Resenha de Tese de Doutorado em Ciência Política defendida no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, em 2017.
Emerson Maione
A tese teve como objetivos examinar as lutas de saber e disciplinares em torno da constituição da Justiça de Transição (JT) como objeto de saber e as lutas em torno da sua institucionalização global, o que foi feito por meio da análise da parceria entre o International Center of Transitional Justice (ICTJ), a maior Organização Não Governamental (ONG) do campo, e a Organização das Nações Unidas (ONU); por fim, estudou-se como, a JT é inserida e apropriada pelos atuais dispositivos de segurança planetários. Ao analisarmos a JT como conceito e como problema político, buscamos mostrar como ela passou por modificações e deslocamentos contínuos.
Para mapearmos estas constantes modificações e ampliações, utilizamos o método genealógico, sugerido pelo filósofo francês Michel Foucault. Tal método visa examinar as condições de possibilidades dadas, em um determinado período histórico, para a produção de regimes de verdade, de conformação de táticas de governo, da emergência de formas de resistência política e do estabelecimento das mais diversas configurações das relações de poder. Por isso, a genealogia não foca em “objetos” rígidos e supostamente isoláveis do conjunto dos acontecimentos sociais. Voltada às controvérsias ao redor da definição e construção dos diversos “objetos”, a genealogia interpela os acontecimentos, discursos e práticas de poder interessada em identificar quais relações de poder e saber moldaram esse objeto. Como uma determinada questão, causa ou objetivo político é produzido enquanto “problema”, ou seja, enquanto um tema a ser equacionado, teorizado, classificado e regido por um conjunto específico de normas e práticas de governo.
De início, focamos no período do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, marcado pelas chamadas transições para a democracia na América Latina e pela desintegração do comunismo no Leste europeu, do qual partiram as primeiras discussões sobre os modos de auxílio a países que transitavam de um período autoritário para um período democrático. Assim, formou-se uma rede de políticos, acadêmicos, ativistas e experts, com o suporte de determinadas instituições, que visava formar um saber e possibilitar intervenções políticas para os países em suas transições. Nesse momento, foi criada a expressão “Justiça de Transição” ou “Justiça Transicional”, que visava captar este problema: como oferecer alguma medida de justiça para os países que passaram por períodos autoritários? Nessa tese, examinamos de perto como se forma um consenso normativo de que a JT deveria conter certos elementos: prover uma medida de “justiça”, de “verdade”, de reformas institucionais e de reparações econômicas para os que sofreram sob o jugo autoritário. Mostramos também como tal questão foi principalmente articulada por dois discursos acadêmicos, o do Direito e o da Ciência Política, que posteriormente viriam a ser criticados por outros saberes, como os da Antropologia e o da Criminologia crítica, abrindo todo um questionamento e problematização acerca do estado atual da teoria e prática da JT.
Posteriormente, focamos na formação, na atuação e nos objetivos do ICTJ que, ao lado da ONU, é a principal instância produtora de expertise e de internacionalização da JT. Assim, focamos na parceria entre essas duas organizações para entender e traçar essa internacionalização. Vimos como isso traz uma rearticulação da JT, deslocamento importante para a análise genealógica. No início do século XXI, a JT passou a compor como mais uma “ferramenta” nas Operações de Paz da ONU. Entretanto, argumentamos que mais do que uma “ferramenta”, como se apresenta no discurso oficial, a JT compõe uma tática de um dispositivo, o diplomático-policial, associado à governamentalidade planetária, interessada menos na “justiça” e na “verdade” do que na pacificação e estabilização do potencialmente “desestabilizador” e “ameaçador” Sul Global a fim de minimizar riscos e de evitar a interrupção de fluxos diversos: econômicos, de recursos naturais, de armas, de ilegalidades, tráficos diversos, entre outros. Destacamos como ela passa, então, a fazer parte do complexo estratégico da chamada Paz Liberal, composto de atores estatais, não estatais, civis-militares e público-privado em busca de seus objetivos.
Como conclusão, destacamos como a JT foi muito além de suas formulações originais, que focavam nos problemas transicionais latino-americanos, passando a compor táticas e racionalidades internacionais muito mais amplas, como a construção da paz da ONU, em um processo contínuo de incorporações e gestão de crises de novos problemas sociais, como questões de gênero, desenvolvimento e combate à corrupção. Desse modo, destacamos o lado altamente político de modelos, “caixa de ferramentas” e padrões internacionais que se reivindicam como neutros, independentes e apolíticos. Ao expormos o que chamamos de “tática JT” acoplada aos contemporâneos dispositivos de segurança globais, destacamos essas características desse campo móvel e centrífugo para manter o foco nas lutas, resistências, saberes e práticas que o envolvem e atravessam, em sua história política, efetiva e presente.
A tese se encontra disponível em:
Para pesquisas publicadas baseadas em materiais desta tese, ver:
MAIONE, Emerson. “Justiça de Transição na Teoria das Relações Internacionais: Realismo, Construtivismo e as Possibilidades de um Engajamento Crítico”. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, Dourados, v.3, n.6, jul./dez., 2014, p. 91-119.
MAIONE, Emerson e RODRIGUES, Thiago. “Genealogia e Agonismo como Metodologia nas Relações Internacionais: Reflexões a partir da Justiça de Transição”. Carta Internacional, v. 14, n 1, 2019, p. 153-176.