Resposta ao texto de Hélio Beltrão, “51 anos de uma péssima ideia”
Ulysses Ferraz[1]
Hélio Beltrão, em texto publicado na Folha de SP em 05.04.2022, pretende fazer uma crítica ao filósofo John Rawls. Vejamos a sua suposta argumentação.
Após lamentar a “incontestável” influência exercida por Rawls tanto na filosofia política quanto no direito, Beltrão afirma que Rawls “sugere um ordenamento jurídico […] que suprime ou relativiza o direito de propriedade, baluarte da civilização ocidental”. Trata-se de uma alegação exagerada, pois na concepção rawlsiana de justiça os direitos de propriedade privada pessoal (automóveis, imóveis para moradia, bens duráveis como eletrodomésticos etc.) fazem parte do rol das liberdades básicas garantidas. Quanto ao direito à propriedade privada dos meios de produção, Rawls afirma que sua regulação não deve ser determinada por princípios de justiça, nem por meio de dispositivos constitucionais, mas pela legislação ordinária com base no resultado da deliberação política no âmbito dos parlamentos. Portanto, a garantia ou não de direitos de propriedade dos meios de produção não deve ser decidida antecipadamente por critérios de justiça (pois ambas as situações podem, a princípio, ser justas), mas escolhida democraticamente por critérios relacionados à cultura de fundo das sociedades contemporâneas.
Em seguida, o autor afirma que “[1] Rawls adota linguagem e terminologia vagas e imprecisas. [2] Sua ambiguidade permite que adeptos de distintas filosofias políticas a considerem a doutrina rawlsiana compatível com a sua própria, principalmente se interpretada com excesso de boa vontade”. Em suporte à primeira premissa [1], acerca da imprecisão da terminologia rawlsiana, Beltrão não apresenta, em nenhuma passagem de seu texto, exemplos de imprecisão dos conceitos utilizados por Rawls. Mas mesmo se supusermos que a alegação fosse verdadeira, dela não se segue que a suposta ambiguidade terminológica de Rawls implique “que adeptos de distintas filosofias políticas a considerem a doutrina rawlsiana compatível com a sua própria, principalmente se interpretada com excesso de boa vontade”. A fraqueza da premissa [1] e a ausência de implicação causal entre as proposições [1] e [2] fazem com que a alegação de Beltrão seja logicamente inválida.
Quando descreve o experimento mental utilizado por Rawls para derivar princípios de justiça alternativos ao utilitarismo, Beltrão demonstra pouca familiaridade com o “construtivismo rawlsiano” que pretende criticar. A “assembleia” concebida por Rawls, conhecida como posição original, não é composta por “indivíduos desumanizados que [decretarão] o que é a justiça”, como afirma Beltrão. É certo que na posição original os representantes dos cidadãos não conhecem o lugar que seus representados ocupam na sociedade. A ideia é que, ao restringir as informações disponíveis às partes representantes, evita-se que fatores arbitrários de um ponto de vista moral influenciem na distribuição dos frutos da cooperação social, sejam eles acidentes da dotação natural (talento, inteligência, saúde etc.), ou contingências das circunstâncias sociais (posição de nascimento, classe social etc.). Mas isso não significa que os cidadãos na concepção rawlsiana sejam “desumanizados” e que desconheçam o “certo e o errado”, o “bem e o mal”, e que não tenham “metas de vida”, como assevera Beltrão.
Ao contrário, Rawls afirma que os cidadãos representados na posição original possuem as capacidades de se ter um senso de justiça e de formar uma concepção de bem (2003 [2001], pp. 26-27). E embora a situação descrita por Rawls na posição original seja uma condição de incerteza, já que as partes representantes desconhecem as particularidades dos cidadãos por elas representados, isso também não implica que os cidadãos adotem uma “extrema aversão a risco”. Para Rawls, a escolha dos princípios de justiça não depende de nenhum comportamento particularmente conservador em relação a correr riscos na posição original, mas dadas as características singulares da posição original, seria racional escolhê-los “para qualquer pessoa cuja aversão à incerteza, no tocante à possibilidade de garantir seus interesses fundamentais, [esteja] no âmbito da normalidade” (RAWLS, 2016 [1999], p. 210).
