Ronaldo Tadeu de Souza[1]
No ano em que se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, veio à tona o debate sobre o predomínio forjado dos paulistas de acontecimento decisivo na formação da cultura brasileira. Não se duvida que alguns dos principais organizadores, divulgadores e personalidades da semana em São Paulo, eventualmente, tinham interesses particulares na construção da ideia de que a cidade era o locus irradiador de inovações das artes no país. E que mesmo a crítica paulista (Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido e Alfredo Bosi, por exemplo) desejou de modo arguto o auto-privilégio em erigir aquela semana como os mais precípuos dias da vida espiritual da nação.
E quanto aos literatos que participaram (e organizaram) a semana? E as produções que resultaram do espírito inovador e disruptivo do modernismo? Pode-se inferir que, por sendo paulistanos e paulistas e por aqui vivendo, soergueram deliberadamente suas elaborações experimentais tendo no horizonte o objetivo de construir a imagem de São Paulo como o único e verdadeiro lugar da modernidade na sociedade brasileira? Se assim pretenderam, o resultado, acredito, não foi bem-sucedido do ponto de vista da matéria literária que nos legaram. Na multifacetada obra de Oswald de Andrade (mas não só ele; trato dele aqui por motivo do espaço cedido) temos a formação de um quadro cultural que extrapola elementos do que podemos chamar por “paulistanismo”.
Não deveríamos nos surpreender com a evidência de que os escritores e escritoras de 1922, em especial Oswald de Andrade, ao se lançarem na modernidade, estavam cientes que “o moderno no Brasil” tinha como mote principal o que o crítico literário George Steiner chamou de “inconclusão” (Caderno Mais!/Folha de São Paulo de 04 de abril de 2001). O tempo estético que caracterizou o mundo na primeira metade do século XX expressou-se por “modelos de imensidão incompleta” – pelo “excesso de esboços e rascunhos”. E assim constituídas, as experiências do modernismo tinham poucas possibilidades de representarem projetos locais com objetivos racionalmente delineados com precisão e estavam longe de ambicionar um todo fechado. No Brasil, tal característica iria ser exacerbada, mesmo para os artífices da semana ocorrida em São Paulo – supostamente bem tramada para a conquista do país.
É certo que a cidade, já naquele momento, apresentava alguns traços particulares nos planos econômicos, políticos, educacionais e urbanísticos e, consequentemente, estava imbuída na disseminação de interesses mais condizentes com destinações pragmáticas. E que a cultura – artes plásticas, literatura, música, e arquitetura –, obviamente, poderia ter se tornado parceira bem-vinda para as intenções dos paulistanos. Entretanto, nesse caso específico, não há “novidade”, pois os modos de disposição fina e habitual da alma desde os dias de Homero na Atenas antiga – é verdade que aqui de maneira involuntária – podem representar aspectos alheios à sua dimensão interna (Marcuse, 1971).
Ainda assim, na obra de Oswald de Andrade experimentamos o avesso de qualquer pretensão em espelhar as preferências imediatas dos paulistas. Inacabamento é o estilo que mais podemos sublinhar na literatura oswaldiana; tanto na personalidade do escritor, nas modalidades de textos que escreveu, como na técnica e forma narrativa que desenvolveu. Ao nos debruçar sobre sua obra, observamos uma modernidade muito além de qualquer traço configurado tendo em vista interesses exclusivamente locais e bandeirantes. Oswald foi poeta e romancista: publicou manifestos e ensaios, escreveu peças de teatro e vislumbrou a cadeira de filosofia no departamento francês de ultramar. Uma existência em rascunhos que satirizava as elites tropicais, inclusive as de sua terra natal.
Possuía a aventura literária de Oswald de Andrade a rebeldia dos que, na era moderna, incessantemente buscaram o novo, daí sua obra contemplar uma diversidade de estilos de escrita que de nenhum modo poderia estar em adequação com o Estado e a cidade que sediou a Semana de 1922.
Um texto como o “Esforço Intelectual do Brasil Contemporâneo”, reunido na coletânea “Estética e Política” organizado por Maria Eugenia Boaventura (1992), revela um Oswald que diz sobre a constituição da “literatura brasileira: [que ela] acompanha primeiramente uma linha descendente, que parte das imitações do classicismo ibérico para esbarrar no esforço nacional de Machado de Assis” (p. 31) e é complementada pelo “regionalismo [que] surge nos quadros rústicos de Ricardo Gonçalves e Cornélio Pires em São Paulo […] nos poemas espontâneos e líricos de Catulo da Paixão Cearense […], que magnetizava as panteras, os dilúvios periódicos dos Amazonas, que engole florestas e aldeias” (p. 33).
