Felipe da Silva Freitas [1]
O sistema carcerário brasileiro vive em permanente estado de colapso e vulnerabilidade. Alimentação insuficiente e de má qualidade, inadequadas condições de higiene, celas sem ventilação e permanentemente úmidas e fétidas[2]. O quadro é de horror e assombra qualquer analista minimamente sensível[3].
A superlotação e a falta de gestão em termos de política criminal são os centros críticos do problema. Por um lado, predomina um total descompasso entre o número de vagas disponíveis e a velocidade das taxas de encarceramento, por outro vigora uma cultura hiperpunitiva que desconsidera o próprio texto constitucional e que reproduz cacoetes decisórios alheios às pesquisas da área, aos aprendizados institucionais das gestões prisionais e das experiências dos sistemas de justiça criminal em todo o mundo. Prende-se muito e se administra mal os serviços penais com excessiva violação de direitos e nenhuma eficácia em termos de controle do crime e da criminalidade.
De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão do governo federal responsável pela gestão do sistema prisional, em dezembro de 2019 havia no sistema penitenciário 748 mil pessoas privadas de liberdade no país sendo que, deste universo, cerca de 40% encontravam-se sob a condição de presos provisórios[4], ou seja, sem condenação e que, portanto, não tiveram ainda o pleno acesso à ampla defesa e ao contraditório, molas mestras do sistema acusatório brasileiro[5].
Nesse contexto é com verdadeiro pavor que pessoas privadas de liberdades e organizações que monitoram o sistema carcerário acompanham o avanço da epidemia do novo coronavírus no Brasil. Trata-se de um cenário facilitado para muitas infecções mediante uma população extremamente vulnerável e especialmente exposta a toda sorte de agravos, em especial no campo da saúde, e também um contexto propício ao aumento do poder das facções criminosas e mesmo para a ocorrência de brigas generalizadas, homicídios dentro das unidades, fugas e de motins[6]
A contaminação pelo coronavírus nas prisões é praticamente inevitável nesse cenário de absoluto caos. Mesmo que tenham sido adotadas medidas de suspensão das visitas e das entrevistas com advogados, as pessoas presas no Brasil acessam o mundo exterior através do contato com os próprios servidores do sistema e isso é o suficiente para ameaçar um cenário de exposição em massa ao vírus.
Já no primeiro mês de ascensão da pandemia no Brasil registram-se vários casos de pessoas infectadas em presídios, sobretudo nos estados da Bahia, Distrito Federal, São Paulo e Rio de Janeiro, inclusive com algumas mortes[7]. Os casos multiplicaram-se rapidamente e a contaminação se deu a partir de policiais penais que teriam contraído o vírus e infectado os presos que, por sua vez, o transmitiram entre si em ritmo muito acelerado. Em alguns casos, como o Complexo Prisional da Papuda, em Brasília, avançou-se para mais de 99 registros de contaminação em menos de 10 dias após a primeira notificação oficial[8].
As medidas adotadas pelas administrações prisionais e pelo sistema de justiça criminal, no que se refere à prevenção à pandemia de coronavírus no âmbito da população prisional são, como já dissemos, precárias e insuficientes[9]. O Ministério da Justiça, responsável por coordenar as ações entre as unidades federativas, insiste num discurso de negação da realidade e contrapõe-se às propostas formuladas pela sociedade civil no sentido de combater a superlotação e assegurar as condições de limpeza e higiene.
A partir das notícias veiculadas pela imprensa e pela análise dos boletins epidemiológicos locais vê-se que a vida das pessoas presas está ameaçada e que existem muitos riscos e responsabilidades em jogo diante dessa gravíssima situação.
