Felipe Freller[1]
O Boletim Lua Nova divulga trecho do livro “Quando é Preciso Decidir: Benjamin Constant e o Problema do Arbítrio” (Editora Appris), de Felipe Freller. Agradecemos o autor pelo envio do trecho.
Prefácio, por Pierre Manent[2]
Em um momento em que os regimes democráticos, na Europa e nas duas Américas, duvidam de si mesmos e experimentam sérias desordens, é importante circunscrever com nitidez os recursos e as dificuldades do governo representativo, o qual fornece o quadro operacional de nossas democracias. O trabalho erudito, claro e imparcial de Felipe Freller é uma bela contribuição a esse esforço indispensável. Ele se dedica a restituir o pensamento de Benjamin Constant, um dos autores políticos mais interessantes de uma época e de um país que contribuíram decisivamente para dar forma à política e à sociedade modernas. Constant foi, ao mesmo tempo, um político cuja carreira se prolonga do Diretório à Monarquia de Julho, um publicista particularmente brilhante, um teórico maior do governo representativo: enfim, uma figura que resume, em sua pessoa e em sua obra, a força e as fraquezas, em suma, os tormentos do liberalismo político.
Constant rejeita sem nostalgia o princípio antigo da hereditariedade e adere sem reservas ao princípio novo da igualdade. Ora, a igualdade se traduz por uma norma particularmente restritiva, a saber, uma lei geral que exclui todo arbítrio e recusa qualquer exceção. Ao passo que Constant visava a supressão completa do arbítrio, ele precisou, sob a prova das circunstâncias, ceder um lugar cada vez maior, cada vez mais sistemático mesmo, àquilo que ele desejava excluir, a saber, um poder, uma instância, um dispositivo, se não propriamente arbitrário, ao menos “decisionista”. Ao imprimir uma nova vida ao drama de Constant, Felipe Freller restitui o drama da lei e da igualdade modernas.
Felipe Freller analisa de maneira extremamente fina o período do Diretório, o qual presencia a entrada de Constant na arena política – esse período tão complexo e tão interessante, mas tão pouco presente em nossa memória (mesmo na França), por estar comprimido, por assim dizer, entre Robespierre e Bonaparte. Após o fim do Terror, que havia levado o arbítrio ao seu apogeu, Constant preconiza uma legalidade sem arbítrio nem exceção, mas, ao mesmo tempo em que estabelece o arbítrio como o inimigo por excelência da “política dos princípios”, ele o percebe como um recurso possível, eventualmente necessário, para preservar um governo republicano perante uma maioria eleitoral cada vez mais inclinada à “reação”. De fato, Constant aprovou o golpe de Estado de Frutidor que, com a ajuda do exército, reprimiu brutalmente o partido “monarquista” vencedor das eleições.
Como mostra Felipe Freller, Constant busca uma via intermediária entre a abstração dos princípios revolucionários e a crítica conservadora dessa abstração – crítica à qual Burke conferiu tanta força –, via intermediária que ele encontra em um governo representativo aperfeiçoado. Esse aperfeiçoamento assume a forma de um poder “neutro” ou “preservador”, o qual seria habilitado a dissolver o Legislativo ou a destituir o Executivo sem processo nem julgamento, de maneira inteiramente “discricionária”, se um desses dois poderes colocasse em perigo os direitos dos cidadãos. Isso evitaria a necessidade de um golpe de Estado como o de Frutidor. Seria esse poder discricionário que preveniria qualquer risco de arbítrio.
Felipe Freller descreve admiravelmente com que magnitude e sutilidade de imaginação política Constant multiplicará, na sequência de sua carreira, as sugestões institucionais para combater o arbítrio pelo arbítrio, ou seja, o arbítrio agressor dos direitos pelo arbítrio defensor dos direitos. Ele propõe, por exemplo, combater a tirania das leis que violam a independência individual pelo recurso ao sentimento moral dos jurados, em um júri que poderia, então, prevalecer contra essas leis. Constant sugere, assim, figuras positivas do arbítrio, as quais nascem do movimento espontâneo da consciência íntima dos cidadãos quando estes se aperfeiçoam pelo exercício de suas faculdades em um regime de liberdade. Cada cidadão se torna, por assim dizer, juiz constitucional!
