Reginaldo Nasser[1]
O Boletim Lua Nova publica, a seguir, trechos da Introdução e Considerações Finais do livro recém-publicado “A Luta contra o Terrorismo: os Estados Unidos e os amigos talibãs” (Editora Contracorrente, 2021) de Reginaldo Nasser.
***
O século XXI se iniciou, efetivamente, com dois novos tipos de conflitos armados: os atentados terroristas do dia 11 de setembro e a Guerra Global contra o Terrorismo. Na verdade, não se pode dizer que a “guerra contra o terrorismo” é uma guerra dentro dos padrões históricos e conceituais. Não há nenhum inimigo a conquistar, nenhuma terra a capturar, nenhuma maneira de saber quando a guerra foi ganha ou não, ou muito menos se haverá ou não uma negociação ou um acordo de paz que colocará fim no conflito.
O estudioso de guerras, John Stoessinger, observou de forma perspicaz que, até certo ponto, as relações internacionais são efetivamente o que as pessoas acreditam que elas sejam; ou que sob certas condições os homens reagem não às coisas reais, mas às ficções que eles próprios criaram em torno delas. Nesse sentido, por vários motivos que abordamos nas páginas do livro “A Luta contra o Terrorismo: os Estados Unidos e os amigos talibãs”, aqueles que governavam os EUA resolveram responder aos atos com uma guerra e tiveram de fazer uma adaptação qualificando-a como um novo tipo de guerra e que seria global: “Guerra Global contra o Terrorismo”.
A guerra foi lançada de improviso, sem que houvesse um conjunto de informações concretas e precisas sobre os perpetradores, os planejadores ou os cúmplices dos atentados. Ao contrário, a guerra começou como uma busca por informações sobre “desconhecidos conhecidos”[2], uma verdadeira caçada para encontrar, capturar e destruir organizações e redes terroristas para evitar futuros ataques. Como na maioria das vezes em que isso aconteceu na história, o uso dos serviços de inteligência sempre foi essencial para encontrar inimigos não convencionais que não usam uniformes nem carregam armas abertamente e, no caso da Al-Qaeda, não controlam o território nem possuem armas de grande porte que poderiam ser descobertas através de vigilância aérea.
As respostas dos EUA ocorreram em torno de três eixos de ação por meio de campanhas simultâneas e interdependentes: (1) uma guerra de coalizão contra o regime do Talibã no Afeganistão; (2) uma ação global contra o terrorismo; e (3) medidas de proteção do território norte-americano. A ação global tomou, como ponto de partida, as resoluções do presidente Clinton em 1995, que autorizava “as forças policiais e militares dos EUA a usarem a força para capturar suspeitos de atos terroristas no território de quaisquer países considerados não-cooperativos na luta contra o terrorismo”[3]. Na verdade, após os atentados do dia 11 de setembro, os EUA e seus aliados passaram a fazer uso da força militar para capturar ou destruir grupos terroristas não apenas nos Estados considerados suspeitos, mas em todo e qualquer Estado e, principalmente, naqueles considerados falidos ou fragilizados, ou em áreas consideradas sem governo (ungoverned areas).
A proposta das reflexões que trago a público no livro focou no primeiro eixo citado acima. Isto é, nas ações militares que os EUA empreenderam no Afeganistão com o objetivo de desmantelar as organizações terroristas globais e punir aqueles que haviam protegido ou tolerado a Al-Qaeda. Retomando o conceito de percepção de Stoessinger, é preciso constatar que, embora a percepção possa influenciar as decisões políticas, costuma haver grandes divergências entre a percepção que se tem da realidade e a própria realidade no campo da política mundial, e que o analista e o pesquisador devem observar a integralidade dessas duas dimensões.
Assim, como é abordado ao longo do livro, no sentido operacional, a guerra empreendida pelos EUA não se diferenciou em absolutamente nada das anteriores, a não ser a justificativa de se fazer uma guerra, não diferenciando terroristas de quem, supostamente, abriga terroristas. Apesar de o governo dos EUA reconhecer que o terrorismo era transnacional, com redes que iam além dos territórios nacionais, as ações bélicas se dirigiram aos próprios territórios nacionais: Afeganistão e Iraque.
