Renan Somogyi Rodrigues da Silva*
O livro da socióloga e influenciadora digital Sabrina Fernandes objetiva interpretar a crise estabelecida dentro do âmbito da esquerda brasileira e suas consequências, tais como o enfraquecimento de seus partidos e a inexorável ascensão da direita ao poder. Nesse escopo, Fernandes utiliza categorias de diversos autores na elaboração de sua análise acerca da crise das esquerdas. Dentre os intelectuais utilizados, desataca-se Antonio Gramsci, cujas conjecturas são frequentemente acionadas como prismas analíticos.
A mobilização das ideias do ex-secretário geral do Partido Comunista Italiano (PCI) inicia-se já no título da obra – “Sintomas mórbidos” –, o qual carrega uma parte fundamental do pensamento da socióloga: os efeitos causados pelo interregno na política brasileira. Para uma melhor compreensão, é útil retornar à postulação originário de seu autor, Gramsci: “A crise consiste no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem” (GRAMSCI, 1999, p. 566). O pensador italiano concebe, portanto, que na perda de hegemonia por parte das classes dominantes – resultado do desaparecimento de consenso ideológico na população – a dominação pela força pode não ser o suficiente para garantir o domínio de tal grupo. Não obstante a falta de hegemonia, não surgem possibilidades efetivas de mudanças revolucionárias, culminando nos “sintomas mórbidos”. Fernandes vai ao encontro da hipótese levantada por Vladimir Safatle[1], afirmando que o pacto de classes brasileiro – assinado na constituição de 1988 – não possui mais validade para população, pois esta já não estaria mais sob vigência da hegemonia burguesa nacional, mas sim apenas sob a força coercitiva dos dominantes (FERNANDES, 2019, p.112-3). Ainda que mobilizado de maneira original pela pensadora, a aplicação do conceito de Gramsci aqui é discutível. Se o pacto de classes “morreu” em 2013, onde estão os sintomas mórbidos? Temer, Bolsonaro e seus aliados são uma expressão do próprio sistema – ainda que finjam que não são – e a hegemonia da classe dominante, mesmo que exercida com variações, parece tão presente quanto sempre foi, haja vista a popularidade alta do presidente em exercício. A democracia burguesa em que vivemos não se vê ameaçada e nem mudada, mas sim se qualifica como transformadora perante às massas. Os mesmos agentes políticos permanecem nos cargos de liderança e, de uma visão marxista, a elite econômica ainda é a mesma de antes de 2013. Ademais, os ajustes neoliberais continuam em escalada, desmontando cada vez mais os serviços públicos e convencendo a população – através dos aparelhos ideológicos que a burguesia possui – que esse é o melhor caminho para se gerenciar um país. Onde está a “morte” do regime de pacto de classes?
Para compreender como o interregno se instalou na política brasileira, Sabrina Fernandes faz uso do conceito de “crise de práxis”, refletindo sobre o modo como o qual os erros da esquerda nacional ensejaram, em última instância, a vitória de Jair Bolsonaro no pleito presidencial de 2018. Nessa hipótese, a youtuber sustenta que as falhas do Partido dos Trabalhadores (PT) (e da ausência de autocrítica por parte de seus quadros principais) – tendo como expoente a conciliação de classe e a consequente despolitização do corpo civil – causaram a crise de práxis se estabeleceu (FERNANDES, 2019, p. 24-6). Ademais, a incapacidade de união entre teoria e prática na esquerda radical também teria sido um fator fundamental nesse processo. Resultando em fraseologias pelo governo (no sentido empregado por Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte)[2] e no afastamento do “cidadão comum” da política, esse declínio dos movimentos de esquerda impede uma reação contra a extrema-direita e o neoliberalismo. Em relação à datação cronológica, a autora não determina quando esse interregno se iniciou e nem mesmo assinala quais eventos principais o engendraram, embora afirma que foi em junho de 2013, com os protestos que levaram milhões de pessoas às ruas, que ele se mostrou claro.