Felipe Freller destaca, assim, a prodigiosa inventividade que presidiu a concepção e a implementação do regime representativo, o qual é a obra-prima da política moderna. Nós podemos apreciar a complexidade das regulagens que ele exige para tornar viável, ou seja, governável, um regime livre. Com efeito, o princípio gerador da democracia moderna, a saber, a lei geral guardiã da igualdade de direitos, apresenta o inconveniente de dificilmente ceder lugar para a ação e a escolha políticas propriamente ditas: estas não são a simples aplicação de uma lei geral, sem pertencer, todavia, ao domínio do simples arbítrio. Ao prestar atenção à experiência e à reflexão de Benjamin Constant, tão bem restituídas e iluminadas pelo belo livro de Felipe Freller, colocamo-nos em condições de enfrentar de modo mais inteligente os problemas urgentes que, tanto no Brasil como na França, assolam nossas democracias representativas.
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Introdução
“Defendi, durante quarenta anos, o mesmo princípio: liberdade em tudo, em religião, em filosofia, em literatura, em indústria, em política”[3] (CONSTANT, 1997, p. 623). Com essa conhecida fórmula enunciada no fim de sua vida, no Prefácio dos Mélanges de littérature et de politique, de 1829, Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) busca ressaltar a coerência de uma trajetória intelectual e política que havia chocado muitos de seus contemporâneos por uma série de mudanças bruscas de posição, as quais renderam ao autor o apelido de “l’inconstant Benjamin”. Essas reviravoltas remontam ao início de sua carreira política na França, em 1795, quando, recém-chegado a Paris, ele combate a intenção da Convenção termidoriana de perpetuar seus membros no poder por meio dos “decretos dos dois terços”, passando a colaborar para a efetivação desses decretos poucos meses depois. Em 1797, o jovem orador apoia o golpe do Diretório contra os monarquistas que haviam sido eleitos para os Conselhos (golpe de Estado do 18 Frutidor), arrependendo-se desse apoio em vários de seus escritos posteriores, nos quais os golpes de Estado são condenados de modo incondicional. Durante o período do Diretório (1795-1799) e do Consulado (1799-1804), Constant defende o regime republicano e se opõe vigorosamente à possibilidade de uma restauração da monarquia, acusada de trazer inevitavelmente consigo a tirania e os furores da contrarrevolução. Em 1814, ele apoia a restauração da monarquia Bourbon, passando a defender a monarquia constitucional como superior à República. Em 1815, o autor apoia Napoleão Bonaparte e colabora para a redação do Ato Adicional às Constituições do Império, a Constituição do Governo dos Cem Dias, após haver chamado Bonaparte de tirano e usurpador e haver conclamado o povo francês a resistir a seu retorno.
Constant sempre alegou ter se mantido fiel aos mesmos princípios liberais em todas essas mudanças de posição, buscando apenas acomodar os princípios às circunstâncias políticas cambiantes. Essa alegação tem sido confirmada pelos mais importantes intérpretes do autor nas últimas décadas, como Marcel Gauchet, Stephen Holmes, Kurt Kloocke, Biancamaria Fontana, Tzvetan Todorov, Lucien Jaume e Helena Rosenblatt.[4] A publicação, nas duas últimas décadas do século XX, dos dois principais tratados políticos de Constant, os Fragments d’un ouvrage abandonné sur la possibilité d’une constitution républicaine dans un grand pays (publicado em 1991) e os Principes de politique de 1806 (publicado em 1980), que o autor não havia publicado em vida, mas dos quais havia extraído o material para uma série de publicações mais circunstanciais, contribuiu para assentar a unidade, a coerência e a constância de seu pensamento. O leitor atual pode verificar que muito do que Constant publicou em seus últimos quinze anos de vida já se encontrava formulado de modo sistemático nos anos 1800-1810, por vezes antes.