Em seus comentários relativos aos princípios de justiça que seriam derivados da posição original, Beltrão alega que ninguém mereceria o produto dos próprios esforços porque todos estariam sujeitos a uma “forçada equalização social”. Ora, se o princípio distributivo rawlsiano, conforme citado por Beltrão, permite alguma desigualdade, desde que traga benefícios aos menos favorecidos, então, na concepção de Rawls, não seria injusto recompensar adicionalmente alguns membros da sociedade, desde que isso contribuísse para melhorar a situação daqueles em pior situação social. Não há, portanto, “equalização social” na concepção de Rawls, e muito menos “forçada”, uma vez que os critérios distributivos seriam escolhidos por meio de um acordo coletivo no âmbito de uma sociedade democrática. O que se quer evitar, na concepção de Rawls, é que uma parte da sociedade, a mais favorecida, exerça domínio sobre os mais desfavorecidos a ponto de controlar as instituições políticas de modo a reforçar o seu poder de dominação.
Por fim, Beltrão alega, novamente sem demonstrar, que Rawls “se vale da falácia do “petitio principii”, ou seja, estabelece seu experimento mental de forma a garantir que resulte em uma repartição igualitária, de acordo com seu pressuposto de que qualquer diferença inicial entre indivíduos é injusta”. De fato, para que a conclusão de um argumento seja aceita, é necessário que o interlocutor possa aceitar as premissas. Em outras palavras, não se pode dar como certo aquilo que se pretende provar. Contudo, a argumentação de Rawls a partir da construção da posição original não é propriamente dedutiva. Isso significa que, conforme explica Rawls, os “princípios de justiça que são objeto de acordo não são, portanto, deduzidos das condições da posição original: são selecionados de uma lista dada” (2003 [2001], p. 117). A rigor, a posição original não é um procedimento de dedução, mas de seleção de princípios[2]. Dizer que Rawls incorre em petição de princípio é um erro categorial porque essa falácia é relativa a argumentos dedutivos. O que deveria ser feito por parte do autor é criticar os critérios utilizados por Rawls na posição original, ou a própria ideia de se utilizar um experimento mental para se derivar princípios de justiça, o que Beltrão não faz. Apenas dispara: “Rawls é o caos”.
O que se pode concluir do texto “51 anos de uma péssima ideia” é menos acerca de Rawls, pois o que se fez foi um espantalho do filósofo estadunidense e não uma crítica minimamente argumentada, e mais sobre o que já se sabia do próprio autor: que ele odeia concepções igualitárias de justiça. E como odiar não é suficiente para criticar, ficamos sem uma discussão à altura de um tema tão fundamental para o debate público: a justiça social. Seria boa ideia se, numa próxima ocasião, Beltrão nos brindasse com pelo menos um argumento (e não apenas com gostos pessoais) para possibilitar um debate qualificado em torno da obra daquele que é considerado o maior filósofo político do século XX.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências:
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2016 [1999].
______. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [2001].
[1] Mestre e doutorando em Lógica e Metafísica (PPGLM-UFRJ) e doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ).
[2] E mesmo que, por hipótese, aceitemos que o argumento da posição original seja dedutivo, ainda assim não é correto dizer que Rawls incorreu em petição de princípio. Isso porque, ao estabelecer as restrições informacionais na posição original, Rawls não “pede” nem pressupõe que seus interlocutores as aceitem sem oferecer uma argumentação que as justifiquem. Para Rawls, a razão para que as partes representantes desconheçam certas características específicas de seus representados na posição original (como classe social, sorte na distribuição das dotações e das capacidades naturais, inteligência, força etc.) é porque essas características são arbitrárias do ponto de vista moral e devem ser desconsideradas para fins de critérios distributivos em uma sociedade justa. Trata-se do argumento da “arbitrariedade moral”.
Referência Imagética: John Rawls: Faculty of Arts and Sciences – Memorial Minute (Créditos: The Harvard Gazette). Disponível em <https://news.harvard.edu/gazette/story/2005/05/john-rawls/>. Acesso em 07 abr 2022.