Andréia Fressatti Cardoso[1]
Sérgio Mendonça Benedito[2]
Entre os dias 16 e 23 de fevereiro do corrente ano, foi realizado o VII Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política (FBCP). Trata-se de um evento nacional que ocorre a cada dois anos e reúne pós-graduandos/as, pesquisadores/as e docentes recém-formados/as para compartilharem suas pesquisas na área de Ciência Política. Promovido desde 2009, a sétima edição do evento, programada para acontecer em Belo Horizonte, foi adaptada para o formato online nestes tempos pandêmicos, e trouxe como mote “A Crise da Ciência e o Futuro da Ciência Política”. Este lema, consequentemente, refletiu nas conferências, mesas-redondas e colóquios que compuseram o evento[3].
Neste breve relato do VII FBCP desejamos fazer uma retomada das conferências, mesas-redondas, colóquios, oficinas e grupos de trabalho que compuseram essa edição. Enquanto os grupos de trabalho refletiram a pluralidade de temas da ciência política, acompanhando os eixos temáticos do evento da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), as demais atividades revelaram duas preocupações muito atuais e pertinentes: a crise da ciência, face às opiniões e achismos que a confrontam e desafiam; e o futuro da profissão de cientista político/a, considerando o concomitante fechamento da academia e a abertura no mercado privado de trabalho.
Na mesa de abertura, a preocupação com a ciência e sua distinção da doxa marcou o debate entre os professores Harry Collins (Universidade de Cardiff) e Alberto Oliva (UFRJ). Os constantes ataques que a ciência vem recebendo, tanto de movimentos negacionistas quanto por instituições e atores políticos no Brasil e alhures, fazem com que paire sobre ela uma aparência de crise. Sua legitimidade está sendo colocada em jogo e, muitas vezes, por opiniões e achismos – diferente do que o método científico exige. Destaca-se da discussão realizada que a academia deve fazer um esforço para se aproximar do público e esclarecer tanto as bases e princípios da ciência quanto a sua importância em uma sociedade democrática. Isso se faz não apenas enfatizando os resultados e os benefícios de descobertas científicas mas, também, colocando relevo nos valores que sustentam a ciência, voltados para a formação pessoal e construção do conhecimento sobre o mundo – de modo a intervir nele.
A preocupação com o futuro da ciência política foi refletida em duas temáticas: passado e presente, e a inserção profissional futura. A lembrança do que foi e do que é a área no Brasil hoje foi exposta na mesa-redonda composta pela professora Maria do Socorro Braga (UFSCar) e o professor Bruno Reis (UFMG). Ressaltou-se a grande influência da Ciência Política estadunidense e a construção da Ciência Política brasileira a partir dos programas de pós-graduação, o que a diferencia dos processos de desenvolvimento da área na América Latina, marcada por cursos específicos de graduação – raros no Brasil atualmente, onde são mais comuns os bacharelados e licenciaturas em ciências sociais. A questão do futuro da Ciência Política, dadas as incertezas de financiamento dos programas de pós-graduação e as mudanças na área, foi apresentada já nesta mesa-redonda.
Já o futuro profissional dos/as cientistas políticos/as foi tema da mesa-redonda composta pelas professoras Luciana Veiga (UNIRIO, ABCP) e Telma Menicucci (UFMG), e os professores Adriano Codato (UFPR) e Vítor Sandes-Freitas (UFPI). O debate centrou-se em grande medida nos dados produzidos recentemente sobre a área de Ciência Política, a respeito do perfil de formação dos programas de pós-graduação, sua distribuição geográfica/regional, número de pessoas que se titularam no mestrado e no doutorado, além de sua inserção profissional posterior aos cursos. De maneira geral, houve o consenso de que as pessoas que se formam em Ciência Política já não possuem mais um caminho natural rumo à academia. Tanto em instituições públicas como privadas as vagas de trabalho são limitadas. Nesse contexto deveriam existir, por parte dos programas de pós-graduação, iniciativas mais assertivas no sentido de uma formação um pouco mais prática e menos escolástica. O que não fica claro é como isso poderá ser feito, na medida em que os programas da área, mesmo aqueles raros profissionais, ainda são avaliados com ênfase em métricas acadêmicas, como publicações.