Aqui cabe explicar como, segundo a autora, a direita conseguiu apreender e mobilizar os afetos dos cidadãos, principalmente após os eventos de junho de 2013, e ter sucesso eleitoral em 2018. Neste ponto entra a utilização dos conceitos de “pós-política” e “ultrapolítica”, cujos papeis se revelam fundamentais ao longo do escrito da acadêmica. Ambos os conceitos empregados foram originalmente cunhados pelo intelectual esloveno, Slavoj Zizek. Segundo Fernandes, a junção de ambos elucida como grupos conservadores conseguiram angariar adesões às suas causas. Para a explicação do conceito de pós-política, recorramos à formulação do próprio Zizek:
Na pós-política, o conflito das visões ideológicas globais incorporadas em diferentes partidos que competem pelo poder é substituído pela colaboração de tecnocratas esclarecidos (economistas, especialistas em opinião pública…) e multiculturalistas liberais. Através do processo de negociação de interesses, chega-se a um compromisso sob a forma de um consenso mais ou menos universal. A pós-política enfatiza, assim, a necessidade de deixar antigas divisões ideológicas para trás e confrontar novas questões, munidas do conhecimento especializado necessário e deliberação livre que leva em consideração as necessidades e demandas concretas das pessoas. (ZIZEK, 1999, p.198)
A autora, através dessa conjectura, demonstra como o discurso anticorrupção empregado pela direita (e transformado, posteriormente, em antipetismo e, por consequência, em antiesquerdismo) esvaziou os debates ideológicos da política brasileira, valorizando somente os desvios de caráter e/ou falta de tecnicidade por parte dos políticos que até então governavam o Brasil. Sendo assim, esse discurso defendia que a saída para a crise vivida em solo nacional era a retirada do PT do poder e a substituição por políticos que visassem aplicar a tecnocracia para bem representar e atender seus eleitores (FERNANDES, 2019, p. 237-242).
Passemos agora ao conceito de ultrapolítica, novamente nas palavras do próprio Zizek: “A ultrapolítica recorre ao modelo de guerra, a política é concebida como uma forma de guerra social, como a relação para com ‘Eles’, para com um inimigo. ” (ZIZEK, 1999, p. 241). Essa formulação é preciosa para se compreender como foi construído o discurso da extrema-direita brasileira. Isto é, empregando um discurso falacioso de que as organizações de esquerda – reduzidas ao PT – são os males do Estado brasileiro, foi erigido um ataque contra todo discurso anti-neoliberal e/ou anti-conservador (FERNANDES, 2019, p. 92). Outrossim, a direita nacional soube mobilizar o afeto da população, direcionando sua frustração contra toda expressão titulada de esquerda, criando narrativas que reafirmam constantemente esse sentimento de ódio.
Ambas as conjecturas de Zizek das quais Fernandes se valeu possuem grande relevância para analisar a política atual. Todavia, o livro deixa algumas lacunas ao não alocar cronologicamente esses fenômenos. A pós-política e a ultrapolítica são complementares entre si, ou seja, a despolitização e a polarização formam partes de um todo processual. Ao não especificar temporalmente a vigência de cada um deles e afirmar o estopim de ambos nos protestos de junho de 2013, a socióloga cria uma contradição: não é possível despolitizar as massas e criar uma polarização de “clima de guerra” ao mesmo tempo. O primeiro elemento deve preceder o segundo e, nesse sentido, a falha de não situar cronologicamente tais episódios enseja uma dificuldade de apreensão do cenário completo.
Após expor de que maneira a crise de práxis influiu no surgimento do interregno e como se deu a ocupação da direita nesse espaço, Sabrina Fernandes dedica-se a um trabalho etnográfico, no qual sondou diversos partidos políticos e movimentos sociais que se postam como radicais. Através dessa pesquisa, a comunicadora digital buscou entender onde ocorrem as principais falhas e acertos na práxis – entendida na maneira concebida por Gramsci nos Cadernos do Cárcere (GRAMSCI, 2020. p. 101) – desses grupos, bem como tentou delinear a participação deles no cenário nacional. Partidos como o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) foram abrangidos nessa pesquisa, além de movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Terra Livre, Movimento dos Sem Terra (MST) e Brigadas Populares. Esse esforço etnográfico, talvez, seja o maior êxito da obra, porém, os resultados analíticos a que se chegaram a partir dele não são igualmente exitosos.
