Laura Pimentel Barbosa[1]
Este texto é parte de minha pesquisa de doutorado em andamento[2], na qual discuto as diferenças particulares entre Think Tanks ideologicamente orientados – progressistas e/ou conservadores – no que se refere a temas, foco, e locais de atuação[3]. A partir dessa análise geral, será possível entender melhor o cenário dos Think Tanks nos Estados Unidos e o processo de polarização entre as elites políticas no país.
Analistas de Relações Internacionais estão acostumados a considerar que a formulação de política externa se subordina essencialmente a aspectos estruturais do sistema internacional, os quais impõem aos Estados determinados caminhos e possibilidades de atuação[4]. Minha pesquisa busca iluminar um ângulo diferente da formação da política externa: os atores que promovem suas visões de mundo, apontam para problemas, sugerem soluções e buscam direcionar o posicionamento de um país no cenário internacional. Ao conjunto desses atores, que compõem a elite política que se organiza em institutos, grupos e associações, Campbell e Pedersen (2014) dão o nome de “Regimes de Conhecimento”. Os Regimes de Conhecimento são aparatos de formação de sentido [sense-making apparatus] que ajudam a opinião pública e formuladores de políticas a interpretar problemas e proporem soluções. Esse é um papel especialmente importante em momentos de transformação, insegurança e incerteza.
Segundo os autores, os países terão diferentes configurações de Regimes de Conhecimento a depender do regime político e econômico. No caso da França, por exemplo, onde a economia é mais coordenada, e o regime político centralizado, o Regime de Conhecimento se desenvolveu na própria estrutura burocrática do Estado, sendo assim menos propenso à competição interna. O caso que nos interessa aqui é os Estados Unidos: sua economia menos coordenada e o sistema político descentralizado, altamente competitivo, estimularam a criação de um Regime de Conhecimento independente, não-estatal e concorrente. Em suma, um mercado de ideias competitivo.
Os principais atores que compõem o Regime de Conhecimento nos Estados Unidos são os chamados Think Tanks[5]. Trata-se de institutos de pesquisa, avaliação e análise de políticas públicas que começaram a surgir ao final do século XIX como resposta aos novos desafios econômicos e sociais decorrentes da industrialização, urbanização, e desigualdade econômica (Smith 1993; Bertelli e Wenger 2009, 229). Com a ascensão dos Estados Unidos como potência global após a Primeira Guerra Mundial, um número maior de Think Tanks passou a atuar na área de Relações Internacionais, Segurança e Defesa, constituindo-se como importantes atores também para a formulação e aconselhamento na área de política externa, além de servirem como fornecedores de pessoal especializado para atuarem como oficiais de governo (McGann 2010). Contudo, há um fator interessante que impacta o regime de conhecimento norte-americano: o processo de polarização política que se inicia entre as elites políticas em meados do século XX.
Cabe uma breve exposição sobre as duas principais vertentes ideológicas dos Estados Unidos, conservadorismo e progressismo. Por um lado, nos Estados Unidos, não se desenvolveu um movimento de esquerda nos moldes socialistas, o que confere um caráter específico à disputa ideológica norte-americana. De outro, o movimento conservador dificilmente pode ser igualado ao conservadorismo tradicional europeu, aos moldes de Burke; o movimento conservador daquele país é composto por diversas vertentes, algumas delas em oposição, como o conservadorismo religioso e o libertarianismo, mas que se associaram por conveniência política (Carey 2004)[6].
No escopo deste artigo, basta dizer que o que compõe o conservadorismo é a busca por uma sociedade baseada em valores de liberdade e responsabilidade individual, igualdade perante a lei, valores tradicionais e, no campo da política externa, preocupações com segurança e defesa. Por outro lado, os liberals, herdeiros de uma tradição cientificista e reformista característica do final do século XIX, buscam fortalecer o Estado, promover ampla regulamentação do mercado, e pensam em termos de equidade, igualdade econômica, e ampliação da democracia; enfim, no campo da política externa, são mais inclinados a falar em multilateralismo.
Minha amostra se refere aos principais institutos formados entre 1910 e 2020, e pautamo-nos numa análise descritiva (Murteira e Black 1988; Morettin e Bussab 2017). Dividi a amostra em cinco períodos: 1910-1950; 1951-1970; 1971-1990; 1991-2010; 2011-2020, seguindo a literatura sobre o desenvolvimento dos Think Tanks no país (McGann, Viden, e Rafferty 2014, Introdução). Em seguida, realizei uma Análise Qualitativa de Conteúdo (Mayring 2000; 2014; Schreier 2012) das declarações de missão desses institutos.
Declaração Ideológica dos Think Tanks
No primeiro momento, da análise, observa-se que para todos os períodos os institutos classificados ideologicamente como de centro são a maioria. Think Tanks de centro são aqueles em que não pude identificar uma inclinação ideológica clara a partir de nossa análise qualitativa[7]. No que se refere aos institutos ideologicamente orientados, a criação de institutos conservadores supera os progressistas em todos os períodos, exceto na primeira fase de proliferação dos Think Tanks. Esses resultados estão de acordo com a literatura sobre o processo de polarização nos Estados Unidos, que indica como a Progressive Era, do início do século XX, pautada pela confiança na ciência como mecanismo para a reforma da sociedade e princípios reformistas, teve nos Think Tanks importantes meios para buscar realizar esses objetivos (Fisher 1919).