Que os/as discentes de pós-graduação estão conscientes desse cenário, e das dificuldades presentes, fica evidente pela programação do evento referente aos colóquios de inserção profissional. Essas atividades se destacaram pela pluralidade e abrangência de ocupações que cientistas políticos/as podem exercer, incluindo diferentes funções na iniciativa privada. Foram temas de colóquios, entre outros, atividades relacionadas a relações governamentais, terceiro setor, consultoria em projetos de gestão pública, jornalismo, além daquelas mais usuais ligadas à assessoria parlamentar, institutos de pesquisa de opinião e campanhas eleitorais. Foi destacado que, recentemente, o setor privado tem buscado profissionais qualificados para a análise de diversas atividades relacionadas aos governos nas diferentes esferas da federação. E, dada a escassez de recursos encaminhados às universidades e a pouca perspectiva de inserção na atividade acadêmica, trata-se de um caminho possível para aqueles/as que estão finalizando sua graduação ou pós-graduação. Para isso, enfatizaram alguns/mas dos/as palestrantes, é necessário estabelecer criativamente um vínculo, na construção do currículo, entre o conhecimento adquirido e praticado nas universidades e habilidades profissionais requeridas – devendo o currículo ser específico para cada área e empregador/a. Além disso, em alguns cargos de consultoria e avaliação de políticas públicas, sai em vantagem quem possui conhecimento em diferentes técnicas de análise de dados e programação em R.
Em diálogo com a conferência de abertura, na intersecção com o tema da crise da ciência, a mesa-redonda “desafios do conhecimento para um mundo melhor” trouxe um debate interdisciplinar a respeito das dificuldades e possibilidades para a construção do conhecimento em contexto nacional e global. Os professores Francisco César (UFMG), Rodrigo Correa (Fiocruz) e Simon Schwartzman (IEPE), com a mediação de Eduardo Marques (USP), trataram sobre temas como desenvolvimento e crise ambiental, pandemia e saúde pública global, e os desafios institucionais para o desenvolvimento da ciência diante de diferentes crises – econômica e de confiança, principalmente.
A despeito das diferentes abordagens e assuntos tratados, pode-se estabelecer um fio condutor na ideia de que não apenas o Brasil, mas o mundo, passam por um momento crítico em que é necessário concertar um esforço coletivo em torno dos diagnósticos e achados mais relevantes produzidos pela academia no que se refere à mudança climática e a prevenção de novas pandemias. Neste cenário, exige-se cada vez mais do/a cientista, da sua capacidade de dialogar não apenas com atores políticos e institucionais mas também com o público em geral sobre a pertinência de uma ciência forte, com recursos e pessoas, e com perspectiva de manutenção e aperfeiçoamento.
Enfim, a mesa-redonda “a crise sob múltiplos olhares” apresentou um debate mais voltado para os aspectos políticos do atual contexto de instabilidade pelo qual passa o país. Enquanto Elisa Reis (UFRJ) tratou sobre o impacto dos baixos índices de confiança (tanto interpessoal como nas instituições) na crise política, Isabela Kalil (FESPSP) apresentou achados de pesquisas recentes sobre a extrema direita no Brasil e suas características. As apresentações foram fechadas por um comentário de Carlos Ranulfo (UFMG) a respeito dos cenários que se desenham para o próximo processo eleitoral e o governo que assumirá em 2023. Parte considerável da discussão envolveu o diagnóstico de que o bolsonarismo como vertente política veio para ficar, a despeito do resultado eleitoral. Preocupa principalmente o fato de que o discurso presidencial sobre possíveis fraudes eleitorais, e de descrédito do TSE, reverberou em uma parcela da população, o que pode afetar negativamente a campanha eleitoral – tanto em casos de violência política quanto de desalento, resultando em desestímulo e abstenção eleitoral. Ciente disso, Bolsonaro investirá forte no discurso da fraude, e a única chance de se ter um desfecho mais seguro seria uma derrota de seu projeto político nas urnas por grande margem. Fez-se o prognóstico de que o novo governo que assumir em 2023 dificilmente será um de inovação e progressismo, mas de reconstrução, visto todo o retrocesso produzido pelo bolsonarismo dentro e fora das instituições.