Entre os princípios defendidos por Constant ao longo de toda a sua vida, merece destaque a condenação implacável do arbítrio (l’arbitraire) em política. Já presente em sua primeira brochura política, De la force du gouvernement actuel de la France et de la nécessité de s’y rallier, de 1796, a condenação do arbítrio se prolonga em praticamente todas as suas obras políticas, servindo para criticar diversos alvos, da monarquia do Antigo Regime à política do partido ultrarrealista sob a Restauração, passando pelo Terror jacobino e pelo Império napoleônico.[5] Ao longo de sua vasta obra, o autor sistematiza argumentos e emprega todo o seu talento retórico para condenar qualquer governo que se coloque acima das leis e dos princípios de moderação, estendendo essa condenação a medidas isoladas que permitissem mesmo a governos não absolutos escapar por um momento do círculo de ação traçado pela Constituição, sob a alegação, por exemplo, de uma situação de urgência ou de perigo para o corpo político.
Alguns comentadores ressaltam a originalidade de Constant – e também de Madame de Staël, sua companheira que o influenciou muito nessa direção – nessa condenação tão categórica e absoluta do arbítrio. Como nota Alain Laquièze (2003, p. 40-41), a questão da existência de situações de urgência em que os governantes podem se liberar das regras normais de funcionamento do Estado, agindo de modo “arbitrário”, é clássica desde pelo menos o século XII, a resposta da filosofia política a essa questão sendo desde essa época, em geral, unanimemente positiva. Segundo Laquièze (2003, p. 43), a posição do grupo de Coppet[6] vai na contramão de todas as concepções sobre o estado de exceção formuladas desde o século XII, apresentando a novidade de sustentar que o quadro legal não pode ser contornado em hipótese alguma, nem mesmo diante do apelo clássico à “salvação pública” (salut public, em francês, ou salus populi, em latim).[7] Constant seria, assim, o “pai” da concepção forte de império da lei subjacente ao Estado liberal moderno, em ruptura com a tradição anterior da razão de Estado.
Se isso é um título de glória para os liberais e para os inimigos do arbítrio, é também uma matéria de reprovação para teóricos do “político” como Carl Schmitt, quem vê na obra de Constant a negação mesma do político, entendido no âmbito da decisão não derivada de normas jurídicas ou morais prévias. Em O conceito do político, de 1932, o tratado De l’esprit de conquête et de l’usurpation dans leurs rapports avec la civilisation européenne, publicado por Constant em 1814, aparece como o manifesto de uma sociedade na qual a liberdade, o progresso e a razão, em aliança com o comércio, a indústria e a tecnologia, poderiam substituir o Estado, a guerra e a política (SCHMITT, 2007, p. 74-75). A consequência dessa vitória da sociedade comercial sobre a guerreira, louvada por Constant, seria a diluição do político pelo império da lei, o qual coroaria a racionalização da sociedade moderna celebrada pela ideologia liberal, de modo a escamotear a dimensão da soberania e da decisão, constitutiva do político.
O objetivo deste livro é nuançar essa condenação absoluta do arbítrio por parte de Constant. Não se trata de negar que o autor criticava firmemente o arbítrio – uma hipótese que não resistiria à leitura, mesmo superficial, da obra em questão. O que se trata é de encarar o arbítrio como um verdadeiro problema político que Constant procura enfrentar ao longo de sua vida, não como um simples mal rejeitado por ele em um plano normativo. Essa mudança de perspectiva borra a posição do autor como alguém que teria expulsado definitivamente a decisão arbitrária do campo da política legítima, seja essa posição utilizada para louvar o “pai” da concepção forte de império da lei subjacente ao Estado liberal moderno, ou para criticar aquele que teria iniciado o movimento liberal de diluição da esfera do político. Na leitura que proponho, Constant se destaca menos por ter condenado implacavelmente o arbítrio, o que era uma espécie de lugar comum no contexto pós-termidoriano, do que por ter percebido o arbítrio como um problema político que continuava premente mesmo após a derrocada do Terror. E, no enfrentamento desse problema político premente, o autor não se contenta com a simples rejeição do arbítrio. Pelo contrário, ele reconhece a necessidade de o incorporar à vida política de maneira controlada, de modo a evitar sua deriva tirânica. Assim, sua reflexão prolonga esforços clássicos de conceder um espaço controlado ao inevitável arbítrio na vida política, como a ditadura romana louvada por Nicolau Maquiavel e Jean-Jacques Rousseau e a prerrogativa régia teorizada por John Locke. Sua ruptura com a tradição não consiste em expurgar definitivamente o arbítrio da política, mas em incorporá-lo sob uma chave diferente. Nessa nova chave, o arbítrio não é associado ao estado de exceção nem acessível aos governantes, mas se torna uma parte integrante da vida política regular, ora se encarnando em um poder constitucional específico (o poder neutro, cuja decisão discricionária é desvinculada do governo, da legislação e da aplicação judicial das leis), ora se difundindo no interior do edifício constitucional e se colocando ao alcance de cada indivíduo.
