Bruno Boti Bernardi[1]
A crise de direitos humanos
O México vive, desde o final de 2006, uma grave crise de direitos humanos, marcada pela militarização crescente da segurança pública e por um aumento sem precedentes, entre outros crimes atrozes, de desaparecimentos forçados e involuntários de pessoas. Como resultado da estratégia de “guerra contra o narcotráfico” levada a cabo pelos governos Calderón (2006-2012), Peña Nieto (2012-2018) e López Obrador (2018-2024), cujos precedentes remontam pelo menos aos governos Zedillo (1994-2000) e Fox (2000-2006), os números e níveis da violência são avassaladores.
Até novembro de 2021, os dados oficiais do Estado contabilizavam 95 mil desaparecidos, cerca de 52 mil corpos não identificados (OACDHNUM, 2021), e mais de 4 mil fossas clandestinas (TZUC, 2021)[2]. Se, antes da guerra contra el narco, a taxa de homicídios era de 8 por 100 mil habitantes, hoje o número saltou para 28 (MONROY, 2021), e aproximadamente 80% dos homicídios no país têm relação direta com essa estratégia falida de segurança pública (DW, 2021).
Os nexos de cumplicidade entre o crime organizado e os agentes do Estado são múltiplos e, combinados com a estruturação de uma economia política do desaparecimento (PAYNE, 2020), levam a que o aparato repressivo estatal se conjugue com redes privadas de delinquência por associação direta ou conivência para desaparecer pessoas. Diferentemente da lógica dos desaparecimentos forçados das ditaduras latino-americanas do Cone Sul, que girava em torno da figura dos militantes políticos opositores de esquerda, então chamados de detenidos-desaparecidos, o cenário atual no México é muito mais complexo. De acordo com Pilar Calveiro (2021, p. 41, tradução livre):
Os motivos do desaparecimento nessa governamentalidade são variados e bastante confusos. Eles não são necessariamente ou primordialmente políticos, o que não significa que não tenham significados políticos, que estão ligados às características específicas da organização do poder nesta sociedade. Eles vão desde a vingança, punição e “exemplaridade” – usados tanto por narcotraficantes quanto pelos militares, muitas vezes associados -, até propósitos mais utilitários como: 1) a apropriação por desapropriação de bens – recursos e territórios -; 2) o usufruto de capacidades e aptidões – com o desaparecimento de médicos, técnicos ou pedreiros -; 3) a expropriação de pessoas e seus corpos como bens lucrativos – seja por resgate, trabalho ou escravidão sexual -. Todas essas são formas de desaparecimento direto e radical, em que se anula a condição de vítima de direitos para dispor de seus corpos de forma ilimitada, com práticas que envolvem tortura e que geralmente terminam em morte e desaparecimento de seus restos mortais em sepulturas clandestinas.
Como resultado dessas dinâmicas, assiste-se a uma piora em larga escala dos abusos de direitos humanos que desmente as percepções sociais de que as Forças Armadas são efetivas, não se corrompem e possuem treinamento adequado. Apesar disso, as corporações castrenses continuam a gozar de uma boa imagem pública e sucessivos governos, de diferentes bases político-partidárias, insistem em lhes delegar cada vez maiores áreas de atuação, que se estendem agora à construção de megaobras, operação de bancos estatais, programas sociais e até mesmo à aplicação de vacinas (BROOKS, 2020). No total, entre 2006 e 2021, 246 áreas historicamente geridas por civis passaram para o controle dos militares (MONROY, 2021).
Na segurança pública, mais especificamente, implementa-se claramente uma política de populismo punitivista sob o lema da mano dura: com poucos ou inexistentes mecanismos de controle externo, os militares veem aumentadas suas competências em todos os tipos de tarefas policiais. Contrariando completamente a realidade demonstrada pelos dados, o presidente López Obrador afirma com frequência que os militares são o povo uniformizado e já não violam mais os direitos humanos (PÉREZ, 2021).
Consequentemente, assiste-se a um padrão de impunidade sistêmica. Ainda que estudos demonstrem que a maioria das vítimas de desaparecimentos não é composta por criminosos, mas sim por jovens pobres em situação de marginalização social (ODIM, 2019), o discurso hegemônico das autoridades públicas é sempre o de que as pessoas mortas ou desaparecidas andaban en algo. Em outras palavras, há uma estratégia clara e deliberada de criminalização das vítimas, com a disseminação da ideia de que se trataria simplesmente de criminosos e bandidos que merecem morrer. Nesse sentido, os soldados são apresentados como heróis e justiceiros que protegeriam a sociedade contra os maus e degenerados.