A conferência de encerramento, sob o título “Uma ciência da política: os limites e o futuro da Ciência Política”, contou com uma exposição do professor Philippe Schmitter (European University Institute). Baseando sua fala no livro recém lançado em co-autoria com Marc Blecher, Politics as a science: a prolegomenon, o professor indicou que vê a política como uma das áreas mais desafiadoras das ciências sociais, mas também a mais divertida, em suas palavras. Abordando conceitos de grandes nomes do pensamento político ocidental, como Aristóteles e Maquiavel, Schmitter apresentou as bases para se pensar a política como ciência.
Em seu modelo, deve-se partir da centralidade dos conceitos de fortuna (instabilidade), necessidade (estabilidade) e virtú (agência, por meio de escolhas discricionárias), para então considerar sistematicamente as clivagens, agentes e seus motivos, mecanismos e processos, organizações e instituições, entre outros aspectos. Nesse esquema, como não poderia deixar de ser, o cerne da política é o poder, somado ainda ao aspecto da coerção como meio de conduzir e disciplinar o comportamento dos indivíduos em um Estado nação. Em seu entendimento, a política pode ser compreendida como uma atividade dinâmica e, contemporaneamente, cada vez mais imprevisível. Por este motivo, o/a cientista político/a precisa estar preparado/a para o desafio de dar conta de cenários de crise e instabilidade.
Como é de praxe, os grupos de trabalhos (GTs) buscaram abarcar a maior parte dos temas usuais à ciência política (e contemplados nos eventos da ABCP): instituições políticas; cultura e comportamento político; teoria e pensamento político; Estado e políticas públicas; mídias, política e opinião pública; representação, participação política e movimentos sociais; política internacional e política externa; gênero, raças e identidade; e elites políticas, sociais e burocráticas. Com um dos menores índices de submissão de trabalhos do histórico do evento, segundo dados apresentados pela organização em reunião plenária, houve uma diferença no fluxo de apresentações por GTs. O que recebeu o maior número de papers foi o de instituições políticas, contando com sessões em todos os seis dias do evento, e o que recebeu menos foi o de mídias, política e opinião pública, com apenas uma sessão. Presume-se que esse quadro tenha se concretizado pela prolongada pandemia, o cansaço com seguidos eventos acadêmicos, e também as dificuldades de financiamento dos/as discentes dos programas de pós-graduação de todo o Brasil.
O evento contou ainda com diferentes oficinas, ricas em metodologias e temas, e apresentação de trabalhos de graduandos e pós-graduandos, afirmando a importância do Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política enquanto espaço de debate de pesquisas ainda em andamento e para a formação de redes entre estudantes em diferentes níveis. Se, por um lado, os principais eventos da área são fechados para a apresentação de trabalho de graduandos/as e, por vezes, limitam o acesso aos/às pós-graduandos/as, a formação acadêmica proporcionada pelo Fórum ganha ainda mais valia quando se considera o papel da pós-graduação na formação da ciência política brasileira. A premiação dos melhores trabalhos também foi destaque, e um incentivo a mais para os/as jovens cientistas.
Assim, considerando as principais atividades e mesas-redondas expostas até aqui, percebemos uma preocupação especial com a inserção profissional dos/as jovens cientistas políticos/as brasileiros/as. Em um contexto de crise econômica duradoura, de um governo anti-ciência e que promove cortes orçamentários em todas as instâncias, de rarefação de concursos públicos e desvalorização da carreira científica, a busca por alternativas se mostrou uma preocupação central dos/as pós-graduandos/as. Para além do contexto, deduz-se que essa discussão foi potencializada recentemente pela exigência, na avaliação da Capes, do acompanhamento dos egressos pelos programas. O levantamento desses dados, e o estreitamento das opções profissionais para pessoas recentemente formadas, levaram a um debate mais amplo e frequente para além dos corredores e conversas informais – como ocorreu há algum tempo no debate sobre a regulamentação da carreira de cientista político/a[4]. Assim, ao trazer esta questão, o FBCP demonstrou-se atual, mas também uma forma de resistência dos/as próprios/as pós-graduandos/as – para além dos espaços institucionais coordenados exclusivamente por professores/as de carreira. Por que ainda discutimos ciência política no contexto em que vivemos e com poucas perspectivas de carreira acadêmica?
