Lucas Gabriel Feliciano Costa[1]
A semana de arte moderna, que começou em 13 de fevereiro de 1922, em São Paulo, parece não ter acabado nunca. Seus temas, pessoas artistas e autoras, contradições e críticas não cessam de fluir entre os círculos acadêmico-intelectuais do país desde então. Dos rodapés e artigos dos jornais da época assinados por grandes nomes às videoconferências internacionais realizadas com grandes nomes contemporâneos, a fortuna crítica sobre o modernismo e seus espólios cultural, literário, musical e artístico seguem vivas. Não só o modernismo expresso naquela semana interminável espalhou ramas e fincou raízes no pensamento social brasileiro, mas também os múltiplos modernismos do país que queriam falar brasileiro e pediam por identidade, viam a voz e ação de gente patrícia, estando ainda “na ordem do dia”. O modernismo brasileiro está presente em suas obras e nos muitos estudos polivalentes de investigação e interpretação sobre o período, e é aqui que começamos nossa conversa: temos um novo livro sobre o modernismo na mesa.
Acaba de vir à luz uma nova pesquisa sociológica que discute essa presença do modernismo a partir de um de seus nomes mais fortes: O modernismo como movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado (editora Vozes), de André Botelho (UFRJ/Anpocs) e Maurício Hoelz (UFRRJ). Como se tornou habitual durante os tempos pandêmicos, o lançamento contou com a mesa virtual no canal do projeto Minas Mundo[2], colocando em diálogo os autores e mais dois participantes: Nísia Trindade Lima (presidente da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz) e Pedro Meira Monteiro (professor de literatura em Princeton), leitores interlocutores e provocadores desse diálogo. Numa relação entre arte, literatura e teoria sociológica, costuraram-se as ideias fundadoras e temas da obra. Vejamos alguns de seus pontos.
Primeiro: por que Mário de Andrade (doravante MA)? Rondou durante todo o diálogo esta pergunta básica. Por que seguir estudando sua vida e obra? Mesmo que os temas tomassem espaço na conversa, como em rondó, as falas caminhavam, depois das variações, ao refrão-resposta à pergunta. E o refrão cantava alguns temas. O primeiro era (i) a necessidade latente de reanalisar a obra de MA como intelectual brasileiro com propostas de interpretação do Brasil e idealizador de projetos científicos e políticos de reconhecimento do país. MA, para além do autor da criação instigante e da pena prolífica, era um ser humano engajado com um movimento cultural que reconstruiria um Brasil brasileiro.
Na arte, compromissada com as ideias da pessoa política, intelectual e desejante, MA experimentava o dilema que atravessa sua obra, e que tomou espaço na conversa de lançamento do livro a quatro mãos: o interesse num fazer artístico engajado e o resultado sacrificial de sua criação. Criar de forma desinteressada e desenvolver uma arte individual que dê vazão ao desenvolvimento da técnica do artista, ou fazer obras interessadas, compromissadas com o coletivo e com uma causa em que se quer intervir?[3]
Daí vem o segundo tema: Botelho e Hoelz parecem concordar com o próprio MA, que em seu Ensaio sobre a música brasileira (Andrade, 2006) apresenta sobre seu pensar sobre o Brasil: “[a nossa música] [É] arte de circunstância. É arte interessada. […] O critério atual da Música Brasileira deve ser não filosófico, mas social. Deve ser um critério de combate” (p. 15). MA é presente porque (ii) desenhou um projeto intelectual e artístico de definição e intervenção cultural engajado e justo à condição nacional daqueles tempos, de cancros sociais e veias abertas pulsantes de um povo desconhecedor de si mesmo. Seu projeto é de circunstância, de tempos de um Brasil ainda mais desigual e dirigido por pessoas insensíveis às condições de existência de parte grande de seus patrícios. Não é uma arte de salvação, é uma arte de ação e em ação. MA pensamenteava:pensava em ação, pensava fazendo, fazia pensando seus projetos. Era arte e pensamento em movimento fazendo um movimento, um movimento cultural. Eis o título da obra de Botelho e Hoelz.