Omissões, equívocos e conflitos institucionais: Governo Federal e Poder Judiciário no enfrentamento ao coronavírus nas unidades prisionais
A questão da assistência à saúde dentro das unidades prisionais é, como já pontuamos, especialmente preocupante. Apenas 4 em cada 10 estabelecimentos prisionais brasileiros possuem unidades básicas de saúde e, em muitas delas, o funcionamento é precário, muitas vezes sem equipe regular e insumos e medicamentos hospitalares necessários[10]. A condução dos presos às consultas e aos procedimentos médicos é outro problema. O baixo efetivo de agentes penitenciários associado a uma cultura institucional de baixa consideração pela condição de saúde das pessoas privadas de liberdade produz sérios agravos à saúde daqueles que permanecem sem atendimento adequado por anos, mediante a alegação de que falta médico, profissionais de segurança para realizar a escolta até o consultório da própria unidade, ou, nos casos em que o atendimento deve acontecer fora do estabelecimento prisional, da falta viatura para realizar a condução até o hospital.
Os resultados desse quadro traduzem-se em números assustadores com proliferação de doenças infectocontagiosas que, em condições adequadas, seriam facilmente tratadas e curadas. A tuberculose, por exemplo acomete 35 vezes mais pessoas dentro sistema prisional do que na comunidade externa[11].
De acordo com dados apresentados no âmbito do Projeto Cartas do Cárcere[12], que analisou as cartas que foram enviadas no ano 2016 à Ouvidoria Nacional de Serviços Penais, a questão do direito à saúde é demandada por cerca de 60 % do total de petições encaminhadas pelas pessoas privadas de liberdade. São demandas que dizem respeito a episódios lastimáveis de maus tratos e de desassistência básica, como casos de pessoas com doenças crônicas e sem acesso a medicamento, pessoas com doenças respiratórias e expostas a ambientes úmidos e sem ventilação, assim como carência de exames médicos e laboratoriais:
O que as cartas revelaram é que as prisões são instituições insalubres para os milhares de seres humanos que estão sob a tutela do Estado ao longo dos anos. As más condições não são resultado da falta de legislação e normas protetivas; da escassez de alimentos ou de água potável; do baixo investimento financeiro e técnico ou mesmo de recursos humanos desqualificados. Elas se circunscrevem no processo de violência institucional, no qual os direitos são violados para punir e controlar os indivíduos, sobretudo, porque estes homens e mulheres não são considerados seres humanos. (…)
Em cartas enviadas à Ouvidoria do DEPEN, os presos afirmam que o que está sendo oferecido em termos de condições para o cumprimento da pena é tortura, desaso e desrespeito.[13]
Diante desse quadro é evidente que a expansão de uma pandemia ocorra em níveis acelerados e que se exija dos responsáveis pela administração prisional medidas rápidas e precisas no sentido de: (a) evitar o contágio, (b) criar condições para assistência nos casos em que eventualmente houver contaminação. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação n. 62 que exorta os juízes a adotarem medidas como a reavaliação das prisões provisórias, a excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva, a concessão de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto e a transferência de presos do grupo de risco para prisão domiciliar.
A medida do Conselho foi saudada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, que reconheceram o enfrentamento ao problema da superlotação como medida necessária para o desenvolvimento das outras ações de enfrentamento à pandemia no contexto prisional. No mesmo sentido, mais de 70 organizações da sociedade civil pronunciaram-se apelando para que os juízes acolhessem a recomendação do CNJ e atuassem para assegurar as condições para o enfrentamento à pandemia.
No entanto, a despeito das amplas manifestações em defesa da posição do CNJ, a Recomendação n. 62 continuou sendo duramente criticada pelo Ministério da Justiça e pelo governo federal e foi acolhida apenas parcialmente pela magistratura e pelo Ministério Público no Brasil. No âmbito do Poder Judiciário, reiteraram-se decisões com indeferimento de pedidos Habeas Corpus coletivos com argumentos de que a liberação de presos perigosos poria em risco a ordem pública e que haveria nas prisões condições para a prevenção e o tratamento adequados ao coronavírus.