Figura 1 – Percentual de Think Tanks ideológicos por período
A análise das declarações de missão dos institutos fundados nesse primeiro período indica a força das ideias progressistas que circulavam no Regime de Conhecimento: reforma, regulamentação e ênfase em análises científicas como forma de superar o que esses atores consideravam como “excesso de política” (Weiss 1983, 214) são marcantes. Embora o período seguinte demonstre que os institutos conservadores começam a se autodeclarar ideologicamente, ainda há uma preocupação em apresentar suas declarações de missão a partir de uma linguagem científica e técnica.
Percebe-se que a partir da década de 1970 há uma tendência maior de autodeclaração ideológica, em especial entre institutos conservadores. Esse processo se explica em parte porque os conservadores vinham, desde a década de 1950, se articulando para enfrentar o que consideravam como o establishment progressista (Stahl 2016). De fato, é importante lembrar que o movimento Progressista, apesar de várias dificuldades e retrocessos, foi muito bem-sucedido em algumas áreas, em especial na reforma educacional, e em estabelecer a profissionalização das universidades, onde se formou uma cultura progressista (Labaree, Hirsch, e Beatty 2004; Gross 2013; Urban e Dennis 2002).
Especialização das Áreas de Atuação
Ao lado da autodeclaração ideológica, observa-se outro fenômeno: a especialização das áreas de atuação. Embora a maioria dos institutos atuem na área geral de políticas públicas, há diferenças significativas nos temas aos quais os institutos progressistas e conservadores se dedicam a trabalhar. Institutos autodeclarados progressistas (ou cujas declarações de missão são fortemente indicativas da inclinação ideológica do instituto), geralmente se dedicam a temas de Governança e reforma do Estado, meio ambiente e segurança alimentar, e a áreas relativas a direitos civis.
No que se refere aos institutos conservadores, observa-se o foco na área de economia, ao enfatizarem o empreendedorismo, a melhora do ambiente de negócios, redução de impostos e a responsabilidade individual. Também destacamos a ênfase na área de educação e cultura, e na assessoria jurídica. Essa tendência já é indicada em institutos conservadores do primeiro período, mas se torna mais intensa no terceiro período. Conforme indiquei, possivelmente não foram criados muitos institutos progressistas dedicados a educar os jovens a respeito de valores, princípios e projetos, porque as ideias progressistas já estavam, desde o início do século XX, mais arraigadas no sistema educacional, especialmente nas instituições de ensino superior (Langbert 2020; Brennan e Magness 2019; Magness 2020). Outra característica dos institutos de cunho conservador é a relevância dos institutos de legado – observa-se que mais Think Tanks conservadores são dedicados a promover as ideias de figuras conservadoras de destaque, como o Goldwater Institute e Hoover Institute.
Em seguida, destaco uma tendência identificada a partir da análise de conteúdo, e que depois foi reforçada pela análise espacial da distribuição dos Think Tanks no território: o foco que institutos conservadores dão aos problemas locais e regionais em comparação com os Think Tanks progressistas, que tendem a posicionar-se a nível nacional. Percebe-se que há uma tendência dos institutos conservadores a se espalharem no interior do território, movimento este que se reflete no foco desses institutos nos problemas locais/regionais, conforme indicam suas declarações de missão. Por outro lado, institutos progressistas se mantêm nas grandes cidades, em especial nas duas costas. Para toda a amostra, as principais cidades em que os institutos se concentram são Washington D.C., Arlington VA, New York, e São Francisco.
Entre os institutos conservadores da minha amostra, cerca de 56 são voltados a questões locais e regionais. Por outro lado, praticamente não há (com algumas exceções, como a Oregon Center for Public Policy e a San Francisco Housing Association – SPUR) institutos progressistas com foco local da mesma forma como se observa nos institutos conservadores. Essa busca por proximidade com governos e comunidades locais pode ser um reflexo da forma como se estabelece o movimento conservador nos Estados Unidos no decorrer do século XX, em particular a partir da década de 1980, quando grande parte dos institutos conservadores com foco local/regional foram criados.
Cabe sublinhar que os temas abordados por Think Tanks progressistas costumam ser mais variados do que entre institutos conservadores. Enquanto institutos conservadores se concentram em temas relacionados à economia, responsabilidade individual, impostos, religião, e valores familiares, institutos progressistas lidam com questões trabalhistas, ambientais, justiça social, controle de armas, regulamentação, transporte, moradia, justiça criminal, segurança alimentar, direitos das mulheres, entre outros.
Para finalizar, observa-se que no século XXI se mantém a tendência de Think Tanks conservadores voltados para as áreas de economia, educação e cultura, e assessoria jurídica, sendo esses últimos especialmente engajados em litigâncias sobre liberdade de expressão e propriedade. Institutos progressistas seguem com a tradição de enfatizarem temas nacionais, como a qualidade da democracia, equidade, e meio-ambiente, além de mais institutos de legado de cunho progressista, como o Sanders Institute.