Concebendo um diagnóstico causal da fragmentação das esquerdas no país, Fernandes afirma que ela decorreu do “transformismo” ocorrido no PT, bem como das contradições que o partido engendrou na sociedade e nas esquerdas (FERNANDES, 2019, p. 285-7). Essa fragmentação fez com que grupos radicais fossem marginalizados, já que o grande partido representativo das causas populares estava realizando coalizões de classe. Essa conclusão apresenta um problema: partindo do pressuposto assumido pela socióloga de que o transformismo petista teve início um pouco antes da primeira vitória de Lula nas urnas (FERNANDES, 2019, p. 144), não há sentido em argumentar que grupos antecessores a tal período – como o PSTU, PCB MST – são resultados do transformismo. A fragmentação da esquerda brasileira é um fenômeno de longo prazo e que foi realçado em diversos momentos da história do país, tal como durante a Ditadura Militar, e, portanto, não pode ser identificada unicamente a um processo político ocorrido no interior do PT. Nesse ponto, a autora abdica do diálogo com a tradição historiográfica e sociológica que investigou por anos os diversos “rachas” e tendências na esquerda brasileira. A ausência de referências aos trabalhos pesquisadores como Luiz Bernardo Pericás, Lincoln Secco, Dainis Karepovs, Edgard Carone, entre outros, é uma amostra das falhas apresentadas no livro.
Em relação à pulverização da esquerda, Fernandes não a entende como um acontecimento negativo, já que, no caso brasileiro, demonstra como há diversas pessoas engajadas na transformação radical do status quo. A falta de diálogo por parte desses órgãos representativos, por outro lado, é um problema, na medida em que atuaria “como parte de uma crise de práxis: ausência de sínteses entre a crítica e a autocrítica, o engajamento com despolitizações e a permanência da lógica da cisão como central ao desenrolar das várias organizações diante dos dilemas.” (FERNANDES, 2019, p. 288-9). A união das esquerdas, porém, não pode ocorrer num partido único com intensões exclusivamente eleitorais. Os diversos grupos devem se organizar entre si e fazer uma leitura conjunta voltada para a ação (FERNANDES, 2019, p. 288). Recorrendo, portanto, a um chavão usualmente utilizado na falta de teorias mais refinadas, a autora afirma que a saída para o dilema das esquerdas é o diálogo que resulte em uma síntese revolucionária, sem discorrer, todavia, sobre como esse fenômeno deveria ocorrer e qual resultado efetivo ele teria.
Se Sabrina Fernandes estiver correta em sua análise, é possível conjecturar que a crise dure mais algum tempo, caso não haja união da “práxis” desses movimentos e partidos, bem como a falta de autocrítica do Partido dos Trabalhadores. Entretanto, novos diálogos se apresentaram entre órgãos de esquerda, tais como o que presenciamos na eleição municipal de São Paulo. Pela primeira vez em alguns anos, vimos partidos radicais e moderados (como PT, PCB, PSOL e PDT) se conciliando, visando uma saída progressista para enfrentar os desmontes neoliberais que avançam cada vez mais em nosso cenário atual. Contudo, diferentemente do esperado pela youtuber, esse vínculo não resultou em síntese revolucionária. O futuro, como sempre, permanece incerto, mas é possível pressupor que novos vínculos eleitorais se formarão e a reação dos comunistas, socialistas e socialdemocratas pode ser mais repentina do que o imaginado.
Referências:
FERNANDES, Sabrina. Sintomas Mórbidos: A Encruzilhada da Esquerda Brasileira. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.
GRAMSCI, Antonio. Selections of the Prison Notebooks of Antonio Gramsci. London: ElecBook, 1999.
______. Cadernos do Cárcere. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
SAFATLE, Vladimir. Só Mais um Esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017.
ZIZEK, Slavoj. The Tiklish Subject. London: Verso, 1999.
Notas:
* Graduando de História na Universidade de São Paulo, bolsista Unidade USP e pesquisador da História do marxismo no Brasil.
[1] Cf. SAFATLE, Vladimir. Só Mais um Esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017.
[2] Cf. MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 26.