Entender o arbítrio como um problema político enfrentado por Constant implica conceder primazia metodológica à interação dinâmica do autor com a realidade política sobre a qual ele procura intervir, considerando essa interação como a instância que produz os problemas a serem elaborados no plano teórico. Isso envolve, por sua vez, reduzir a ênfase dos últimos grandes intérpretes de Constant na unidade, na coerência e na constância de seu pensamento, atribuindo maior importância justamente às mudanças de posição referidas no início desta Introdução – relatadas, em geral, de modo anedótico, como acidentes da vida pessoal externos à elaboração teórica, ou como simples aplicações dos princípios abstratos, cujo caráter confuso resultaria do ambiente político caótico vivido pelo autor, sem que esse caos se misturasse à coerência e à sistematicidade da construção filosófica. Se, ao contrário, considerarmos as ideias do autor como “ideias-forças”, no sentido empregado por Gauchet, ou seja, no sentido em que “as representações não se separam da ação no seio da vida coletiva” (GAUCHET, 2018, p. 16), os percalços da prática política não podem ser considerados como externos à elaboração teórica ou como simples tentativas de aplicação dos princípios, mas devem ser abordados como provas que obrigam a teoria a se reformular e adquirir complexidade.
Os livros Le moment Guizot, de Pierre Rosanvallon (1985), e Robespierre: L’homme qui nous divise le plus, de Marcel Gauchet (2018), constituem, nesse sentido, as principais inspirações metodológicas deste livro. Tanto Rosanvallon como Gauchet insistem, no estudo dos personagens e autores políticos examinados (François Guizot e Maximilien de Robespierre, respectivamente), em não separar suas elaborações teóricas de sua prática política, considerando a obra política em questão como “o sistema histórico de sua interação. Uma obra é, ao mesmo tempo, projeto e prova” (ROSANVALLON, 1985, p. 266-267, grifos do autor). Contestando a abordagem que separava o grande historiador e teórico político da Restauração, cujo interesse seria intelectual, do ministro inflexível, arrogante e conservador da Monarquia de Julho, cujo interesse seria histórico, Rosanvallon propõe pensar a atuação de Guizot durante a Monarquia de Julho como um teste de seu sistema conceitual formulado durante a Restauração, analisando a deriva intelectual e política do doutrinário com base nessa prova fornecida pela experiência, a qual gera tensões insolúveis em seu pensamento – notadamente sua “derrapagem moralizadora” (ROSANVALLON, 1985, p. 303) e sua “ruptura com o neutralismo moral do liberalismo” (ROSANVALLON, 1985, p. 304). De modo análogo, Gauchet considera a entrada de Robespierre no Comitê de Salvação Pública como um evento que põe à prova sua recusa inicial do Poder Executivo, levando-o a reavaliar, perante o teste das circunstâncias, a necessidade de um governo forte, negada até então. Nesse caso, “a prática funciona, em poucas palavras, como o recalcado da teoria” (GAUCHET, 2018, p. 136).
