Ulysses Ferraz[1]
O filósofo político John Rawls (2016, p. 6) faz uma distinção importante entre o conceito de justiça e as diversas concepções de justiça, de modo que as últimas seriam interpretações do primeiro. Para Rawls, mesmo que as pessoas defendam concepções distintas de justiça, em geral elas concordam que
as instituições são justas quando não se fazem distinções arbitrárias entre pessoas na atribuição dos direitos e dos deveres fundamentais, e quando as leis definem um equilíbrio apropriado entre as reinvindicações das vantagens da vida social que sejam conflitantes entre si (Ibidem).
A discordância surge quando as ideias de distinção arbitrária e de equilíbrio apropriado contidas no conceito de justiça são interpretadas à luz dos princípios de justiça que aceitamos (Ibidem). A justiça como equidade, ao interpretar esse conceito de justiça com base nos princípios de justiça dela derivados, neutraliza a possibilidade de utilização “[d]os acidentes da dotação natural e das contingências de circunstâncias sociais como fichas [trunfos] na disputa por vantagens econômicas e políticas […]” (Ibidem). Para Rawls, os princípios de justiça “expressam a consequência de deixarmos de lado os aspectos do mundo que parecem arbitrários de um ponto de vista moral” (Ibidem).
De acordo com Ian Shapiro (2006, p. 154), a principal inovação teórica de Rawls “diz respeito ao modo mediante o qual ele lida com as diferenças entre as pessoas”. Shapiro explica que houve durante grande parte do século XX uma discussão acalorada sobre as origens das desigualdades entre as pessoas no sentido de saber se elas eram decorrentes da hereditariedade ou da influência do meio (Ibidem).
Em geral, os igualitaristas tendem a afirmar que as principais causas das diferenças de renda, capacidade e desempenho são decorrentes de fatores socioambientais, enquanto os adeptos da desigualdade sustentam que tais diferenças decorrem das características inatas do indivíduo (Ibidem). Para Rawls, contudo, esse tipo de discussão não é relevante do ponto de vista da justiça, pois quer resultem da hereditariedade ou do meio, as diferenças entre as pessoas são moralmente arbitrárias, pois são todas decorrentes da loteria da vida, isto é, da sorte de um fator genético ou de circunstâncias sociais nas quais nascemos, ambas devido ao acaso. Segundo Rawls,
[…] a distribuição inicial de ativos para cada período de tempo é fortemente influenciada pelas contingências naturais e sociais. A distribuição existente de renda e riqueza, por exemplo, é o efeito cumulativo de distribuições de ativos naturais – ou seja, talentos e habilidades naturais – conforme eles foram desenvolvidos ou não, e a sua utilização foi favorecida ou desfavorecida ao longo do tempo por circunstâncias sociais e contingências fortuitas como a eventualidade de acidentes ou da boa sorte. Intuitivamente, a mais óbvia injustiça do sistema de liberdade natural é que ele permite que a distribuição das porções seja influenciada por esses fatores tão arbitrários do ponto de vista ético (RAWLS, A Theory of Justice, 2ª ed. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1999, p. 63 apud SHAPIRO, 2006, p. 156).
Uma das críticas mais influentes ao argumento da arbitrariedade moral e da concepção rawlsiana de justiça é a de Robert Nozick, exposta em seu livro Anarquia, estado e utopia [1974][2]. Em oposição à teoria de Rawls, Nozick propõe uma concepção de justiça distributiva que ele chama de “teoria da titularidade” [entitlement theory].
Conforme explica Nozick, uma distribuição justa na sua concepção de justiça é formada por três tópicos (2015, p. 192). O primeiro tópico da teoria trata da apropriação das coisas não possuídas, denominada aquisição original de bens, cujo fundamento é o “princípio de justiça na aquisição” (NOZICK, 2015, pp. 192-193).