As denúncias de violações supostamente cometidas pelo Exército e pela Guarda Nacional – que, a princípio, deveria ser de caráter civil, mas que se encontra também militarizada – crescem ano após ano. A Comissão Nacional dos Direitos Humanos vive um quadro de profundo enfraquecimento, sem qualquer capacidade real para investigar tais queixas, ao passo que Ministérios Públicos e magistrados também se autoinibem em casos que envolvem as Forças Armadas. Nos processos judiciais eventualmente abertos, os crimes não são enquadrados como graves violações de direitos humanos e tampouco se descortinam as cadeias militares de comando.
O enquadramento é quase sempre individualizado: como bem demonstram os trabalhos da jornalista investigativa Daniela Rea, se, de modo geral, o soldado é glorificado como membro das Forças Armadas, quando necessário, ele rapidamente é utilizado como bode expiatório para salvar e estancar os danos à reputação da instituição e dos altos comandantes nos casos em que há forte pressão social por justiça (PASTRANA, 2019). Dentro do discurso dos “casos isolados”, que desconsidera a realidade da macroviolência de Estado, é totalmente descartável esse soldado que deve então arcar sozinho com as responsabilidades penais. Nesse sentido, não importa que ele tenha recebido capacitação deficiente para usar armamentos pesados, tenha passado por um processo violento de socialização interna para matar supostos inimigos, e respondesse a uma estrutura interna de obediência militar altamente verticalizada (PASTRANA, 2019).
O que esperar da linguagem e das ferramentas de direitos humanos?
Diante de um panorama tão brutal alimentado pelo Estado, que encontra paralelos no Brasil e em outros países latino-americanos, o que se pode esperar da linguagem, dos mecanismos jurídico-legais, dos atores e dos espaços político-institucionais – domésticos e internacionais – de direitos humanos? Mais especificamente, os direitos humanos seriam apenas um mercado tecnocrático de gestão e aliviamento do sofrimento social, sem tocar nas suas raízes profundas, ou poderiam oferecer caminhos concretos para o enfrentamento e superação – ainda que parcial – desse tipo de situações?
Além disso, como se dá a relação entre vítimas de violações e ativistas profissionais de direitos humanos que trabalham em organizações não governamentais (ONGs)? As vítimas e outros atores sociais de base estão condenados a ser silenciados e usados simplesmente como commodities por uma elite de ONGs e outros atores institucionais dentro de teatralizações e performances repetidas de dor, sem que isso possa produzir qualquer impacto real na melhoria de suas condições concretas de vida? São engrenagens desprovidas de capacidade de ação própria e que tão somente alimentam uma vasta economia política de captação de fundos, projeção de carreiras profissionais e atração de atenção para essa casta de funcionários especializados em direitos humanos?
Essas são algumas das questões que orientam o texto intitulado “Repensando a mobilização dos direitos humanos: relações entre ativistas e vítimas de violações no caso Alvarado contra o México”, publicado no número 113 da revista Lua Nova. O artigo se refere a um caso concreto: os desaparecimentos de Nitza Paola Alvarado, José Ángel Alvarado e Rocío Irene Alvarado por um grupo de pessoas armadas e com uniformes militares no ejido Benito Juárez, do município mexicano de Buenaventura, Chihuahua, em 29 de dezembro de 2009. Naquele exato momento, ocorria uma megaoperação militar no estado, intitulada Operativo Conjunto Chihuahua.
Nesse caso, encaminhado ao sistema interamericano de direitos humanos ainda em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) se debruçou sobre o cenário da militarização do país. Em sentença publicada no ano de 2018, concluiu que o México era sim responsável pelos desaparecimentos, fixando a obrigatoriedade de seguimento de um enfoque de segurança pública cidadã e civil. Assim, o tribunal internacional recordou que, justamente para evitar a repetição de casos de desaparecimentos como o dos três primos da família Alvarado, as Forças Armadas só podem desempenhar tarefas policiais de segurança em caráter excepcional e de maneira extraordinária; subordinada e complementar; regulada; e fiscalizada (Corte IDH, 2018, par. 182).
