Letícia Rizzotti[1]
Na última década, a opinião pública tem experimentado um singular retrocesso no debate sobre direitos humanos, que acomete pautas nacionais e globais. Contudo, a ideia de uma pauta una e coesa de direitos humanos sofre reveses importantes e recorrentes pelo menos desde o início do século XX. Exemplos flagrantes são as disputas sobre assentamento de minorias na Liga das Nações (1919-1939), a fragmentação de conteúdo nos Pactos de 1966, e mesmo a dissidência entre pautas desenvolvimentistas e proteções ambientais nos anos 1980 e 1990. A particularidade que vale ressaltar no Brasil de 2022 é justamente a associação feita sobre quaisquer pautas de direitos humanos a um progressismo genérico, que afasta setores conservadores tradicionais do tema e desmembra grandes questões sociais do debate público coletivo (Santos, 1997).
Este cenário conturbado foi sedimentado entre os anos 1990 e 2000 e se encaminhou para um debate interno aos progressistas: que tratavam a expansão de direitos específicos ora como a próxima fronteira no século XXI, ora como uma caricatura neoliberal. No entanto, as pautas públicas foram arrebatadas na última década (2011-2020) pela ascensão internacional de movimentos reacionários de extrema direita, que desmantelaram inclusive avanços consolidados. Este movimento é brilhantemente descrito e analisado por Wendy Brown (2019), auxiliando na compreensão de fatores importantes como a forma neoliberal entremeada nas sociedades do novo capitalismo e sua destruição avassaladora.
Esta agenda percebe como as limitações epistêmicas do neoliberalismo ensejaram o debate profundo das perspectivas de direitos humanos; não de modo superficial – como a pseudo-questão sobre ‘identitarismo’ versus consciência de classe -, mas sim no esfacelamento do componente político profundo das garantias fundamentais e seu alcance. Pois as noções neoliberais de limites da liberdade e da vida privada são condensadas em um vocabulário comum às suas ideias nucleares (Lafont, 2018). Essa linguagem tem por função normalizar, acomodar e limitar as disputas políticas nos termos do neoliberalismo preponderante. Seus referenciais são muito bem lastreados em noções básicas de liberalização da vida econômica e de limitação da ingerência pública no espaço privado.
A aproximação entre as agendas de direitos e a aceitação da desigualdade capitalista foi essencial, nas décadas de 1970 e 1980, para consolidar a predominância do aspecto liberal no conteúdo dos direitos humanos (Moyn, 2010; 2018). Em termos retóricos, a defesa dos neoliberais se pautava neste primeiro momento na proteção dos valores ocidentais, identificada como a predominância da liberdade econômica (Foucault, 2008). Liberdade essa situada na unidade básica do indivíduo, e centrada não apenas na disputa econômica, mas também como ameaça à civilização (Whyte, 2019). Neste sentido, há três momentos importantes em que se apresentam claramente as clivagens resultantes pela despolitização da agenda de direitos humanos internacionalmente.
O primeiro remete à própria disputa civilizatória utilizada como peça no tabuleiro geopolítico na governança do pós-Segunda Guerra, por pontuar parâmetros de avanço e liberdade em oposição ao retrocesso e à opressão referidos pela União Soviética (URSS), tanto quanto por resgatar o linguajar colonial presente na tradição britânica sobre as origens dos direitos fundamentais – movimento amplamente representado na Declaração Universal de Direitos Humanos (Whyte, 2019). Isso foi possível pela ligação anterior entre o liberalismo europeu e o imperialismo do século XIX, que pautou a expansão do controle das classes subalternas fora da Europa, ao mesmo tempo que expandia as noções de direitos ‘universais’ internamente (Wallerstein, 1994). Ainda que o neoliberalismo mais recente não seja herdeiro direto do liberalismo clássico, a reconexão com esse vocabulário permitiu a entrada da episteme neoliberal nesse diálogo de acordos globais.