Ambas as alegações são falsas e justificam-se apenas dentro de um esquema argumentativo que privilegia a hipercriminalização e abandona a responsabilidade estatal em preservar o direito à saúde das pessoas privadas de liberdade. Na prática, a Resolução n. 62 fala apenas em casos de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça e prioriza os casos de pessoas integrantes do grupo de risco, ou seja, pessoas cuja permanência na prisão poderá significar sério agravo à sua saúde e potencial contaminação de terceiros.
Assim, não se sustenta a alegação de que seria possível, dentro das unidades prisionais, precárias e insalubres, prover medidas de prevenção e tratamento para o novo coronavírus sem que se empreendam drásticas medidas de desencarceramento. Na prática, o que se faz ao negar o acionamento dos dispositivos legais que já permitem a liberdade (ou o cumprimento da pena na modalidade domiciliar) no contexto da pandemia é condenar a morte pessoas que estão sob custódia do Estado pondo também em risco todo o sistema de saúde pública do país.
A segurança pública e a preservação da vida a Constituição Federal em debate[14]
A Constituição Brasileira e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário são expressos em vedar a pena de morte ou a prática de penas cruéis, desumanas ou degradantes. Nesse sentido, é ilegal toda privação de liberdade que importe em violação de direitos fundamentais, de modo que é inconstitucional o argumento que impõe o cumprimento de pena em condições que ponham em risco a saúde física e mental do custodiado.
No caso de pessoas privadas de liberdade é duplo o dever do Estado de garantir o acesso à saúde, pois além do preceito geral que impõe aos governos medidas que assegurem atendimento médico de qualidade a todos/as, sem qualquer forma de preconceito ou discriminação, há também o dever e a responsabilidade de zelar pela integridade daqueles que se encontram sob a custódia do Estado.
Desse modo, o risco de recorrência em práticas criminais por aqueles que serão postos em liberdade, monitorados por meio de tornozeleira eletrônica ou que cumprirão a pena sob a modalidade de prisão domiciliar, não é argumento lícito para negar direitos ou para pôr em risco a saúde das pessoas privadas de liberdade. O direito à vida é um valor ético e jurídico de máxima grandeza que deve ser assegurado mediante a utilização de todos os meios lícitos disponíveis para tanto, não sendo razoável o argumento genérico e impreciso da preservação da ordem pública para a manutenção de prisões ilegais[15].
As decisões que sistematicamente tem negado os pedidos de liberdade nos casos de presos dos grupos de risco no contexto da pandemia e as medidas autoritárias adotadas pelo Ministério da Justiça, no sentido de inviabilizar o enfrentamento ao problema da superlotação, representam riscos altíssimos à garantia das vidas das pessoas privadas de liberdade e poderão produzir um verdadeiro extermínio dentro das unidades prisionais de todo o país. Como destaca Ana Flauzina, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), “Foram as práticas de tortura e de descaso que criaram as condições para o surgimento de facções criminosas que hoje aterrorizam a população. É o descaso com as polícias, em especial no âmbito prisional, que as fazem presas fáceis para o aliciamento por grupos milicianos em todo o território nacional. Ou seja, o desprezo pela vida de pessoas encarceradas redunda em piora na segurança coletiva. A história já nos ensinou que a fatura das políticas de extermínio dentro das grades é, portanto, quitada por todos.”[16]
É fundamental debater com seriedade o tema e apurar as responsabilidades – individuais e institucionais – daqueles/as que deveriam atuar firmemente para prevenir e tratar os casos de coronavírus no sistema prisional, mas, que tem preferido alimentar o punitivismo e mandar às favas os direitos humanos.
[1] Felipe da Silva Freitas é doutorando em direito pela Universidade de Brasília; membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana e integrante do projeto Infovírus, prisões e pandemia.
[2] Agradeço especialmente aos/as pesquisadores/as do projeto Infovírus: prisões e pandemia que colaboraram largamente na produção e sistematização dos dados aqui utilizados.