Quando mencionamos a questão da racionalidade nas ações humanas é frequente as pessoas associarem essa atitude com concordância ou justificativa. Nada disso, trata-se de tentar compreender, no sentido weberiano, qual o sentido da ação humana, dos objetivos e dos meios utilizados. Em outras palavras, o que a organização que planejou o ato pretendia com isso? Recorri, então, a um livro do historiador John Keegan em que lembra a forma pela qual Karl von Clausewitz interpretou um acontecimento que foi considerado um dos mais importantes no mundo, no contexto das guerras napoleônicas.
Clausewitz recebeu a notícia de que Moscou estava em chamas, um evento com efeito psicológico de grande impacto, para não dizer uma grande surpresa que causou espanto em todos. Clausewitz não estava convencido de que o incêndio fora deliberado, organizado pelos russos com o objetivo de negar a Napoleão o prêmio da vitória. Um ato que seria racional, por parte dos militares russos, pensou ele, era esperar que um dia houvesse circunstâncias favoráveis para retomar suas casas e propriedades.
Napoleão, um grande estrategista, mandou prender e executar os supostos incendiários, pois os vencedores queriam usufruir justamente aquilo que seria o objetivo principal da guerra que é o de exercer domínio sobre o território, as pessoas e os recursos daquele que perdeu. Clausewitz acabou se convencendo de que se tratava de um acidente,
… resultado da desordem e do hábito dos cossacos de primeiro saquear e depois pôr fogo em todas as casas antes que o inimigo pudesse utilizá-las. […] Foi um dos acontecimentos mais estranhos da história, que um evento que tanto influenciou o destino da Rússia pudesse ser como um bastardo nascido de um caso de amor ilícito, sem um pai que o reconhecesse.[4]
Concordando ou não com a explicação de Keegan sobre a atitude dos cossacos e o equívoco da interpretação de Clausewitz, o fato que me chamou a atenção é que havia um sentido, uma racionalidade no ato de colocar fogo.
Assim, foi possível que eu pudesse trilhar esse caminho para investigar as motivações, o planejamento e o contexto em que se deu o ato perpetrado pela organização, Al-Qaeda, comandada por Osama bin Laden, como é abordado no livro.
O desafio seguinte foi decifrar os objetivos e a forma pela qual os EUA reagiram a esses atos. Para me situar na dimensão de decisões de estadistas de grandes potências, recuperei uma observação do ex-secretário de Defesa dos EUA, McNamara (1961-1968), quando estava diante de uma situação única na história, momento em que o mundo esteve tão próximo de uma guerra nuclear, a Crise dos Mísseis em Cuba, em 1962. Naqueles dias bastante tensos, recorda McNamara, o presidente Kennedy insistiu que cada membro do Conselho de Segurança Nacional precisava ler o livro Canhões de Agosto, de Barbara Tuchman, antes de aconselhar qualquer tipo de decisão a ser tomada. Era a maneira de Kennedy enfatizar o constante perigo de erro de cálculo.
O livro de Tuchman narra, de forma brilhante, como as nações da Europa inadvertidamente se enganaram na Primeira Guerra Mundial. Os imperadores e generais que enviaram seus homens à guerra, em agosto de 1914, previram uma duração em termos de semanas e não de meses ou muito menos de anos. “Você estará em casa antes que as folhas tenham caído das árvores”, disse o kaiser alemão a suas tropas no início de agosto; ao mesmo tempo, os membros da guarda imperial do czar se perguntavam se deviam levar seus uniformes de vestuário para sua entrada vitoriosa em Berlim ou se esperariam um emissário. Enfim, poucos previam a catástrofe mundial que estava por vir. Uma ou outra vez, durante o conflito, os chefes de Estado tentaram recuar, mas o ímpeto dos acontecimentos os arrastou para a frente.
Pois bem, além da surpresa, outra questão que sempre nos atormenta é a imprevisibilidade das decisões e como os acontecimentos acabam arrastando até mesmo aqueles que têm o poder de influenciar os acontecimentos, como demonstra Tuchman. A comemoração da vitória de Bush contra as “forças do mal”, dois meses após o início da guerra, durou, na verdade, vinte anos, tornando-se a guerra mais longa da história dos EUA.