Assim, o período de acomodação da governança global foi marcado pela tensão entre as transformações tanto no centro do capitalismo, em oposição direta à URSS e com turbulências sociais internas; quanto na periferia, com a independização de antigas colônias e controle do então Terceiro Mundo (Wallerstein, 1994). Neste sentido, o segundo momento se situa na reação neoliberal que surge a partir dos anos 1970, pois ela respondia às tensões do estado de bem-estar enquanto mobilizava a disputa com a URSS como a própria defesa da liberdade e superioridade capitalista. O caso mais evidente dessa querela, em termos normativos, é novamente a dupla edificação dos Pactos de 1966: condizentes com a divisão ideológica do globo entre capitalistas e socialistas, os dois documentos se distinguem respectivamente na proteção de liberdades políticas e direitos socioeconômicos. Mesmo com a aprovação unânime de ambos os textos na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), e com a alta ressonância das questões socioeconômicas na maioria dos Estados-membros, o flanco patrocinado pelos soviéticos teve tração muito menor, alinhando o projeto internacional dos direitos humanos à desigualdade capitalista (Moyn, 2018).
Esta não é a única divisão no campo de disputa sobre a prioridade da afirmação de direitos. Além da priorização dos termos de liberdades políticas – chamados por parte da literatura de direitos de primeira dimensão (Moyn, 2010) –, no pós-Guerra Fria houve um adensamento do rol vinculado ao próprio Direito Humanitário sob a discricionariedade da segurança internacional (Lafont, 2018), caracterizando, assim, o terceiro momento de fragmentação. Parte do que estava consolidado como direito dos conflitos armados (ou direito da guerra, no sentido mais tradicional) versava sobre condições ‘civilizadas’ de combate – especialmente na exclusão de civis como alvo – foi integrada com euforia nas novas interpretações sobre segurança, que entendia a estabilidade internacional como dependente da estabilidade social notadamente na periferia do globo (Cohen, 2012).
Essa transformação conceitual é a origem da noção de segurança humana, que aponta a necessidade de proteção dos indivíduos contra ameaças físicas, ambientais, econômicas, comunitárias, alimentar e de saúde como instrumento para a garantia da paz e da segurança internacional (Krause, 2014). O debate sobre o alargamento conceitual seguiu duas linhas gerais: a primeira primando pela segurança física dos indivíduos antes das soluções econômicas; e a segunda atentando aos vetores de desenvolvimento como aspecto central da segurança humana. Curiosamente, a cisão deste debate também se apoia em uma vertente maximalista (freedom from want) e em uma minimalista (freedom from fear). Foi a última que se acoplou à narrativa de proteção sobre a integridade física para postular o que Jean L. Cohen (2012) descreve como ‘direitos de segurança humana’: direitos estes lastreados na necessidade de adensamento dos direitos das pessoas, mas voltados para o senso de necessidade e de integridade física como a fronteira do que é mandatório e inegociável.
A imperatividade no limite da vida, colocando o próprio corpo como barreira fundamental da proteção, permitiu este terceiro momento de fragmentação na vinculação de direitos. Junto à preconização dos direitos de segurança humana, o que se experimenta hoje é a centralização e robustecimento de garantias da propriedade e dos mercados, enquanto se descentraliza e limita a atuação de políticas de caráter social e coletivo (Lafont, 2018). Esse modelo aparece em tratados internacionais com alto grau de enforcement para a liberalização comercial e a baixa vinculação dos flancos socioeconômicos de direitos humanos. Assim, são franqueadas possibilidades econômicas, sem mitigação dos impactos sociais desses processos.
No centro dessas três clivagens, está subjacente o debate sobre quais são as necessidades básicas das pessoas, o lugar do indivíduo e o espaço obrigatório de interferência externa na vida. Há, portanto, uma armadilha discursiva que amarra a própria disputa política nas fronteiras da escolha neoliberal. O retrato dessas contestações passa pelo limite da sobrevivência e despolitiza a concepção de direitos e seu processo de legitimação. Ao ponderar sobre qual é a necessidade mais básica – liberdade política ou moradia –, a linha de corte da atuação global – violência aberta ou crise de fome –, ou sobre o que é menos negociável – aceitação das regras do comércio internacional ou garantia de condições iguais de trabalho – entra-se na seara da sobrevivência das pessoas e de quais são suas preferências no espaço moral do debate. Neste sentido, os três momentos de fragmentação apontam para cisão profunda e sedimentada sobre os significados de direitos e sua natureza. A forma etapista e desarticulada dos projetos coletivos cerceia a capacidade criativa e dialética da disputa de direitos dividindo e hierarquizando prioridades de garantias básicas.
