquisadores/as. Tratam-se de práticas que não se definem por oposição à lei, mas que jogam com/nas fronteiras do legal-ilegal, tensionando e produzindo certos ordenamentos sociais e suscitando toda uma gestão desigual, diversificada em seus agentes e seletiva em seus controles. Entre as classes populares, essas práticas são inseridas numa experiência de enfrentamento de dificuldades impostas pela distribuição desigual da riqueza; algo que, contudo, não se reduz ao plano econômico, referindo-se a uma “luta cotidiana e reflexiva” por “formas de respeito e dignidade” em um mundo marcado pelas incertezas.
É nesses termos que a cidade é analisada como um “bazar” que inclui a negociação de “mercadorias políticas” reguladas e disputadas através de um “mercado de proteção”. Nesse, crime e estado não se situam paralelamente, nem em oposição; se há tensões, há também convergências que fazem funcionar diversos negócios, traçando e retraçando as fronteiras entre o legal e o ilegal e – para as classes populares – entre a vida e a morte.
Essa interpretação reaparece no livro de Feltran, Irmãos. Escrito para um público leigo, é o que sintetiza de maneira mais generosa o acúmulo coletivo de toda essa geração de pesquisadores/as, expressando a positividade da “esquizofrenia cívica” defendida por Marques.
Por um lado, o PCC aparece, parcialmente, como efeito colateral das políticas de estado e mais uma vez, economia e política são suas dimensões centrais. Por outro lado, aparecem as transformações do capitalismo periférico povoado por continuidades entre mercados legais e ilegais, que funcionam reproduzindo uma gritante desigualdade econômica e um jogo de vida e morte. Em uma passagem impressionante, o autor descreve a cadeia de negócios construída a partir de caminhonetes roubadas: desde a ação de jovens inexperientes – que, em troca de 4,5 mil reais, tornam-se alvos privilegiados de homicídios – até o mercado bilionário e pacífico dos seguros e seus leilões legalizados; passando pelos desmanches clandestinos, pelo mercado informal de autopeças e pelas trocas de veículos por drogas nas fronteiras nacionais e sua distribuição no varejo nacional e internacional.
Atravessando essa cadeia em posições diversas, o PCC não é descrito, contudo, em função das ações de uma cúpula empresarial ou político-militar. A metáfora encontrada pelo autor para pensá-lo é a da sociedade secreta: uma irmandade voltada ao progresso material de seus membros, sejam eles mais ou menos pobres, através de alianças pautadas na igualdade e no respeito. Nesses termos, a inserção da facção nos mercados se dá, sobretudo, pelas atuações autônomas de seus membros – e é isso o que explica sua capacidade expansiva. Mas ela também se insere por uma dupla “regulação”: a dos preços de mercadorias ilícitas (que influencia os das lícitas) e uma ação político-moral sobre as relações de poder, com implicações diretas no controle das armas de fogo e dos homicídios. Presença que institui um regime normativo que tensiona outros dois: o religioso e o estatal – não somente em sua face policial, como em sua face político-partidária e militante.
É por essa via que o livro descreve e interpreta a difusão de um dispositivo – também discutido por Manso e Dias e por Hirata – que, nos anos 2000, passou a ser agenciado em nome do PCC e que se tornou o mecanismo central para a redução radical da taxa de homicídios em São Paulo: o “debate”. Trata-se de uma forma de justiça distinta e alternativa à estatal, cuja principal função foi bloquear os ciclos infinitos de vingança que marcaram as periferias nos anos 1990.
Em Proibido roubar na quebrada: território, lei e hierarquia no PCC, Karina Biondi oferece uma análise dessa justiça. O livro consiste numa etnografia das “práticas de conhecimento” de pessoas imersas no crime. Tentando ver como elas vêm o PCC, a autora encontra as maneiras como ele é “feito”. Algo que, entretanto, não inclui exatamente proibições e, muito menos, território, lei e hierarquia. Ao menos não na forma como a perspectiva estatal costuma defini-los.
Dessa outra perspectiva, o PCC é um “movimento” feito de muitos movimentos, cuja matéria mais importante são as “ideias”. Das menores conversas aos famosos “salves gerais”, trata-se sempre disso: “ideias” – que, sempre em fluxo, podem ser mantidas vivas ou abandonadas à morte. No entanto, pode-se impor outras coisas a lugares e pessoas – um “ritmo”, por exemplo – mas não uma “ideia”. Algo que foi historicamente reforçado pela noção de “igualdade”, adicionada ao lema do PCC em 2004. O desafio é fazer uma “ideia” “repercutir”. Para isso, é preciso ter o “conhecimento” de outros/as – ou seja, uma relação de “respeito” construída ao longo de uma “caminhada”. E é preciso, também, ter “visão” e saber antecipar arranjos de movimentos ou “situações”. Enfim, é preciso saber encontrar as “brechas” nas “ideias” de outrem. Quem não tem essas capacidades, tende a lançar uma “ideia errada”, difícil de ser incorporada no “movimento”. Mas quem tem, pode assumir uma “responsa” no PCC e ser batizado como “irmão”.