Barbara Tuchman, em outro livro que se tornou um clássico, A Marcha da Insensatez: de Tróia ao Vietnã, pergunta logo no início da obra: “[p]or que quem ocupa altos cargos atuam, tão frequentemente, contra os ditames da razão?”. A autora narra em detalhes as principais guerras da história e fica indignada com as decisões, segundo ela, irracionais que levaram à destruição e morte de milhões de pessoas.
Paradoxalmente, o pessimismo da autora, esconde a sua exagerada crença na razão, fora do contexto social, como se houvesse um princípio norteador das ações humanas acima dos interesses de cada grupo ou classe social. Se a insensatez ou a perversidade é inerente aos indivíduos, como esperar outra coisa do governo?, pergunta Tuchman. Ora, esclarece ela, o que mais preocupa é que a insensatez do governo exerce maior efeito sobre mais pessoas do que as loucuras individuais, e, portanto, o governo tem um maior dever de atuar de acordo com a razão. Qualquer pessoa sensata concorda com as palavras de Tuchman, mas a política se refere a um embate entre razão e loucura? Não há interesses que são racionais para alguns e irracionais para outros? As guerras não beneficiam alguns em detrimento da maioria, assim como as relações econômicas e sociais no capitalismo?
Não seria mais plausível, como propõem muitos teóricos da sociologia, ver essas ações como efeito de ideologias moldadas por conflitos entre grupos sociais decorrentes da vida em sociedade? Ou seja, é preciso considerar que o ator social está situado em algum lugar, e que, portanto, não vê o mundo da mesma maneira de todos os lugares.
Explicar os comportamentos, as atitudes e as crenças de um ator político é tornar evidente as “suas razões”, quer a julguemos legítimas ou não, que o levaram a fazer certas escolhas, assim como as consequências que essas escolhas causaram na sociedade.
Procurei no livro narrar os eventos que considerei mais importantes para compreender esse longo processo de mais de vinte anos que tem início no contexto político em que se encontrava o Afeganistão na década de 1990 e que se encerrou em agosto de 2021.
Logo no início da guerra, em outubro de 2001, um poderoso míssil Hellfire foi lançado num suposto lugar onde estaria o líder do Talibã, mulá Omar. Dezenas de afegãos foram mortos, mas o líder talibã não estava entre eles, e ninguém perguntou quem havia sido morto. Esse fato se repetiu centenas de vezes durante esses vinte anos e creio representar bem um padrão de ataques indiscriminados, mesmo com os drones norte-americanos, supostas “armas de precisão”, para decapitar o Talibã e a liderança da Al-Qaeda. Em vez disso, essas armas assombravam inocentes aldeões afegãos. Talvez isso reflita, de uma forma geral, não apenas a ação militar propriamente dita, mas uma determinada concepção sobre a humanidade dos afegãos.
Por vezes, já se disse que os números na guerra são frios e permitem esconder os sentimentos de dor e tristeza; é verdade, mas também é fato que sem os números corremos o risco de fazer abstrações que podem ser até mais eficazes na dissimulação das crises humanitárias que os conflitos provocam.
Por isso, quero deixar aqui apenas uma estimativa sobre o processo histórico que discorremos na obra. Morreram por volta de 2.488 soldados norte-americanos, com 20.722 feridos. Mais de 65.000 policiais e soldados afegãos foram mortos; pelo menos outros 135.000 foram feridos. As baixas dos talibãs foram provavelmente maiores: cerca de 100.000 mortos e 150.000 feridos. O número de civis afegãos mortos e feridos chega a quase meio milhão. Centenas de milhares de outros afegãos se tornaram refugiados ou deslocados internamente. No auge da guerra em 2015, mais de 1.170.000 pessoas haviam fugido de suas casas. Se acrescentarmos ainda as mortes e as consequências da fome e das doenças, as ações tornam-se repugnantes.
