Débora Assumpção e Lima[1]
Um mundo em pandemia
Desde o colapso da economia mundial, deflagrado pela crise financeira de 2008, o mundo tem enfrentado ininterruptas “pandemias”. De modo análogo às operações de subprime e os derivativos do mercado especulativo, cujo caráter fictício é configurado pela projeção de algo que ainda não existe, as pandemias também nos colocam face a face a um elemento sistêmico que não pode ser visto nem tocado: o vírus. Até a chegada do COVID-19, em dezembro de 2019, ocorreu a pandemia do H1N1 (ou gripe suína), o surto de ebola em na África Ocidental (2014-2016), a Peste suína africana, a febre aftosa, a hepatite E, Listeria, vírus Nipah, febre Q, Salmonella, Vibrio, Yersinia e uma variedade de novos influenza. O próprio coronavírus não é exatamente novo, já que comparações genéticas detectaram que o atual vírus apresenta semelhanças com o SARS (Severe Acute Respiratory Ryndrome-related Coronavirus), responsável por um surto epidêmico entre 2002 -2003.
O primeiro epicentro do COVID-19 foi a cidade de Wuhan na China, apesar de não se saber ao certo origem da pandemia[i]. Mas essa descoberta inicial não deixa de ser irônica, uma vez que os casos surgiram em uma cidade chinesa industrial, símbolo da reconstrução do país após a crise econômica aberta na década passada. Vale lembrar, o grau de desenvolvimento urbano de Wuhan é consequência direta da expansão da economia chinesa nos últimos anos, impulsionada pela canalização de fundos de investimento em infraestrutura e construção de imóveis[ii]. À medida que em que a bolha especulativa imobiliária interna crescia, o país foi se tornando um dos principais compradores mundiais de commodities sendo a China a maior compradora de produtos primários brasileiros (representando mais de 25% das nossas exportações), importando soja, minério de ferro e óleos brutos de petróleo.
Origem, circulação do vírus e alimentação
Na esteira deste histórico de zoonoses, a gravidade da pandemia atual invoca uma reflexão profunda sobre a forma como interagimos entre as espécies no âmbito da economia global, sobretudo considerando os efeitos perversos deste modo de produção de alimentos à disseminação de doenças. De antemão, é preciso ter em vista que a relação sociedade x natureza no capitalismo vem se caracterizando como uma “ontologia da guerra”[iii], partindo das premissas de que: a) o saber – ou melhor, a informação – é poder; b) os humanos teriam o saber manifestado pela ação do trabalho sobre natureza, criando, assim, uma segunda natureza[iv]: “coisificada” e passível de ser trocada. Nesse sentido, a natureza chega ao século XXI como uma espécie de estação de serviços: arranca-se da terra a matéria-prima, transforma-se em mercadoria, circula-se e acumula-se.
A origem e dispersão dos vírus estão interligadas ao modo de produção e circulação de alimentos, cuja dinâmica se baseia na supressão de biomas, produção em larga escala e estandardizada. A eliminação de habitats naturais e da biodiversidade, aliada a alimentação em massa cada vez mais padronizada e pobre em nutrientes, vem criando ambientes propícios para dispersão de superpragas e doenças. Se os ecossistemas onde proliferavam os vírus “selvagens” são em parte controlados pelas complexidades da floresta tropical, o aumento do desmatamento para saqueio e aumento da produção de commodities provoca efeitos perversos ao equilíbrio ambiental[v]. Patógenos silváticos perdem seus hospedeiros em biomas cada vez mais reduzidos, se propagando em populações humanas urbanas e rurais suscetíveis cuja vulnerabilidade à infecção é frequentemente exacerbada nas cidades segregadas e desiguais[vi].
No Brasil, os fatores ambientais se combinam aos déficits na saúde pública e no saneamento ambiental. Junto ao coronavírus, há que se lembrar a epidemia de dengue, zika e Chikungunya, dispersada pelo mesmo mosquito, e que se alastra no Brasil e na América Latina. Vale ressaltar, a propagação do Aedes aegypti em espaços urbanos está intimamente ligada ao grau de desmatamento – lembrando que entre agosto de 2018 a julho de 2019, o desflorestamento da Amazônia Legal foi estimado em 9.762 quilômetros quadrados (km²). Além disso, de 01 de janeiro a 26 de outubro de 2019 foram registrados 161.236 focos de incêndio no território brasileiro[vii].