Ao longo do estudo sobre o caso Alvarado publicado na Lua Nova, mostra-se como, na relação entre os familiares das três pessoas desaparecidas e o Centro de Derechos Humanos de las Mujeres (CEDEHM, ONG de Chihuahua), foi possível evitar uma possibilidade real do campo dos direitos humanos, qual seja a espiral descendente – ou ciclo interminável – de instrumentalizações, expectativas eternamente frustradas e a sensação de esforços continuamente consumidos por arenas de disputas e gramáticas que esvaziariam qualquer possibilidade real de mudança.
Ancorada no reconhecimento, prestação de contas e construção conjunta do teor substantivo das denúncias e demandas, a relação entre CEDEHM e vítimas buscou, dentro de um enquadramento abrangente, que envolve outros casos, os seguintes objetivos: combater o legalismo excessivo, despolitizador e desconectado das lutas sociais reais do movimento de familiares de pessoas desaparecidas; conceder-lhes protagonismo enquanto atores políticos, fomentando a organização de um movimento social com base no discurso dos direitos humanos; articular ativamente os direitos humanos com a dor, sofrimento e clamor das vítimas, evitando assim os labirintos da simples gestão e administração da vulnerabilidade.
Isso não significa, porém, que o Estado mexicano tenha cumprido a contento a sentença condenatória do caso Alvarado. As indenizações foram pagas apenas parcialmente; as investigações sobre os responsáveis enfrentam fortes resistências e não avançam, bloqueando o clamor por justiça; os trabalhos de busca das três pessoas da família Alvarado tampouco renderam frutos e nunca tantos militares estiveram nas ruas em todo o país. Contudo, a despeito de todos esses obstáculos, ao refletir sobre a importância do caso Alvarado e da sentença da Corte IDH, Rosy Alvarado afirma de maneira contundente: “ele [o Estado] nos quer dominar (…) vamos seguir de pé, e vamos seguir lutando (…) aqui não deve haver nenhum desaparecido a mais” (A TRES AÑOS, 2021, tradução livre). De maneira similar, para Paola Alvarado, a sentença “é uma realização muito grande, não apenas para o caso Alvarado, mas também (…) porque dá voz para todos os desaparecidos” (A TRES AÑOS, 2021, tradução livre).
Convidamos as pessoas interessadas a que leiam o texto e se somem a essa discussão transcendente. Em um momento global de tantos retrocessos e ataques às lutas e atores organizados em torno dos direitos humanos, é urgente melhorar o nosso entendimento sobre como os discursos e práticas de direitos humanos podem e devem ser aperfeiçoados continuamente para fortalecer os “bolsões efetivos de resistência dos movimentos sociais” (Dancy e Sikkink, 2017, p. 41, tradução livre).
Referências
A TRES AÑOS de las sentencias de la Corte IDH vs México: Un balance ante el incumpimiento (Conferencia de Prensa de los casos Mujeres de Atenco y Familia Alvarado y los incumplimientos del Estado mexicano frente a las sentencias de la CoIDH). 95’25”. Cedehm Chihuahua. Facebook [2021]. Disponível em: https://www.facebook.com/CentroCEDEHM/videos/1024005458162988. Acesso: 01 fev. 2022
BERNARDI, Bruno Boti. 2021. Repensando a mobilização dos direitos humanos: relações entre ativistas e vítimas de violações no caso Alvarado contra o México. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 113, pp. 57-102. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-057102/113>. Acesso: 01 fev. 2022
BROOKS, Darío. 1 dez. 2020. México: el inédito rol del ejército y la marina en el gobierno de AMLO (más allá de la seguridad pública). BBC News Mundo. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-54850024. Acesso: 01 fev. 2022
CALVEIRO, Pilar. 2021. Desaparición y gubernamentalidad en México. Historia y Grafía, ano 28, n. 56, pp. 17-52.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – CORTE IDH. 2018. Caso Alvarado Espinoza y otros vs. México: sentencia de 28 de noviembre de 2018 (Fondo, reparaciones y costas) [S.l.]: Corte Interamericana de Derechos Humanos. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_370_esp.pdf. Acesso: 01 fev. 2022