São milhares de personagens, centenas de comunidades e dezenas de instituições estatais envolvidas com diferentes perspectivas sobre os acontecimentos. No entanto, entendo que há certos elementos que ajudam a dar sentido ao todo e nos permitem compreender e situar os atentados terroristas, bem como a guerra contra o terror no contexto das ações e pensamentos daqueles que participaram desse longo processo. Com isso, esperamos ter contribuído para a forma pela qual os diversos atores sociais tenham conhecimento desses acontecimentos com objetivo principal de evitar as “guerras sem fim”.
***
Considerações Finais
Quando Joe Biden assumiu a presidência, em janeiro de 2021, ele embarcou em uma missão para reverter uma série de políticas implementadas pelo ex-presidente Donald Trump, mas deixando, de certa forma, intocado o consenso da elite em torno dos grandes eixos da política externa dos EUA. Biden chegou a emitir 42 ordens executivas em seus primeiros cem dias e empreendeu uma campanha metódica contra a agenda de Trump, mas com uma grande exceção: Afeganistão.
No dia 14 de abril de 2021, o Presidente Biden anunciou o início da retirada das forças militares norte-americanas do Afeganistão com previsão de se completar até 11 de setembro do mesmo ano, colocando um fim na guerra mais longa da história dos EUA. O presidente propôs ainda mudar o ambiente estratégico que sustentou essa guerra durante duas décadas: “ao invés de voltar à guerra com o Talibã, temos de nos concentrar nos desafios que estão diante de nós […] enfrentar a dura concorrência de uma China cada vez mais assertiva […] derrotar esta pandemia e fortalecer os sistemas de saúde globais para nos prepararmos para a próxima, pois haverá outra pandemia”[5].
Esses vinte anos de “guerra contra o terror”, também passaram a ser reconhecidos como “guerras sem fim” já que seu propósito era combater um fenômeno – o terrorismo –, desfrutando de notável apoio bipartidário no Congresso e da opinião pública norte-americana. Quatro presidentes de ambos os partidos não hesitaram em exercer seu poder de envolver militares e forças de segurança em pelo menos 85 países do mundo, e em nome da luta contra o “terrorismo” ou do “radicalismo islâmico”. Tais intervenções incluíram ataques aéreos contra grupos armados em sete países, combate direto contra tais grupos em doze países, exercícios militares em 41 países, treinamento ou assistência a unidades militares, policiais ou de patrulhamento de fronteira em 79 países, tendo como apoio as centenas de bases militares norte-americanas espalhadas pelo mundo.
Explorando a fixação dos Estados Unidos no terrorismo e seu desejo de agregar aliados na luta, líderes autoritários em todo o mundo adotaram a retórica antiterrorista da administração do Presidente George W. Bush, usando-a como desculpa para reprimir opositores e dissidentes políticos com enorme expansão do aparato repressivo contrariando os princípios básicos dos direitos humanos. Vigilância permanente e invasiva, detenções arbitrárias, legalização da tortura, assassinatos extrajudiciais e ataques indiscriminados de drones foram alguns dos procedimentos que passaram a fazer parte de um padrão de atuação da maioria dos países no mundo independentemente do regime político.
O motivo imediato da Guerra desmoronou-se depois que aquele que foi considerado o principal responsável pelos atentados no dia 11 de setembro foi assassinado no Paquistão, em 2011. Após o “triunfo” de Obama, longe de amenizar as ações contra o terrorismo, elas foram, na verdade, incrementadas, como examinado nos capítulos quarto e quinto. Além disso, é inevitável questionar: se Osama bin Laden vivia no Paquistão há anos, por que os EUA o procuram no Afeganistão? Por que os EUA, durante esses vinte anos, enviaram bilhões de dólares aos paquistaneses, anfitriões de grupos terroristas? Do primeiro ao último capítulo do livro, as questões envolvendo o Paquistão estiveram presentes e tudo leva a crer que serão fundamentais no futuro do Afeganistão.