Brasil e a produção de alimentos padronizada
O Brasil tem lugar de destaque no quadro global de produtores-padrão de alimentos. Perpetuando o traço colonialista, o país é um dos principais produtores e exportadores de cana-de-açúcar, café, milho, soja, algodão, laranja, carne bovina, frango, suínos, minério de ferro. Diante desta configuração, a questão agrária se torna central ao desenvolvimento político e social nacional – a ponto de forjar um dos argumentos favoráveis o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016. Na realidade, a então chefe de Estado foi acusada de utilizar indevidamente o subsídio de agricultara, valendo-se do Plano Safra para garantir taxas menores aos financiamentos do pequeno agricultor para fazer aportes como compensação fiscal ao Banco do Brasil. O processo de impeachment no Senado condenou essa prática fiscal entendendo que os atrasos do governo em relação ao Plano Safra se tratava de operação de crédito que infringe a Lei de Responsabilidade Fiscal – curiosamente essa diretriz foi implementada em somente dezembro de 2014. Vale apontar, que o Plano Safra é um dos aportes mais importantes da política agrícola: em 2019/2020, o Plano Safra movimentou R$ 31,22 bilhões para a Agricultura Familiar. Já o Plano Agrícola e Pecuário, setor do Plano Safra voltado ao agronegócio, teve aprovado para os anos 2019/2020 R$ 225,59 bilhões, reflexo do modelo de agricultura que vem sendo priorizado pelas políticas agrárias e agrícolas brasileiras, uma rachadura estrutural que remonta das modificações da estrutura do Ministério da Agricultura em 1962, 1963, 1989, 1990,1999, 2000 e 2016, esta última extinguindo o Ministério de Desenvolvimento Agrário.
O PIB do agronegócio representa cerca de 30% do PIB brasileiro e deve ser o setor que mais irá crescer em 2020, com taxas ínfimas de 2%[viii]. A padronização e especialização do plantio no agronegócio é fundamental para as cadeias globais de “alimentos”, de modo que a soja produzida no Brasil possui as mesmas características de peso, umidade, porcentagem de calorias e proteínas que a soja semeada na China ou nos Estados Unidos. As péssimas condições da cadeia produtiva da carne[ix], para os bovinos e humanos que nela trabalham não é novidade. Na cadeia da soja, a situação é semelhante[x]: somada a condições degradantes de trabalho, trabalho escravo a grilagem de terras, o Brasil consegue achar os custos de produção e exportar commodities a baixíssimos preços.
Com baixo valor agregado, o agronegócio bate na tecla que para ser rentável é necessário produzir em larga escala, justificando as grandes fazendas de 15mil hectares comumente encontrados no centro-oeste, norte e nordeste. A Fazenda Nova Piratininga, localizada em Goiás, próximo à divisa do Tocantins e do Mato Grosso é uma das maiores do país e possui 135mil hectares, equivalente ao tamanho da cidade do Rio de Janeiro. A estrutural concentração de terras no Brasil, aliada a grilagem e imbróglios políticos gera um estoque de terras baratas (ou gratuitas) para o avanço das fazendas.
As condições degradantes de trabalho se contrastam com a alta tecnologia envolvida na transgenia e maquinários que chegam aos milhões, financiados em grande medida pelos cofres públicos. Segundo o Incra, existem 729 pessoas físicas e jurídicas no Brasil que se declaram proprietárias de imóveis rurais com dívidas acima de R$ 50 milhões à União cada. No total, esse grupo deve aproximadamente R$ 200 bilhões, com propriedades de área suficiente para assentar 214.827 famílias – quase duas vezes o número de famílias que estão acampadas hoje no Brasil esperando por Reforma Agrária. À rebote da Reforma Trabalhista aprovada no ano de 2019, o governo Bolsonaro discute a anistia de 11 a 40 bilhões de reais do Funrural[xi] e a MP910[xii], que regulamenta a grilagem de terras de apossamentos e sobreposições realizadas até 2018, reconhecendo e legitimando a grilagem de terras da história brasileira.