O segundo tópico é sobre a transferência de bens de uma pessoa para outra, ou seja, “por quais processos uma pessoa pode adquirir um bem de outra pessoa que o possui?” (Ibidem, p. 193). Essa questão, de acordo com Nozick, é regulada pelo “princípio de justiça na transferência”. Assim, ninguém tem direito a um bem, exceto pela aplicação reiterada dos princípios citados anteriormente, quais sejam, os princípios de justiça na “aquisição” e na “transferência”.
Quando as aquisições ou trocas passadas violam os princípios da aquisição e da transferência, há que se proceder a uma compensação. Trata-se do terceiro tópico, que lida com o problema da retificação da injustiça na distribuição das posses, expresso pelo “princípio de retificação”. Segundo Nozick (Ibidem, p. 196), esse princípio “utiliza informações históricas sobre situações anteriores e injustiças nelas cometidas” para calcular aproximadamente qual seria a distribuição justa caso os princípios de aquisição e transferência não houvessem sido violados.
Assim, “o silogismo da justiça de Nozick consiste em que, se as condições iniciais são justas, e as transferências subsequentes são voluntárias, o resultado tem de ser aceito como justo” (SHAPIRO, 2006, p. 162). A consequência institucional da teoria de Nozick é a defesa intransigente de um Estado mínimo, cuja única justificação de existir seria a de “garantir segurança aos cidadãos, protegendo as liberdades negativas e o direito de propriedade, e favorecendo assim a livre troca entre eles” (VELASCO, 2009, p. 89).
Por se preocupar com os aspectos históricos da distribuição, Nozick critica a insensibilidade a esses aspectos e o critério puramente procedimental da teoria de Rawls por ela “focar somente o resultado final e não o percurso histórico que a produziu” (FERES JÚNIOR; POGREBINSCHI, 2010, p. 69). Sobre o argumento da arbitrariedade moral de Rawls, Nozick sustenta que essa “linha de raciocínio pode ser capaz de impedir que a questão da escolha e da ação autônoma (e de seus resultados) das pessoas seja levada em conta simplesmente ao se atribuir tudo o que existe de admirável em alguém a certos tipos de fatores ‘externos’” (2011, p. 277). De acordo com Nozick,
[…] menosprezar a autonomia da pessoa e sua responsabilidade[3] primordial pelas ações que pratica é uma atitude arriscada para uma teoria que, por outro lado, deseja fortalecer a dignidade e a autoestima de indivíduos autônomos, principalmente para uma teoria que se baseia tanto (incluindo uma teoria do bem) nas escolhas que as pessoas fazem. É duvidoso que a descrição pouco nobre do ser humano que a teoria de Rawls pressupõe – seja compatível com a visão de dignidade humana que ela pretende engendrar e personificar (Ibidem).
Assim, “segundo Nozick, Rawls desconsidera a responsabilidade que as pessoas devem ter por suas escolhas autônomas e pelas consequências de suas ações, atribuindo tudo ao acidente natural, sejam as habilidades inatas ou a posição social ao nascer” (FERES JÚNIOR; POGREBINSCHI, 2010, p. 69). Essa crítica sugere uma tensão na teoria de Rawls pois ela destruiria a dignidade humana que, em tese, deveria promover (Ibidem).
Ao responder as críticas de Nozick, Rawls sustenta que o libertarianismo não atribui nenhum papel especial à estrutura básica da sociedade[4] que é o objeto da concepção rawlsiana de justiça (2020, p. 311). De acordo com Rawls,
Embora a perspectiva libertariana faça um uso importante da noção de acordo, não é de modo algum uma teoria do contrato social, pois esta teoria considera o pacto original como o acordo que estabelece um sistema de direito público, o qual define e regula a autoridade política e se aplica a todos na qualidade de cidadãos. Tanto a autoridade política como a cidadania devem ser compreendidas por meio da própria concepção de contrato social e, por isso, é natural que não reserve nenhum lugar para uma teoria de justiça para a estrutura básica (Ibidem, p. 314, grifo do autor).