O modernismo de MA não marca apenas as inovações de uma estética aberta e uma talentosa polivalência das páginas em verso e prosa, das partituras e teoria filosófica, das viagens etnográficas e dos relatórios de pesquisa do folclore nacional. Seu modernismo, bem como os outros modernismos e modernistas brasileiros, é nacionalista, mas não como os nacionalismos românticos em terras europeias, criador de síntese e identidade, ligação com as coisas de uma raça pura. É nacionalismo moderno, que quer ensinar o brasileiro para o Brasil, quer reconhecer-se, por-se diante do espelho, expor as contradições daquele país vivente à francesa[4] e pedir compromisso consigo mesmo, de não exotizar-se ao mundo, mas de criar-se e mostrar-se como múltiplo. No baile das quatro artes, MA dança em par com o Brasil desconhecido, com seu interior. Não só o interior longe das metrópoles, mas o interior da cultura nacional como um mundo maior que as próprias metrópoles.
Creio que esse livro de Botelho e Hoelz conseguirá informar e instigar pessoas curiosas e ávidas por trabalhar a questão nacional, as artes e o pensamento social brasileiro de forma ímpar. Isso porque amplia a interpretação da obra desse grande nome escolhido, no sentido da dimensão de movimento, de uma ação e de demanda, intelectual, política e artística, de um direito e a um objetivo: respectivamente, à existência de um Brasil plural, não simplesmente antropofágico, criador de sínteses pelo consumo de si mesmo; e de reconstruir de um Brasil plural, amplo e cheio de mundos e vidas que compõem pensadores e artistas de “cabeça” e de “coração”.
No espaço em que um “eu” em diálogo com o “você” possa dar voz à primeira pessoa, diria: quero muito ler este livro porque, como amante de MA e apaixonado pelo pensamento social brasileiro, entendo que uma abordagem sociológica do modernismo como movimento cultural, especialmente pela obra de MA, será de grande valia para minhas pesquisas e certamente para as suas também. E claro, porque acredito que MA é um dos nossos principais intelectuais, que pensou conhecimento e arte de forma relacional. Avesso a sínteses, preferia unidades, e suponho ser essa uma possível unidade marioandradina: o movimento para a formação de uma cultura brasileira múltipla de suas muitas variedades criação e criadora de si mesma, formada e informada de seus conteúdos. Serão sua coluna vertebral e não adereços ao corpo ou ornamentos de vestuário.
Além de bela, cheia de conhecimento e imaginação, engajada ou não, artística ou popular, MA me ensinou que “Arte é uma forma de contato, é uma forma de crítica, é uma forma de correção. É uma forma de aproximação social” (Andrade, 2013, p. 336). A arte e o conhecimento brasileiro de MA é um resultado da relação que só existe na relação, que se cria pela relação. A relação e seus produtos me interessam, como me interessa MA. A relação é o sacrifício da dicotomia entre interesse e desinteresse, entre coletivo e individual. É unidade, complexificação necessária, sem totalizar. É o sacrifício que o MA que vemos no calvário da bela capa do livro lançado no canal Minas Mundo nos ajuda a fazer. Acredito que o livro de Botelho e Hoelz pode nos ajudar a conhecer mais disso tudo. Não vejo a hora de devorá-lo… não, melhor, de relacionar-me com ele. Ah, e recomendo: leia MA.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006.
ANDRADE, Mário de. Música, doce música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
NEEDELL, Jeffrey D. Belle époque tropical. 1. ed. Bernal: Univ. Nacional de Quilmes, 2012.
FRAGELLI, Pedro. Engajamento e sacrifício: o pensamento estético de Mário de Andrade. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 57, p. 83-110, dez. 2013.
[1] Mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Goiás (UFG), desenvolvendo a dissertação intitulada provisoriamente de O som das patrícias: os trabalho de mulheres no mundo da música do Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX (1889-1902), sob orientação do professor Doutor Jordão Horta Nunes (UFG). CV. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4915542141356819. Contato: lucasgfc.lg@hotmail.com.
[2] Link para o vídeo-conversa de lançamento da obra: https://youtu.be/3r3P5fTNXso?t=2.
[3] Esta discussão é desenvolvida por Fragelli (2013).
[4] Discuto no primeiro capítulo de minha dissertação de mestrado a presença de um projeto civilizador e modernizante das estruturas físicas e culturais do Brasil iniciados ainda no século XIX, mas que são levados a cabo nos últimos dois quartos do décimo nono e nas primeiras décadas do vigésimo século. Argumento, junto a alguns autores, fazendo destaque para a obra de Needell (2015).
Fonte Imagética: Fonte: Capa do livro — Botelho, André; Hoelz, Maurício. O Modernismo como Movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado. São Paulo: Editora Vozes, 2022. Disponível em: <https://www.livrariavozes.com.br/modernismocomomovimentocultural-o-6557133667/p>. Acesso em: 28 mar. 2022.