O que comer em tempos de crise
O favorecimento da produção de commodities para exportação aliadas ao desmantelamento de políticas de agricultura camponesa e Reforma Agrária desde 2016, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), redução de investimento em estruturas de armazenamento de alimentos públicos no Conab resultou neste momento de pandemia estoques públicos de alimentos em níveis insignificantes, deixando o país em uma situação vulnerável na conjuntura atual. Na ausência de políticas públicas para reverter a situação, os movimentos sociais estão desenvolvendo programas para vender alimentos. Por exemplo, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) do Rio de Janeiro criou medidas para garantir a continuidade do suprimento antes mesmo que os governos federal, municipal e estadual opinassem sobre o assunto. Eles elaboraram regras específicas para a entrega das cestas de alimentos aos consumidores urbanos, que envolvem, entre outras coisas, entrega diretamente em casa e pagamento via transferência bancária. Por outro lado, os movimentos sociais do Campo Popular, incluindo o próprio MPA, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Revolta da Juventude Popular (LEVANTE) e o Movimento das Pessoas Afetadas pelas Barragens (MAB) organizaram uma campanha de solidariedade levar itens básicos de alimentação e higiene para os moradores das favelas em diversos municípios do país. O MST, por exemplo, já doou mais de 500 toneladas de alimentos orgânicos[xiii].
Mesmo em meio à pandemia a lógica capitalista de produção de alimentos permanece, mas os movimentos sociais parecem ter maior consciência dos impactos do isolamento social nos transportes e no comércio de alimentos. Não por acaso, são os movimentos que mais tem se destacado nesta conjuntura de crise sanitária, ancorados principalmente nas leis aprovadas para entregar produtos originalmente destinados ao almoço escolar (por meio do PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar) diretamente a famílias vulneráveis. Movimentos sociais e outras organizações civis, como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), exigem a retomada do PAA, bem como outros estímulos de curtos-circuitos de comercialização de alimentos saudáveis e agroecológicos. Agricultores camponeses e pescadores artesanais também esperam ser incluídos na lista de beneficiários da ajuda básica de renda que o governo federal lançou para mitigar os impactos das pandemias na vida dos trabalhadores brasileiros.
Apesar de não solucionar problemas estruturais, os movimentos do campo vêm mostrando algumas saídas para sobreviver em meio a pandemia. Além da luta[xiv] por políticas públicas eficientes – e decentes – do Estado, para enfrentar a crise é necessário fortalecer circuitos de alimentos em escala local e regional que movimentos sociais e comunidades tradicionais vêm realizando em prol de todas e todos (e por você também, que leu este texto até aqui e precisa comer todos os dias).
- Além dos movimentos citados, é possível encontrar feiras de alimentos, entregas de cestas para municípios de todo o Brasil no site https://feirasorganicas.org.br/comidadeverdade/
Notas:
[1] Pós Doutoranda do Departamento de Geografia da USP. E-mail: deborassumpcaolima@gmail.com
[i] The proximal origin of SARS-CoV-2 https://www.nature.com/articles/s41591-020-0820-9
[ii] http://afita.com.br/outras-fitas-contagio-social-coronavirus-china-capitalismo-tardio-e-o-mundo-natural/
[iii] Ontología de guerra frente a la zoonosis. Mónica B. Cragnolini (5 de abril). Ensaio presente no Livro La Fiebre. Editorial: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020. Disponível em https://www.elextremosur.com/files/content/23/23821/la-fiebre-aspo.pdf
[iv] ISNARD, H. O espaço do geógrafo. Boletim Geográfico. Rio de Janeiro, n. 258/259, jan./dez. 1978, p.05-17.
[v] produtos primários ou semielaborados, mineral ou agrícola, padronizado mundialmente, cujo preço é cotado nos mercados internacionais em bolsas de mercadorias.
[vi] https://monthlyreview.org/2020/05/01/covid-19-and-circuits-of-capital/
[vii] http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes
[viii] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-11/pib-do-agronegocio-cresce-mais-que-conjunto-da-economia-em-2019-e-2020
[ix] https://reporterbrasil.org.br/2016/07/da-fazenda-ao-frigorifico-a-cadeia-de-problemas-trabalhistas-na-jbs/
[x] https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/trabalho-escravo/5076-2019-com-risco-de-crescente-invisibilidade-trabalho-escravo-permanece-no-brasil
[xi] https://www.anasps.org.br/governo-envia-proposta-para-perdoar-divida-de-r-30-bi-do-funrural-na-previdencia/
[xii] A medida tem como prazo para trâmite 19 de maio de 2020, e até o momento da escrita desse texto encontra-se prorrogada. https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/140116
[xiii] https://casasouth.org/brazil/
[xiv] https://alimentacaosaudavel.org.br/garantir-o-direito-a-alimentacao-e-combater-a-fome-em-tempos-de-coronavirus/6243/
Referência imagética:
Foto: Fazenda de gado extensivo em Santa Fé do Araguaia (TO). O Brasil produz a carne mais barata do mundo, e é o país que mais exporta essa commodity (Débora Lima, 2019).