[3] Durante encontro com empresários paulistas em 2013 o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, reconheceu a precária situação do sistema carcerário brasileiro e declarou: “Do fundo do meu coração, se fosse para cumprir muitos anos em alguma prisão nossa, eu preferia morrer.” UOL. Ministro da Justiça diz que prefere morrer a ficar preso por anos no país. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2012/11/13/ministro-da-justica-diz-que-prefere-morrer-a-ficar-preso-por-anos-no-pais.htm . Acesso em 25 de abril de 2020.
[4] DEPEN. Departamento Penitenciário Nacional. Relatório Sintético – Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2019.
[5] O sistema constitucional brasileiro estabelece um modelo acusatório caracterizado, entre outras coisas, por: “clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; o juiz como um terceiro imparcial; tratamento igualitário entre as partes; contraditório e possibilidade de resistência (defesa); possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição” Jr. LOPES, Aury. Direito Processual Penal. 15ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2018, p. 43.
[6] PAULUSE, Thaise. ‘Estamos perdendo o controle da cadeia’, diz agente penitenciário de SP sobre tensão do coronavírus. Folha. 16 de out. 2020. Disponível: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/estamos-perdendo-o-controle-da-cadeia-diz-agente-penitenciario-de-sp-sobre-tensao-do-coronavirus.shtml
[7] ALESSI, Gil. Sem visitas nem acesso a advogados, presos temem coronavírus. Primeira vítima morre em cadeia no Rio. El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-04-17/sem-visitas-nem-acesso-a-advogados-presos-temem-coronavirus-primeira-vitima-morre-em-cadeia-do-rio.html
[8] Dados sistematizados pelo Projeto Infovírus. O INFOVÍRUS uma iniciativa do CEDD – Centro de Estudos de Desigualdade e Discriminação (UnB), Grupo Asa Branca de Criminologia (UFPE e UNICAP), Grupo de Pesquisa em Criminologia (UEFS/UNEB) e Grupo Poder Controle e Dano Social (UFSC/UFSM) e de pesquisadores/as autônomos/as que pretendem contribuir com informação de qualidade sobre as prisões e sobre o impacto da pandemia de coronavírus no Brasil. (twitter: https://twitter.com/INFOVIRUSpp e instagram: https://www.instagram.com/infovirusprisoes).
[9] PRANDO, Camila. Covid-19 e o complexo prisional do Distrito Federal. Correio Braziliense. 16 de abril de 2020, Brasília.
[10] DEPEN. Departamento Penitenciário Nacional. Relatório Sintético – Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2019.
[11] Idem.
[12] Para saber mais sobre o projeto Cartas do Cárcere ver: https://medium.com/cartas-do-carcere
[13] XAVIER, Lucia. “As cartas não mentem jamais”: quando o direito humano à saúde é negado. In: PIRES, Thula; FREITAS, Felipe. (org.). Vozes do cárcere: ecos da resistência política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2019, p. 344.
[14] Neste item agradeço a Dra. Carolina Costa Ferreira com quem debati durante evento promovido pelo Grupo Asa Branca de Criminologia (UFPE/UNICAP) no dia 08 de abril de 2020 e que compartilhou comigo seus apontamentos acerca do papel das instituições jurídicas quanto ao controle penal sobre o coronavírus.
[15] ZACKSESKI, Cristina; GOMES, Patrick Mariano. O que é ordem pública no sistema de justiça criminal brasileiro?. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, vol. 10, n. 1, Fev./Mar. 2016, p. 108 – 125.
[16] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Entrevista à jornalista Maria Carolina Trevisan. Moro diz que o sistema prisional está sob controle, mas não testa presos. Disponível em: https://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/04/15/moro-diz-que-sistema-prisional-esta-sob-controle-mas-nao-testa-presos/?cmpid=copiaecola
Referência imagética:
https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/03/coronavirus-cadeias-transmissao/ (Acesso em 26/04/2020)