Júlio Cattai[1]
No último 1.º de junho, após uma semana de protestos espalhados por todo território dos Estados Unidos, com as ruas transformadas em palco de confrontos dignos de guerra, o New York Times trouxe uma matéria intitulada “Como Minneapolis, uma das mais liberais cidades dos EUA, luta contra o racismo”. Como guia do texto, lê-se em destaque: “A cidade do Centro- Oeste, que tem sido palco de protestos, acolheu o multiculturalismo. Mas também luta com a segregação e as lacunas raciais na educação”. A matéria é já uma tentativa de balanço dos protestos que eclodiram após a divulgação de um vídeo em que um homem negro, George Floyd, aparece imobilizado contra o chão por três policiais que já lhe haviam atado braços, mãos e pernas. Ouve-se Floyd suplicar para que um dos policias tire o joelho de seu pescoço, pois o estava asfixiando. Floyd veio a morrer pouco depois. Não é necessário grande esforço para que a leitora e o leitor conectem, em algum nível, o que se passou com Floyd e o que quase diariamente se noticia nas periferias do Brasil: o desaparecimento de tantos Amarildos, os milhares de disparos acidentais contra Evaldos, Rodrigos, Hélios e que não poupam as crianças, de Agathas a Joões.
A matéria do NY Times tenta compreender por que o padrão histórico de violência policial contra os negros repete-se na cidade que abraçou o multiculturalismo. Por que não deram certo as tentativas das democracias ocidentais, desde os anos 1960-1970, em reconhecer os direitos de minorias: o incremento da participação política, da equidade de oportunidades econômicas e da aceitação social? Creio que a observadora ou o observador mais atento aos acontecimentos do último quartel de século podem notar um avanço, no Brasil inclusive, do reconhecimento de toda sorte de desigualdade racial e das tentativas de inclusão dos negros em espaços de representação política e cultural, particularmente por meio de legislações na área educacional. Mas, então, voltamos: por que isso não deu certo? A matéria do Times caminha para explicar a persistência da segregação racial em decorrência de um processo incompleto de inclusão, de uma lacuna nas políticas educacionais que não puderam minorar a desigualdade de oportunidades dos negros em relação aos brancos. Do texto, subentende-se que nesta moderna sociedade da livre competição há lugar, sob o sol iluminado do capitalismo global, para todas e todos, independentemente da cor da pele, bastando um ajuste institucional, um melhor equilíbrio de oportunidades.
Essa abordagem encontra-se naturalizada, por quase toda parte, nas reflexões sobre a persistência da segregação e do racismo não apenas nos Estados Unidos, mas também no Brasil. No entanto, tal naturalização não é efeito de um simples acidente ou do acaso no percurso das democracias ocidentais. No bojo dessa interpretação, encontra-se a defesa de que o profundo processo de modernização industrial e urbana, atravessado, no século passado, pelas sociedades ocidentais, levaria ao fim da segregação racial. Dito de outro modo, o preconceito, no Brasil, seria reflexo da persistência de elementos “arcaicos” em meio ao desenvolvimento econômico e à modernização do país, e somente o aprofundamento desse desenvolvimento – ou a inserção dos negros na sociedade de classes – levaria ao fim do racismo. Assim, desde que, no longínquo 1954, o escritor William Faulkner desembarcou em São Paulo e, questionado sobre a segregação em seu país, afirmou que o próprio sistema democrático capitalista seria capaz de solucionar o problema, é que, a todo novo episódio envolvendo preconceito racial, o campo político, tal como respondera o autor de O som e a fúria, reflui para a compreensão de que, afinal, ainda não se chegou lá, ainda é preciso fazer uma transição de um “arcaísmo” persistente para esse futuro idílico, da plena harmonia e do fim de conflitos. De forma que as tradições e as instituições das sociedades ocidentais, em particular tendo os Estados Unidos como horizonte de realização política, já preveriam um seu aprimoramento paulatino e longe de rupturas.
Todavia, um olhar mais atento revela que nessa interpretação se escamoteia uma tradição muito bem articulada de pensamento social, uma que se constituiu a partir das relações intelectuais, de um programa comum de pesquisas entre cientistas sociais do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos e que teve na Fundação Ford seu grande animador. É esse o olhar que Guerra Fria e Brasil: para a agenda de integração do negro na sociedade de classes oferece a suas leitoras e seus leitores. Publicado no final de 2019 pela Editora Alameda, esse livro conciso e de grande alcance conta a história de como o problema da integração racial foi, desde os anos 1930-1940 e mais particularmente durante a Guerra Fria, transformado em um dos focos centrais das disputas entre Estados Unidos e União Soviética e de seus modelos de modernização nacional para países “subdesenvolvidos”, como o Brasil. A agenda de pesquisa que se organizou a partir das Nações Unidas e de todo aparato de política externa do governo dos Estados Unidos, com papel destacado das fundações filantrópicas do país, era, então, uma forma de produzir – a partir daqueles que seriam os mais bem acabados métodos e abordagens teóricas das Ciências Sociais – diagnósticos e prospectos para a ação institucional de governo quanto à integração racial. Uma programação modernizante que, todavia, deveria ser conformada aos parâmetros da ordem liberal.
O livro é a consolidação decisiva de um percurso. É o resultado de mais de uma década de pesquisa e reflexão sobre a “questão racial” dos historiadores Elizabeth Cancelli, Gustavo Mesquita e Wanderson Chaves. As descobertas e apontamentos apresentados no texto têm a força de pôr por terra o referido estatuto hegemônico pelo qual – tal como faz pensar a pergunta do NY Times – a solução do “problema racial” só pode ser politicamente imaginada no aprofundamento da sociedade de classes e de sua livre competição.
O título já é revelador de seu objeto: retoma o clássico (que fez escola no Brasil e fora dele) do sociólogo Florestan Fernandes A integração do negro na sociedade de classes, de 1964. Na esteira de Um dilema americano: o problema do negro e a democracia moderna, livro de 1944, comissionado pela Fundação Carnegie, do sociólogo sueco Gunnar Myrdal, e da modernização das Ciências Sociais no Brasil, a partir da Escola Paulista de Sociologia, o trabalho de Florestan simboliza essa aposta no aprofundamento da sociedade de classes como solução para o problema do preconceito racial1, aceitando, em nome dela, uma transição que insiste, a toda nova asfixia de um corpo negro, em disciplinar a imaginação política nos quadros da livre competição. De “arcaísmo”, de “insuficiência” e do “despreparo” para o “moderno”. Política que, há quase 80 e 60 anos, respectivamente, daquelas publicações, permanece como um arranjo, um concerto das elites intelectuais e políticas do Brasil e dos Estados Unidos no tratamento para a “questão negra”.
Ao terminar as páginas de Guerra Fria e Brasil: para a agenda de integração do negro na sociedade de classes, esse livro nascido para cabeceiras, que se lê e relê, e que permite tantas entradas e discussões, a leitora e o leitor poderão olhar de fora os caminhos persistentemente reiterados de nossa vida pública; e, assim, conhecendo os lugares de onde fala essa tradição, quem sabe, poderá imaginar e propor uma superação de modelos acerca das possibilidades de realização efetiva e plural de direitos sociais, civis e humanos.
[1] Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. É autor de “Guerra Fria e Propaganda: a U.S. Information Agency na mídia impressa brasileira, 1953-1964” (Prismas, 2017)
[2] Considere-se que esta é uma interpretação da obra de Florestan Fernandes, apresentada pelo autores, dentre outras.