Um outro dado que chama atenção nesse “balanço” de vinte anos é que 75% de todos os “ataques terroristas” registrados no mundo se concentraram em dez países: Iraque, Afeganistão, Índia, Paquistão, Filipinas, Somália, Turquia, Nigéria, Iêmen e Síria. Ou seja, apesar de se repetir exaustivamente nos meios governamentais dos EUA de que há um ataque aos “valores ocidentais” perpetrado pelo radicalismo islâmico, o fato é que as populações mais atingidas no mundo são as muçulmanas e, portanto, fica difícil sustentar que há um “choque de civilizações” como era o tom das narrativas do mainstream nos EUA e Europa Ocidental.
Apesar de o presidente Biden declarar, em junho de 2021, que os EUA não foram ao Afeganistão para a construção de uma nação e que é direito dos afegãos decidirem sozinhos seu futuro e como querem governar seu país, um dos pressupostos inseridos nesse grande empreendimento, como desenvolvido no terceiro capítulo, era que um governo democrático, aliado dos EUA, não só era possível, mas necessário para prevenir o futuro terrorismo antiamericano originário do Afeganistão.
Como sempre acontece em casos de intervenção militar, desde a Segunda Guerra Mundial, os formuladores de política externa sempre mencionam, retoricamente ou não, o pretensioso e arrogante papel de se reconstruir nações (Nation Building) de modo que seu modelo de Estado de sociedade pudesse ser transplantado. Um empreendimento beneficente no qual os EUA ensinariam a um país estrangeiro como funcionar melhor.
O tão alardeado processo de difusão da democracia e dos ideais da sociedade norte-americana, também se insere nesse contexto mais amplo de Nation building, o que aliás se expressou, inclusive, no nome da operação militar lançada em outubro de 2001: “Operação Liberdade Duradoura”. Isto levou a um esforço de construção de uma nação de vinte anos e que não conseguiu produzir nenhum sucesso duradouro, ao mesmo tempo em que impõe altos custos, materiais e humanos. Ora, os EUA chegaram a gastar mais com o Afeganistão do que com a reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial, com o plano Marshall, mas pouco progresso foi feito.
As estimativas de gastos do governo dos EUA em relação às guerras e demais ações militares após o 11 de Setembro estão em torno de US$ 6 trilhões no total, e de US$ 2 trilhões apenas no Afeganistão. Além do custo material, o custo humano foi drástico. Por volta de 800.000 pessoas foram mortas e 37 milhões passaram por deslocamento forçado.
Muitos investidores, nos Estados Unidos e em outros lugares do mundo, se tornaram mais ricos a partir dos US$ 6 trilhões que foram “investidos”, um termo mais apropriado do que gasto, pois mostra que alguns têm interesse em guerras, ainda que sejam, aparentemente, irracionais para todos.
Os defensores da guerra ao terror estimularam, intencionalmente ou não, um patriotismo fanático que aparece sob forma de rejeição do estrangeiro, notadamente uma aversão contundente aos imigrantes e refugiados. Mas uma das maiores ironias da história é que a maior ameaça à segurança das instituições norte-americanas não vem de nenhum grupo terrorista islâmico, ou de qualquer grande poder, mas da extrema direita doméstica, cuja eleição de Donald Trump foi um produto e um acelerador desse movimento, mas não sua causa. O ambiente para a sua ascensão política foi preparado ao longo de uma década e meia de belicismo xenófobo e messiânico de Washington, com raízes que remontam a séculos de política supremacista branca. Os ataques ao Capitólio, em janeiro de 2021, foram o ápice desse movimento.
As quase duas décadas de presença militar norte-americana no Afeganistão foram justificadas com base no fato de que a retirada das forças norte-americanas criaria um “porto seguro” para os terroristas elaborarem planos para um segundo 11 de Setembro. Os quatro presidentes dos EUA, com ênfases diferentes, repetiram o mantra de que um eventual “abandono” do Afeganistão traria consequências desastrosas para a segurança dos EUA. De um modo geral, todos os presidentes e seus secretários de Estado argumentavam que: “se o governo afegão cair nas mãos do Talibã – e permitir que a Al-Qaeda aja livremente – esse país será novamente uma base para terroristas que querem matar o maior número possível do nosso povo”[6]. As perguntas que o governo não quer responder são: o Talibã cumprirá seu compromisso sob o acordo de paz dos EUA de impedir um ataque terrorista internacional proveniente do Afeganistão? O Talibã continuará a fornecer à Al-Qaeda proteção em troca de recursos e treinamento?