No que se refere à política externa, esse não é um tema que seja o foco da maioria dos institutos ideologicamente orientados. Tanto institutos progressistas quanto conservadores tendem a se concentrar em problemas nacionais. No entanto, são evidentes algumas divergências. Institutos progressistas voltados para política externa costumam direcionar-se para temas de meio-ambiente e direitos humanos. Enquanto institutos de política externa conservadores geralmente se dedicam a temas de segurança e defesa, com especial foco em aliados-chave, como Israel.
A primeira fase da pesquisa, aqui exposta, pode nos ajudar a entender a dinâmica de organização do movimento conservador e progressista nos Estados Unidos a partir dos Think Tanks no decorrer do século XX e início do século XXI. É possível perceber como a polarização política é um processo que vem se desenvolvendo e intensificando entre as elites intelectuais desde meados do século XX, e tem sido empreendida uma “guerra de ideias” em especial a partir dos intelectuais conservadores, que viram nos Think Tanks uma forma de contrabalançar o que consideravam (e ainda consideram) como establishment progressista, em especial na educação e cultura. A partir dessa análise, pude ter uma perspectiva mais refinada da constituição do Regimes de Conhecimento americano, em especial do processo de polarização das instituições que o compõem, numa perspectiva ampla.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
REFERÊNCIAS
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Brennan, Jason, e Phillip Magness. 2019. Cracks in the Ivory Tower: The Moral Mess of Higher Education. New York: Oxford University Press.
Campbell, John e Pedersen, Ove. 2014. The National Origins of Policy Ideas: Knowledge Regimes in the United States, France, Germany, and Denmark. Princeton: Princeton University Press.
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Langbert, Mitchell. 2020. “Who Says Academia Isn’t Awash in Liberal Bias?” The James G. Martin Center for Academic Renewal (blog). 28 de outubro de 2020. https://www.jamesgmartin.center/2020/10/who-says-academia-isnt-awash-in-liberal-bias/.
Magness, Phillip W. 2020. “Opinion | Tenured Radicals Are Real”. The Chronicle of Higher Education. 24 de setembro de 2020. https://www.chronicle.com/article/tenured-radicals-are-real.
Mayring, Philipp. 2000. “Qualitative Content Analysis”. Forum Qualitative Sozialforschung / Forum: Qualitative Social Research 1 (2). https://doi.org/10.17169/fqs-1.2.1089.
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[1] Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Mestre em Ciências Sociais pela Unesp (FCLAr), e Bacharel em Relações Internacionais pela Unesp (FCHS). E-mail: laura.pimentelbarbosa@usp.br
[2] A autora agradece à CAPES pelo financiamento da pesquisa, e à Profª Drª Elizabeth Balbachevsky pela orientação. O artigo é baseado em um trabalho apresentado no Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política onde recebeu menção honrosa como o melhor trabalho no Grupo de Trabalho de Relações Internacionais e Política Externa.
[3] A autora gostaria de agradecer imensamente pelo apoio dos pesquisadores: Prof. Dr. Rodrigo Aoyama Nakahara, Douglas Felipe Giaquinto, Ivan Colagrande Castro, e Prof.ª Dr.ª Lúcia Pereira Barroso, todos do Centro de Estatística Aplicada – IME/USP, que prestaram a consultoria de análise quantitativa e espacial.
[4] As principais teorias de Relações Internacionais dão pouca ênfase ao processo de formulação da política externa por considerarem que os constrangimentos do sistema internacional são suficientes para determinar os rumos da política externa. As Teorias Construtivistas, que se desenvolveram a partir da década de 1980, foram importantes para desafiar essa perspectiva ao dar ênfase aos processos ideacionais que direcionam a forma como os países interpretam o seu papel no contexto internacional. Nesse sentido, nossa pesquisa se insere numa tradição construtivista das teorias das Relações Internacionais, associando-as à abordagem ideacional em Ciência Política (cf. Béland e Cox 2010; Béland e Lecours 2008; Khong 1992; Yee 1996; Hopf 2002).
[5] As universidades também têm um papel importante, contudo, o conhecimento produzido pelos institutos de pesquisa é direcionado à formulação, avaliação, e solução em políticas públicas. Intelectuais públicos possuem um modo de atuação diferente dos intelectuais em universidades, estes são mais dedicados a avançar pesquisas de longo prazo, sem necessariamente atuarem diretamente com aconselhamento político e em influenciar a opinião pública.
[6] Como demonstra Gerring (1998), essas duas vertentes ideológicas sofreram importantes mudanças no decorrer dos séculos XIX e XX, e tanto líderes partidários quanto intelectuais, jornalistas, formadores de opinião e outras figuras tiveram importante papel em direcionar essas mudanças (Noel 2014, cap. 2).
[7] Para todos os efeitos, institutos de centro com inclinação progressista ou conservadora são considerados como “centro” em nossa análise geral.
Fonte Imagética: Photo by Daniel Lloyd Blunk-Fernández on Unsplash. Disponível em <https://unsplash.com/photos/vrSKrUEZsDY>. Acesso 16 set 2022.