Se a crise da ciência foi um dos temas mais recorrentes, é notável também que a própria realização do Fórum se coloca como um ato de resistência. Percebemos aqui a insistência dos eventos acadêmicos, que resistem aos poucos recursos e à COVID-19, adaptando-se aos formatos digitais e buscando fomentar debates que abrangem temáticas pertinentes e que interessam a pessoas de todo o país. Tem-se tentado resistir ao que parece uma avalanche: os cortes orçamentários levam a menos recursos e bolsas de pesquisa, que levam a maiores dificuldades de se manter o funcionamento da ciência, a promoção e a participação em eventos; por sua vez, isso gera a diminuição de textos submetidos e artigos publicados; rareia-se o debate, tão caro aos/às cientistas, porque não se tem como produzir.
O FBCP não passou alheio a todos esses acontecimentos. Com um número menor de trabalhos que as edições anteriores, adaptado ao formato online e com a necessidade de buscar apoio do setor privado, na ausência de financiamento público, o Fórum insistiu em promover um raro espaço de debate para graduandos/as e pós-graduandos/as. Não apenas a programação foi pensada de modo a contemplar as preocupações discentes neste momento, mas também a organização do evento no que se refere à pluralidade de temas nos GTs, sua composição em termos de diversidade regional, de gênero e raça, além da promoção de valores acessíveis em diferentes categorias de inscrição. Por tudo isso, o evento tem mantido a sua tradição de promover um espaço participativo e democrático, que represente a ciência política produzida nas diferentes regiões do país – e nos diferentes programas de pós-graduação que possuem linhas de pesquisa afins, para além dos mais óbvios, como políticas públicas e relações internacionais.
O desafio colocado para o corpo discente de pós-graduação a partir dessa edição do evento e dos recentes acontecimentos relacionados à política de ciência e tecnologia no país, será institucionalizar o Fórum, torná-lo uma associação que vá além da realização de um congresso acadêmico bi-anual. A manutenção desse importante espaço depende da formalização, para que enfim se possa estar em melhor posição para estabelecer parcerias e pleitear financiamento de agências públicas de fomento. Para isso, como foi abordado na plenária, será muito importante a participação ativa das representações discentes dos programas de pós-graduação da área. Do que foi possível perceber das discussões e debates então realizados, não se pode dar ao luxo de perder um espaço como este, aberto a pessoas em formação e que provêm de diferentes regiões do país para divulgar sua produção acadêmica qualificada de maneira acessível.
Além do mais, este público possui um papel como cientistas políticos/as em formação de deixar um legado seguro para as próximas gerações de estudantes. O Fórum possui uma história que precisa ser resgatada e enaltecida diante das idas e vindas na organização dos eventos, e isso não será feito sem uma ampla participação dos/as pós-graduandos/as. Por estimular todas essas questões e debate, parabenizamos a organização do evento composta por discentes do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, e desejamos vida longa ao FBCP!
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
[1] Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com bolsa FAPESP (processo n. 2020/14387-8), e membro da equipe do Boletim Lua Nova. E-mail: afressatticardoso@gmail.com. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
[2] Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), bolsista CNPq, membro do grupo de pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica e da equipe do Boletim Lua Nova. E-mail: sergiombk@gmail.com
[3] A programação e demais informações do VII Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política podem ser conferidos no site do evento: <https://www.even3.com.br/viifbcp/>. Acesso em 21 fev 2022.
[4] Vide o ciclo “Ciência política em movimento” promovido pelos programas de pós-graduação em Ciência Política da UERJ, UFPR e Unicamp, que abordou o tema na live “Ciência Política: vocação ou profissão?”. 16 nov. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NNwoJV2MyVE>. Acesso em: 1 mar. 2022.
Fonte Imagética: Imagem de divulgação do VII Fórum Brasileiro de Pós-Graduação (Créditos: Organização do VII Fórum Brasileiro de Ciência Política). Disponível em <https://www.even3.com.br/viifbcp/>. Acesso em 02 mar 2022.