Na introdução da obra lembramos as reflexões e indignações da historiadora Barbara Tuchman em relação aos desastres humanitários causados por decisões que só poderiam ser de mentes insanas. Como deixei claro naquele momento, entendemos que essas ações, infelizmente, têm “racionalidade” para alguns grupos e que, obviamente, sempre prejudica a maioria que são os mais vulneráveis.
Incrível como poucas pessoas tenham prestado atenção no fato óbvio de que nenhum dos 19 terroristas do dia 11 de setembro era do Afeganistão. Igualmente espantoso que a maioria das pessoas não tenha percebido que os preparativos mais importantes para os atentados terroristas no 11 de setembro de 2001 não ocorreram em campos de treinamento no Afeganistão, mas em apartamentos na Alemanha, quartos de hotel na Espanha e escolas de voo nos EUA. Como então aceitar que a guerra fosse dirigida ao Afeganistão? Como foi possível que a principal justificativa doutrinária para combater terroristas fosse aceita como legítima?
Parece que o governo dos EUA não quer responder a essas perguntas incômodas. Questionado por um repórter a respeito de um balanço da guerra no Afeganistão, o presidente Biden respondeu dizendo que foi uma resposta a algo horrível que aconteceu já faz muito tempo e pediu para falar do futuro. Parece que a nova palavra de ordem é esquecimento.
Referências:
KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
THE WHITE HOUSE. “Presidential decision directive 39: U.S. Policy on counterterrorism”. Clinton Digital Library, junho de 1995. Disponível em: https://clinton.presidentiallibraries.us/items/show/12755. Acesso em: 17.09.2021.
THE WHITE HOUSE. “ Remarks by President Biden on the Way Forward in Afghanistan”. The White House: speeches and remarks. Disponível em: https://www. whitehouse.gov/briefing-room/speeches-remarks/2021/04/14/remar¬ks-by-president-biden-on-the-way-forward-in-afghanistan/. Acesso em: 21.09.2021.
THE WHITE HOUSE. Remarks by President Obama on President on a New Strategy for Afghanistan and Pakistan”. The White House: speeches and remarks. Disponível em https://obamawhitehouse.archives.gov/the-press-office/remarks-president-a-new-strategy-afghanistan-and-pakistan /. Acesso em: 20.09.2021
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
[1] Professor Associado da PUC/SP. Mestre em Ciência Política (UNICAMP), doutor em Ciências Sociais (PUC/SP) e livre-docente (PUC/SP). Professor do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp e PUC) desde 2003.
[2] “Unknown Known” é a expressão usada pelo secretário de Defesa Donald Rumsfeld e que se tornou tema de documentário.
[3] THE WHITE HOUSE. “Presidential decision directive 39: U.S. Policy on counterterrorism”. Clinton Digital Library, junho de 1995. Disponível em: https://clinton.presidentiallibraries.us/items/show/12755. Acesso em: 17.09.2021.
[4] Keegan, John. Uma história da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Capítulo 1, grifo nosso.
[5] “ Remarks by President Biden on the Way Forward in Afghanistan”. The White House: speeches and remark. Disponível em: https://www. whitehouse.gov/briefing-room/speeches-remarks/2021/04/14/remar¬ks-by-president-biden-on-the-way-forward-in-afghanistan/. Acesso em: 21.09.2021.
[6] Remarks by President Obama on President on a New Strategy for Afghanistan and Pakistan”. The White House: speeches and remark. Disponível em https://obamawhitehouse.archives.gov/the-press-office/remarks-president-a-new-strategy-afghanistan-and-pakistan /. Acesso em: 20.09.2021
Fonte Imagética: Capa do livro “A Luta Contra o Terrorismo: os Estados Unidos e os amigos Talibãs”, de Reginaldo Nasser, publicado pela Editora Contracorrente em 2021 (Créditos: Editora Contracorrente). Disponível em <https://loja-editoracontracorrente.com.br/produto/a-luta-contra-o-terrorismo-os-estados-unidos-e-os-amigos-talibas/>. Acesso em 19 mar 2022.