De modo similar, as mudanças de posição de Constant, referidas no início desta Introdução, não serão consideradas por mim como simples percalços do autor externos a sua elaboração teórica, mas como provas da experiência que lançam novos problemas a sua teoria e a obrigam a se modificar e adquirir complexidade. Ao contrário do estudo de Rosanvallon sobre Guizot e do de Gauchet sobre Robespierre, todavia, essas provas da experiência não resultam, no caso de Constant, em derrapagens intelectuais ou em uma prática que opera como um recalcado da teoria, mas antes em um refinamento do próprio pensamento, o qual se torna mais complexo, mas também mais permeado de tensões e de pontos de um equilíbrio relativamente precário. O apontamento dessas tensões e desses pontos de equilíbrio relativamente precário não tem o objetivo de diminuir a obra do autor, mas o de realçar a posição de Constant como um autor que refletiu profundamente sobre as ambiguidades da realidade política sobre a qual procurou intervir e incorporou essas ambiguidades a sua própria teoria, movido pelas provas enfrentadas na experiência prática.
Assim, as mudanças de posição referidas no início desta Introdução servem, neste livro, como importantes vias de acesso à construção do problema político do arbítrio na obra de Constant. Sua mudança de posição sobre os decretos dos dois terços será interpretada, no Capítulo 1, como o evento que faz o problema do arbítrio emergir em seu pensamento, em conexão com a questão das medidas extraordinárias a serem empregadas para salvar a República de si mesma, se necessário. No Capítulo 2, é o golpe do 18 Frutidor que é interpretado como a prova da experiência que leva o autor a buscar incorporar o arbítrio ao sistema político de modo controlado, após passar o período do Primeiro Diretório (1795-1797) respondendo negativamente à questão, já formulada desde os decretos dos dois terços, da legitimidade de se empregar o arbítrio para superar os perigos que a República encontrava no âmbito de uma opinião pública não necessariamente republicana. A abolição oficial do regime republicano, em 1804, a qual é acompanhada de um afastamento de Constant em relação a seu republicanismo inicial, também será analisada como a fonte de uma reconfiguração do problema do arbítrio na obra do autor. Em um primeiro momento, o afastamento do autor em relação às discussões constitucionais, orientando seu pensamento para uma filosofia política liberal que privilegia os princípios da liberdade individual em relação às formas de governo, desloca o problema do arbítrio, de meio necessário para salvar a República a expediente para contornar a insuficiência das leis e a possibilidade de uma tirania das próprias formas legais. É na chave desse deslocamento teórico que serão lidos os Principes de politique de 1806, no Capítulo 3. Por fim, a adesão de Constant à monarquia constitucional, a partir de 1814, será analisada, no Capítulo 4, como fonte de novos desdobramentos do problema do arbítrio. Por um lado, o autor precisará incorporar parte do arbítrio associado à tradição monárquica. Por outro lado, a separação entre a inviolabilidade régia e a responsabilidade dos ministros o levará a desenvolver uma teoria da responsabilidade ministerial como julgamento discricionário, a qual será considerada como um paradigma da disseminação do arbítrio no interior do edifício constitucional, dotando esse arbítrio da forma do julgamento político.[8]
Em todas essas circunstâncias históricas (estabelecimento da República diretorial em 1795, golpe de Estado republicano em 1797, fim da República em 1804, advento da monarquia constitucional em 1814), a reflexão de Constant não será analisada isoladamente, mas tomando-se o cuidado de reconstituí-la como um ato de fala polêmico, destinado ao debate com posições políticas formuladas na mesma época, muitas das quais foram esquecidas na contemporaneidade. Trata-se da principal contribuição que este livro toma do contextualismo linguístico de Quentin Skinner, para quem é o estudo do contexto linguístico mais geral sobre o qual intervém um autor político que pode esclarecer as intenções desse autor ao enunciar seu ato de fala, iluminando assim o que os autores estavam fazendo ao escrever seus textos tornados clássicos (SKINNER, 1978, p. xiii; SKINNER, 2002a, p. 87).