Essa posição implica no convite a participar de “debates”, descritos no livro como espaços de circulação irrestrita e confronto de “ideias” para uma deliberação coletiva sobre as “consequências” futuras de ações pretéritas. Espaço temporário onde se buscam consensos entre pessoas em conflito e onde os “irmãos” podem ou não dar um aval para ações de outrem – desde a cobrança de dívidas monetárias até a morte, passando por expulsões, espancamentos ou simples repreensões verbais. Contudo, diferentemente da justiça estatal, que visa manter a ordem, trata-se aqui de fazer prevalecer o “certo” – que pode ser também o que é “justo”. O que está em jogo é uma ética. Essa “justiça” – bem como a noção de “lei do crime” – tem aí um sentido metafórico, não sendo nada que possa substituir a justiça estatal, nada que preencha um vazio deixado pelo estado. Diante deste, há outra luta, às vezes profundamente legalista, contra um vasto conjunto de injustiças, humilhações e sofrimentos.
O estado, nesses termos, não produz o PCC por suas carências e ausências, mas por suas ações, pela maneira como compõe “situações” e suscita “ideias”. O livro de Rafael Godoi, Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos, radicaliza essa proposição de Biondi, lançando a hipótese de que o sistema carcerário é determinante na produção do PCC como “movimento”. Mas o objeto do livro não é a facção e, sim, o funcionamento desse sistema. Se a política carcerária contemporânea é conduzida, publicamente, sob o signo da pura “contenção” de criminosos, e não mais da ressocialização, o autor demonstra como a punição se viabiliza através de uma gestão dos fluxos de pessoas, coisas e informações que cria e controla os “vasos comunicantes” que ligam o dentro e o fora das prisões.
Isso fica evidente, primeiro, pelo “regime de processamento” estatal. A política de progressão de pena, no plano jurídico, ocorre junto a uma profusão de documentos ilegíveis e de difícil acesso, que suscita uma mobilização individualizada de presos/as e familiares para entender, acompanhar e fazer processos andarem. Essa opacidade da justiça produz um sofrimento específico, relativo à indefinição do tempo da pena. Por outro lado, dentro das prisões, o velho exame disciplinar do comportamento – por psicólogos, por exemplo – perdeu espaço para uma “gestão dos castigos” – por “sindicâncias” – que opera justamente pelo fechamento de vasos comunicantes legalmente instituídos, complicando ainda mais o acesso à justiça. Juntas, essas duas pontas constituem uma “estratégia de responsabilização” dos/as presos/as e familiares e uma sincronização do tempo de dentro e de fora das prisões. Tempo marcado pela urgência.
O sofrimento produzido por essa estratégia é agravado pelo modo como as prisões foram espalhadas pelo território paulista nas últimas décadas. Primeiro, isso produz uma intensificação das incertezas sobre o lugar de cumprimento da pena, em meio a transferências constantes de presos/as, nem sempre acompanhados/as de seus processos. Essa incerteza espacial se soma à “penúria material” do cárcere – entendida pelo autor como “modo de investimento” do estado. Mais um elemento que incita mobilizações: sem as familiares – quase todas mulheres – as prisões simplesmente não funcionariam, pois faltaria quase tudo: artigos de higiene, remédios, roupas, comidas – e, sim, celulares, que servem menos ao crime do que à própria gestão informal e ilegal de fluxos absolutamente vitais. Por fim, o “dispositivo carcerário”, associando justiça e segurança pública, expande seus controles sobre os longos e variados percursos dessas mulheres, com seus filtros, inspeções, blitz no meio das estradas, enfim, mil humilhações.
Portanto, diferentemente do que geralmente se afirma, esse dispositivo opera produzindo relações sociais que atravessam os muros das prisões. Essa produção é o tema de Sobre casos e casamentos: afetos e amores através de penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona, de Natália Corazza Padovani. Obra que é expressão de uma já sólida tendência nos estudos de prisão, cada vez mais atentos às instituições “femininas” – que não encerram apenas mulheres, assim como as prisões “masculinas” não encerram apenas homens. Movimento marcado pelo encontro fecundo das teorias sobre crime, segurança, justiça e prisão com os estudos de gênero e sexualidade, há tempos atentos à interseccionalidade com outras diferenças – de raça, etnia, nacionalidade, origem, geração etc.
Nesse livro, esse encontro possibilitou uma análise de um conjunto vasto e diverso de histórias de vidas e relações, transformadas – e não destruídas – pela prisão. Histórias tramadas com afetos, ajudas e amores – não sem desafetos, solidões e desilusões – mediados por cartas, celulares, dinheiro e mercadorias lícitas e ilícitas; e histórias atravessadas a todo momento pelas forças do estado e do crime. A autora dá atenção especial a um antigo “vaso comunicante” prisional que são as cartas. Através desses objetos tão pessoais, mulheres presas não só mantêm e constroem relações afetivas como documentam suas vidas de maneira legível para enfrentar e negociar com as forças que regulam a socialidade prisional – seja a justiça estatal, sejam os movimentos do PCC, que por vezes se justapõem, produzindo diferenças e assimetrias de gênero e sexualidade. Nessas negociações, “famílias” são feitas e desfeitas.