O empenho de Oswald estava em inserir a cultura brasileira no que Haroldo de Campos (1997) chamou de marco anti-normativo da modernidade – a confiança que aquela representava um dos elos de formação estética do que ocorria no mundo por então. Para isso, o primeiro passo era a definição e valorização de nossa literatura e arte; uma interação rebelde de experiências sensíveis entre o universalismo de Machado e os localismos de Gonçalves, Pires e Paixão Cearense.
A irreverência vanguardista oswaldiana não conhecia limites locais, e nem mesmo nacionais. Pois, em referido texto, simbolicamente apresentado ao público francês em 1923, dizia sobre nossa “escultura, na antiga colônia, […] e seu precursor. Era um cavouqueiro de Minas, que tinha a alcunha de ‘Aleijadinho’ devido a uma deformidade [e é dele] […] que […] nosso escultor Victor Brecheret tenta extrair hoje sua arte” (1992 [1923], p. 37). Ora, uma mente de exclusividade paulistana não se disporia a falar da amplitude do “Esforço Intelectual do Brasil” através das vivências que mobilizou em uma conferência na Sorbonne.
No mesmo contexto, veio a público “Memórias Sentimentais de João Miramar”. Aqui, novamente, não se tratava de erguer o prestígio da Paulicéia com palavras estetizadas – seria “insulto”, no dizer de outro Andrade no ensaio-conferência “O Movimento Modernista” –, mas de elaborar “o primeiro cadinho de nossa prosa nova” (Andrade, 1997 [1943] apud Campos, 1997). Ao dizer isso, em 1943, lembrando de sua prosa-poema de 1923-1924, Oswald pretendia escrever um livro que extinguiria outros livros.
Eram os dias de “Ulysses”, o romance de Joyce que parodiava a “epopéia homérica” (1997, p. 18) afirma Haroldo de Campos. Eram os dias também do futurismo e da influência pictórica das vanguardas artísticas, do cinema eisensteiniano e da prosa fragmentária de Mallarmé. Composto por 163 cenas elípticas, um estilo de não-completude do modernismo, o “João Miramar” é a realização formal de uma experimentação literária em que a realização corresponde de modo exuberante à concepção (Candido, 2004).
Seja recordando o “espião […] espinafrado num café de Bruxelas” (“83-Outro Tapa”, 1992 [1924], p. 73), seja dizendo memorialmente que “o carteiro veio me dizer que Rolah ficara só e minha, porque o biombo materno se tinha fechado em pressa marítima na direção afarista do Rio” (“125-Vírgula”, 1992, p. 89); ou ainda no arranjo disruptivo do poema-romanceado em que Miramar canta “Bonde goals/ Aleguais/ Noctâmbulos de matchs campeões/ E poeira/ Com vesperais/ Desenvoltas tennis girls/ No Paulistano/ Paso doble” (“123-Bungalow das Rosas e dos Pontapés”, 1992, p. 88) , o que presenciamos são três personificações literárias em que a “linguagem sintética e fulgurante”, como bem lembrava Antonio Candido em “Estouro e Libertação” (2004 [1944], pp. 19 e 20), dão à obra oswaldiana o aspecto de um dos pontos mais altos de nossa cultura.
Não é possível verificar, assim, concernente ao teor de realidade imanente da prosa, isto é, a matéria literária em si de Oswald, elementos de uma mente que intencionava a projeção da cidade de São Paulo. Que outros e outras a fizeram: está aquém e além desse canibal cosmopolita dos trópicos (Nunes, 1979) e de alguns dos seus/suas colegas mais ousados/as – como Patrícia Galvão, a Pagu, que, mesmo não sendo nascida em São Paulo e não participado diretamente da Semana de 1922, mas sob influência de Oswald, com quem viria a ter romance e casamento, dirá em 1945, com sopro de literariedade que “sobre o chão de pedra, de areia, ou sob a neve, o trabalho do escritor revolucionário estendeu para o futuro a mão que semeia embora sáfaro, inculto e hostil o terreno” (1985 [1945], p. 150); há um impulso anti-localista inegável nessas palavras.