DANCY, Geoff; SIKKINK, Kathryn. 2017. Human Rights data, processes, and outcomes: how recent research points to a better future. In: HOPGOOD, Stephen; SNYDER, Jack; VINJAMURI, Leslie (eds.). Human Rights futures Cambridge: Cambridge University Press. pp. 24-59
DW. 25 jan. 2021. La mayoría de los homicidios en México tiene que ver con el narcotráfico. Disponível em: https://www.dw.com/es/la-mayor%C3%ADa-de-los-homicidios-en-m%C3%A9xico-tiene-que-ver-con-el-narcotr%C3%A1fico/a-56339209. Acesso: 01 fev. 2022
FLORES, Lucía; CANSECO, Germán. 16 jan. 2022. Así fue la entrega ilegal de datos genéticos de 49 mil desaparecidos. El Financiero e Proceso, Ciudad de México. Disponível em: https://adondevanlosdesaparecidos.org/2022/01/16/asi-fue-la-entrega-ilegal-de-datos-geneticos-de-49-mil-desaparecidos/. Acesso: 01 fev. 2022
MONROY, Jorge. 20 out. 2021. Documentan el traslado a militares de 246 tareas civiles. El Economista, Ciudad de México. Disponível em: https://www.eleconomista.com.mx/politica/Documentan-el-traslado-a-militares-de-246-tareas-civiles-20211020-0155.html. Acesso: 01 fev. 2022
OBSERVATORIO SOBRE DESAPARICIÓN E IMPUNIDAD EN MÉXICO (ODIM). 27 jul. 2019. Informe sobre Desapariciones en el Estado de Nuevo León con información de Cadhac. Disponível em: https://odim.juridicas.unam.mx/detalle-proyecto-odim/791/Informe%20sobre%20Desapariciones%20en%20el%20Estado%20de%20Nuevo%20Le%C3%B3n%20con%20informaci%C3%B3n%20de%20Cadhac. Acesso: 01 fev. 2022
OFICINA DEL ALTO COMISIONADO DE DERECHOS HUMANOS DE NACIONES UNIDAS EN MÉXICO (OACDHNUM). 25 nov. 2021. 95,000 personas desaparecidas y 52,000 personas fallecidas sin identificar: el Comité de la ONU urge a México a actuar de inmediato para buscar, investigar e identificar. Disponível em: https://hchr.org.mx/comunicados/95000-personas-desaparecidas-y-52000-personas-fallecidas-sin-identificar-el-comite-de-la-onu-urge-a-mexico-a-actuar-de-inmediato-para-buscar-investigar-e-identificar/. Acesso: 01 fev. 2022
PASTRANA, Daniela. 16 jun. 2019. ¿Qué lugar imaginamos para los soldados? (entrevista a Daniela Rea). Pie de Página. Disponível em: https://piedepagina.mx/que-lugar-imaginamos-para-los-soldados/. Acesso: 01 fev. 2022
PAYNE, Leigh. 11 nov. 2020. Las cuatro lógicas de la desaparición. Observatorio sobre desaparición e impunidad en México (UNAM, Flacso-México, University of Minnesota, University of Oxford). Disponível em: https://odim.juridicas.unam.mx/detalle-blog/1375/Las%20cuatro%20l%C3%B3gicas%20de%20la%20desaparici%C3%B3n. Acesso: 01 fev. 2022
PÉREZ, Maritza. 08 ago. 2021. CNDH: Suman Ejército y Guardia Nacional, 1,654 quejas por violar derechos humanos. El Economista, Ciudad de México. Disponível em: https://www.eleconomista.com.mx/politica/Suman-Ejercito-y-GN-1654-quejas-por-violar-DH-CNDH-20210808-0085.html. Acesso: 01 fev. 2022
TZUC, Efraín. 8 out. 2021. México rebasa las 4 mil fosas clandestinas, 40% se encontraron en este sexenio. A dónde van los desaparecidos. Disponível em: https://adondevanlosdesaparecidos.org/2021/10/08/mexico-rebasa-las-4-mil-fosas-clandestinas-40-se-encontraron-en-este-sexenio/#:~:text=Su%20conteo%20da%20cuenta%20que,menos%2C%202%20mil%20603%20v%C3%ADctimas. Acesso: 01 fev. 2022
[1] Professor de Relações Internacionais e do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
[2] O país enfrenta uma crise forense de proporções gigantescas no que diz respeito à busca e identificação de pessoas desaparecidas, à qual se soma a recente denúncia de entrega ilegal de dados genéticos de 49 mil desaparecidos a uma empresa privada (FLORES, L.; CANSECO, G., 2022).
Fonte Imagética: Caso Alvarado: la militarización sigue amenazando a los derechos humanos. Disponível em: https://pbi-mexico.org/es/news/2019-02/caso-alvarado-la-militarizaci%C3%B3n-sigue-amenazando-los-derechos-humanos. Acesso em 02 fev 2022.