Acompanhando suas interlocutoras fora das grades, a autora encontra as tantas formas de “voltar para a casa” e viver “em liberdade” em meio a rearranjos das relações tecidas do lado de dentro, a percursos de trabalho irregulares por entre as fronteiras do legal e ilegal e a mobilidades transnacionais que conectam São Paulo, Barcelona e outros lugares. O livro, ao fim, lançando mais uma história – sobre uma traficante que escondeu seu ofício do namorado até ser presa e o arrastou para a socialidade prisional –, convida a refletir sobre os limites de um discurso muito comum nos movimentos sociais que toma essas mulheres como vítimas dos homens e de seus negócios ilegais, “capazes de tudo pelas suas famílias”.
Juntos, os livros de Marques, Hirata, Feltran, Biondi, Godoi e Padovani – ao lado de outros tantos escritos brasileiros e estrangeiros das últimas décadas[2] – convidam a um deslocamento difícil no debate público sobre crime, segurança, justiça e punição. Em tempos de ascensão política de uma nova ultradireita, muitos esforços de resistência parecem tentar dar uma sobrevida às ideias e discursos democráticos e humanistas de matriz liberal que pareciam delimitar o campo político-institucional há menos de uma década. Esforços cuja nostalgia se recusa a pensar como a “segurança” tornou-se uma pauta central justamente ao longo dos últimos trinta anos de “redemocratização”, fazendo da oposição entre “trabalhadores” e “bandidos” a grade de inteligibilidade de um governo micropolítico da vida urbana.
Atentos a essa expansão securitária e punitivista, esses livros podem ser considerados herdeiros da crítica ao humanismo liberal – de Foucault ao feminismo decolonial. Ancestralidade que atualizam apontando para uma conjugação perversa entre neoliberalismo, democracia e punitivismo; e iluminando as lutas ordinárias das classes populares contra injustiças e sofrimentos em meio a adversidades nunca superadas pelos tempos de “inclusão social”. Por isso, são livros que oferecem ferramentas para, primeiro, escapar da perspectiva dominante – inclusive à esquerda – que reduz a “violência” nas periferias e prisões ao domínio do “crime organizado”, geralmente tomado como um sujeito simétrico ao estado, que ocupa seus vazios. Com isso, abrem caminhos para compreender a sustentação micropolítica da guinada reacionária no plano macropolítico brasileiro. Um solo que inclui o encarceramento em massa e a gestão desigual e homicida dos ilegalismos populares, que tem nas polícias – talvez a principal “base” do novo executivo federal – seus agentes centrais.
Assim, esses livros talvez sirvam igualmente para antecipar os desdobramentos mais terríveis e irreversíveis dessa guinada. Mas para que essa potência se realize, essas pesquisas precisam se ligar a outras, nascidas em contextos muito distintos. Vista de muitos outros lugares, salta aos olhos a grandeza da riqueza de São Paulo – essa verdadeira exceção mundial. Como cantou Mano Brown – cujas palavras povoam quase todos os livros: “São Paulo tem dinheiro pra carai pa tentar, né? Sem perder o foco, olha o fluxo…”. Pelo menos aqui, no Norte do Brasil, terra de “massacres” e novo centro de preocupações securitárias com o “crime organizado” e as “fronteiras”, as semelhanças são muitas, mas a riqueza é outra, e a expansão de facções e de políticas de estado sudestinas encontram outros processos históricos e outras micropolíticas da vida urbana.
Referências bibliográficas
BIONDI, Karina. Proibido roubar na quebrada: território, hierarquia e lei no PCC. São Paulo: Terceiro Nome, 2018.
FELTRAN, Gabriel. Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
GODOI, Rafael. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2017.
HIRATA, Daniel. Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida. São Carlos: EdUFSCar, 2018.
MANSO, Bruno Paes; DIAS, Camila. A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Ed. Todavia, 2018.
MARQUES, Adalton. Humanizar e Expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo. São Paulo: IBCCRIM, 2018.
PADOVANI, Natália Corazza. Sobre casos e casamentos: afetos e amores através de penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona. São Carlos: EdUFSCar, 2018.
RACIONAIS MC’s. Cores & Valores. Cosa Nostra: Boogie Naipe, 2014.
[1] Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas e coordenador do grupo de pesquisa ILHARGAS. Atualmente, também coordena o projeto de pesquisa “Linchamentos e segurança de rua em três metrópoles brasileiras” (CNPq).
[2] É importante lembrar que, com exceção dos livros de Feltran e de Manso e Dias, os demais são todos versões pouco modificadas de teses de doutorado, sendo duas orientadas por Vera Telles (Hirata e Godoi), na Universidade de São Paulo (USP); duas por Jorge Villela (Marques e Biondi), na Universidade Federal de São Carslo (UFSCAR); e uma por Adriana Piscitelli (Padovani), na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Três intelectuais cujos trabalhos são de primeira importância para todo esse campo de estudos.
Referência imagética: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/05/numero-de-presos-em-sao-paulo-quadruplica-sob-governos-do-psdb.shtml