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
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[1] Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e em Estudos Políticos (opção Filosofia Política) pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. Mestre em Ciência Política pela USP e bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atualmente, é pesquisador de pós-doutorado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pesquisador associado do Centre d’Études Sociologiques et Politiques Raymond Aron (CESPRA), vinculado à EHESS, e membro associado do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec). É autor de Quando é preciso decidir: Benjamin Constant e o problema do arbítrio (Appris, 2021), fruto da tese de doutorado contemplada com o Prêmio CAPES de Tese 2021 da área de Ciência Política e Relações Internacionais, o Grande Prêmio CAPES de Tese Oscar Niemeyer 2021 do Colégio de Humanidades e com menção honrosa no Prêmio Tese Destaque USP 10ª edição (Grande Área: Ciências Humanas).
[2] Tradução de Felipe Freller. Pierre Manent é professor aposentado da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e membro honorário do Centre d’Études Sociologiques et Politiques Raymond Aron (CESPRA).
[3] Todas as citações deste livro cuja referência bibliográfica se encontra em outra língua que não o português foram traduzidas por mim.
[4] Afirmações sobre a unidade, a coerência e a constância do pensamento de Constant podem ser encontradas em: GAUCHET, 1997, p. 17; GAUCHET, 2005, p. 278; HOLMES, 1984, p. 4; KLOOCKE, 1984, p. 5-6; FONTANA, 1991, p. xvii; TODOROV, 1997, p. 23-24.
[5] Exemplos notáveis da crítica de Constant ao arbítrio podem ser encontrados no Capítulo 8 de De la force du gouvernement (CONSTANT, 1988, p. 83-88), no Capítulo 9 de Des réactions politiques (CONSTANT, 1964, p. 72-82), no ensaio Des effets de la Terreur (CONSTANT, 1964, p. 95-112), em seus discursos no Tribunato (CONSTANT, 2005a, p. 78-79; CONSTANT, 2005a, p. 215-244), nos Livros V e VI dos Principes de politique de 1806 (CONSTANT, 1980, p. 93-123), nos Capítulos 10 a 17 da Segunda Parte de De l’esprit de conquête et de l’usurpation (CONSTANT, 1997, p. 225-263), no Capítulo 14 de De la responsabilité des ministres (CONSTANT, 1982, p. 431-442) e no Capítulo 18 dos Principes de politique de 1815 (CONSTANT, 1997, p. 483-491). Vale lembrar que, em seu texto hoje mais conhecido, “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”, de 1819, o primeiro aspecto da liberdade dos modernos a ser destacado pelo autor é “para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser preso, nem detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos” (CONSTANT, 1985, p. 1, grifo meu).
[6] Referência ao Castelo de Coppet, na Suíça, residência de Jacques Necker e Madame de Staël, servindo como ponto de reunião para um grupo informal de pensadores que envolvia Necker, Staël, Constant e Jean de Sismondi, entre outros.
[7] É nesse sentido que Christian Lynch caracteriza Constant como um “anti-Maquiavel”: “embora reconhecesse a existência de situações de perigo para a sociedade política, Constant negava a conveniência de combatê-lo por medidas excepcionais, alegando que o Estado devia ainda aí observar todas as formalidades prescritas. Tratava-se de uma verdadeira reviravolta na tradição política continental” (LYNCH, 2007, p. 73-74).
[8] A adesão de Constant a Napoleão durante os Cem Dias será a única mudança de posição elencada no início desta Introdução que não será considerada neste livro como fonte de um novo desdobramento no problema do arbítrio. Isso porque é difícil identificar uma verdadeira guinada teórica que teria acompanhado a adesão do autor a Bonaparte. No Capítulo 4, será mencionada a organização da responsabilidade dos ministros no Ato Adicional de 22 de abril de 1815, cuja redação é atribuída a Constant, mas, neste caso específico, parece mais plausível interpretar a redação dessa Constituição como a aplicação de uma teoria política já formulada nos meses anteriores, a qual não é modificada pelo retorno de Napoleão ao poder.
Fonte Imagética: Capa do livro: “Quando é Preciso Decidir: Benjamin Constant e o Problema do Arbítrio” (Editora Appris, 2021). Disponível em: https://www.editoraappris.com.br/produto/5863-quando-preciso-decidir-benjamin-constant-e-o-problema-do-arbtrio#:~:text=Felipe%20Freller.,do%20arb%C3%ADtrio%20e%20da%20decis%C3%A3o. Acesso em 15 maio 2022.