Assim, qualquer argumentação que esteja vinculada ao limite da ação, necessariamente se inscreve na lógica construída pelo pensamento liberal e hoje responde ao contra-ataque neoliberal sobre a inviolabilidade e expansão da esfera privada (Brown, 2019). A demarcação pública condicionada à integridade do indivíduo não só perpetua a episteme neoliberal como diminui a construção política e coletiva das sociedades. O reforço da figura do indivíduo sobre a sociedade exclui múltiplas possibilidades de construção política de direitos nos espaços de legitimidade (Benhabib, 2011).
O diagnóstico de Wendy Brown (2019) é novamente preciso quando ela percebe a união dessa racionalidade aos ressentidos da globalização, tradicionalmente privilegiados e que agora atacam qualquer iniciativa identificada como progressista. O desmonte profundo das redes de proteção social públicas e privadas ensejam um cenário ruinoso, como bem apontado pela autora. A franca desproteção social é alicerçada também pela despolitização das escolhas e decisões públicas. Nessa conjunção unem-se os opostos do avanço sobre a coletividade, implicando a ruptura da ideia de igualdade para além dos Estados (Benhabib, 2011), enquanto reforça os lugares de gênero e raça nas sociedades (Brown, 2019).
Aqui não se trata apenas da reformulação linguística dos projetos de direitos humanos, mas sim de levar a cabo um projeto coletivo de iterações legitimadoras sobre os conteúdos de garantias em nível global e local (Benhabib, 2011). É necessário construir e articular disputas amplas na arena política para uma agenda de direitos de envergadura universalizante e coletiva, ao invés de pautas singularizadas pelo viés humanitário de hoje. A forma capaz de superar cisões e abranger o sentido alargado de direitos humanos é enquadrar as garantias fundamentais como um projeto de sociedade motivada por debates e escolhas politizantes, em sentido oposto a tons voluntariosos e até mesmo filantrópicos. Portanto, a aposta no político e nas suas possibilidades de legitimação são fundamentais para a superação da necessidade mínima como denominador comum da disputa sobre direitos e, assim, podem acenar para uma construção mais sólida sobre o que se quer enquanto sociedade protetora de direitos e o alcance efetivo dessas garantias.
Referências bibliográficas
Benhabib, Seyla. Dignity in adversity: human rights in troubled times. Cambridge: Polity Press, 2011.
Brown, Wendy. Nas ruínas do Neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Editora Politeia. 2019.
Cohen, Jean L. Globalization and sovereignty: Rethinking legality, legitimacy, and constitutionalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
Foucault, Michel. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collegè de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Krause, Keith. ‘Critical perspectives on human security’. In: MARTIN, Mary. OWEN, Taylor (ed.). Routledge Handbook of Human Security. London: Routledge, 2014. pp.76-93.
Lafont, Cristina. Neoliberal globalization and the international protection of human rights. Constellations, v.25, n.3, 2018.
Moyn, Samuel. The Last Utopia: human rights in history. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2010.
Moyn, Samuel. Not enough: human rights in an unequal world. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2018.
Santos, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Lua Nova, n.39. 1997.
Wallerstein, Immanuel. As agonias do liberalismo. Lua Nova, v.34, 1994.
Whyte, Jessica. The Morals of the Market: Human Rights and the Rise of Neoliberalism. Verso: New York, London. 2019.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
[1] Doutoranda e Mestre pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP). Graduada em Relações Internacionais pela Unifesp. E-mail: leticia.rizzotti@unesp.br
Fonte Imagética: Encontro Continental para a Democracia e Contra o Neoliberalismo, 18 de novembro de 2017, Montevidéu, Uruguai. Reprodução: Redação Spbancarios, Sindicato dos Bancários/CUT. Disponível em <https://spbancarios.com.br/11/2017/declaracao-de-montevideu-exalta-direitos-humanos-e-conclama-luta-contra-neoliberalismo> Acesso em 25 fev 2022.