Oswald de Andrade, como todo grande escritor e personagem de uma cultura tão singular que é a brasileira, atravessou ironicamente circunstâncias que não havia planejado. E, nesse espírito, o escritor paulistano redigiu a peça teatral “O Rei da Vela” na Ilha de Paquetá, no Rio de Janeiro, em 1933.
O modernismo do escritor se constituía por tentativas incontidas, nunca terminadas, sempre a desafiar as fronteiras dos modelos de expressão da linguagem (nesse caso, a tentativa é na arte cênica criada pelos gregos), era um estouvado profano; e isso lhe custou, pois, por vezes, se confundia o homem da “estilização fácil” com o escritor de realizações “seríssimas”. Essa advertência de Antonio Candido (2004), que sustentou crítica no já referido “Estouro e Libertação” sobre as oscilações dos textos do autor enquanto realização literária antes e após o “Memória Sentimental de João Miramar”, ao tratar da obra de Oswald pode ajudar a desmistificar a leitura excessivamente biográfica (por aqui ainda grassa o método Sainte-Beuve que Proust, outro vanguardista, há muito demoliu com a fineza e educação de sua crítica), generalista e simplória porque pouco atenta aos textos – do que foi a modernidade brasileira.
Voltando ao “Rei da Vela”. A peça encenada anos depois por José Celso Martinez Corrêa, que no prefácio à edição de 2000 pela editora Globo afirma que na “superteatralidade” de Oswald já se revelava “o imenso cadáver que tem sido a não-História do Brasil” (2003 [1967], pp. 25 e 29]), termina com Heloísa em soluços gritando:
“– Aberlado! Abelardo!”
Ao que Abelardo II diz;
“– Heloísa será sempre de Abelardo. É clássico!”
E numa catarse brasileira que nos faz refletir hoje em 2022 sobre a situação em que nos encontramos, o Americano arremata:
“– Oh! good business!”
O modernismo, e o modernismo de Oswald de Andrade em particular, são exercícios intelectuais e de cultura com ensaios, bosquejos e croquis que os interesses de São Paulo não conseguiram conter. É mais conveniente nos dias atuais retomarmos o espírito insubmisso e insurrecional da estética de 1922 e nos inspirarmos para refletir acerca do sentido presente até hoje em nosso país (e no mundo) do interminável “Oh! good business” – esse sim acabado, racionalmente construído e muito seguramente com locais definidos.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Bibliografia
ANDRADE, Oswald. Esforço Intelectual do Brasil Contemporânea. In: Estética e Política (Org. BOAVENTURA, Maria Eugenia). São Paulo. Globo, 1992.
______. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo. Globo, 1997.
______. O Rei da Vela. São Paulo. Globo, 2003.
CAMPOS, Haroldo de. Miramar na Mira. In: Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo. Globo, 1997.
CANDIDO, Antonio. Estouro e Libertação. In: Brigada Ligeira. Rio de Janeiro. Ouro sobre Azul, 2004.
CORRÊA, José Celso Martinez. O Rei da Vela: o Manifesto do Oficina. In: O Rei da Vela. São Paulo. Globo, 2003.
GALVÃO, Patrícia (Pagu). A Sementeira da Revolução. In: Breton/Trotski: Por uma Arte Revolucionária e Independente. São Paulo. Paz e Terra,1985.
MARCUSE, Herbert. A Dimensão Estética. Lisboa. Edições 70, 2007.
NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo. Perspectiva, 1979.
PROUST, Marcel. Contra Sainte-Beuve. São Paulo. Iluminuras, 1988.
STEINER, George. A Viagem Crepuscular de Walter Benjamin. Folha de São Paulo/Caderno Mais! 04/04/2001.
[1] Doutor e Pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP e no Grupo de Pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica (CNPQ-USP) e editor do Boletim Lua Nova/Cedec.
Fonte Imagética: Retrato de Oswald de Andrade, 1922, Tarsila do Amaral, Óleo sobre tela, c.i.e. 42,00 cm x 61,00 cm (Crédito: Reprodução fotográfica Romulo Fialdini). Disponível em: <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2317/retrato-de-oswald-de-andrade>. Acesso em 28 mar. 2022.