A resposta de Rawls às objeções de Nozick concentra-se, portanto, em mostrar “por que a estrutura básica tem papel especial e por que é razoável buscar princípios especiais para regulá-la” (RAWLS, 2020, p. 311). Para Rawls, o papel das instituições que fazem parte da estrutura básica é assegurar condições de fundo equitativas sob as quais as ações dos indivíduos e associações ocorrem (RAWLS, 2005, p. 266). A menos que essa estrutura seja devidamente regulada e ajustada, um processo social inicialmente justo em algum momento deixará de sê-lo, por mais livres e equitativas que as transações particulares possam parecer quando analisadas em si mesmas. Para Rawls, ainda que condições favoráveis para eficiência competitiva se verifiquem, e que ninguém individualmente aja de forma injusta, uma distribuição decorrente puramente das transações voluntárias de mercado em geral costuma ser injusta, a menos que a distribuição prévia de renda e riqueza e a estrutura do sistema de mercados sejam justas (RAWLS, 2005, p. 266). O que Nozick não leva em conta na sua teoria de justiça da titularidade e, consequentemente, em sua crítica a Rawls, é o fato de a estrutura básica da sociedade afetar as perspectivas dos indivíduos a ela submetidos de forma profunda e duradoura (Ibidem, p. 269).
Uma teoria da justiça, segundo Rawls, deve regular “as desigualdades de perspectivas de vida entre cidadãos que resultam de posições iniciais, vantagens naturais e contingências históricas” (2020, p. 321). Os efeitos da desigualdade, mesmo nos casos em que ela não seja muito acentuada, são relevantes o suficiente para trazer, com o tempo, consequências importantes para a vida das pessoas, e cujos efeitos são cumulativos (Idem, 2005, p. 269).
Por essa razão, Rawls argumenta que as desigualdades originadas da estrutura básica são as mais fundamentais. Isso explica por que Rawls elegeu a estrutura básica da sociedade como o objeto da sua teoria da justiça. De acordo com Rawls, as desigualdades dela originadas, que são as relativas às posições iniciais dos membros de uma dada sociedade (e, portanto, arbitrárias de um ponto de vista moral), devem ser reguladas por princípios de justiça apropriados e os efeitos dessas desigualdades devem ser neutralizados por instituições compatíveis com esses princípios, de modo que seja “possível resolver com muito mais facilidade o problema de como regular outras desigualdades” (RAWLS, 2020, p. 321).
Na concepção de Rawls, todos os cidadãos são autônomos para perseguir suas concepções razoáveis de bem e possuem uma responsabilidade social de cooperar para a construção de uma sociedade justa em que cada um de seus membros seja tratado substantivamente como livre e igual. Isso produz uma circularidade virtuosa em que a reciprocidade entre cidadãos livres e iguais assegura a autonomia individual que, por sua vez, reforça a cooperação social.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências:
FERES JÚNIOR, João. POGREBINSCHI, Thamy. Teoria política contemporânea: uma introdução. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
RAWLS, John.. Political liberalism. Nova Iorque: Columbia University Press, 2005.
______. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2020.
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
VELASCO, Marina. O que é justiça? O justo e o injusto na pesquisa filosófica. Um exemplo: as cotas raciais universitárias. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2009.
[1] Mestre em Lógica e Metafísica (PPGLM-UFRJ) e doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ). ferraz.ulysses@gmail.com.
[2] Para uma crítica robusta ao libertarianismo de Nozick, ver VITA, A. de. A justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, pp. 34-75.
[3] Uma das críticas frequentes à concepção de arbitrariedade moral de Rawls é que ela enfraquece a responsabilização dos indivíduos pelos seus resultados positivos ou negativos. Para uma tentativa de compatibilização entre a arbitrariedade moral e a responsabilização individual ver DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, pp. 149-186.
[4] De acordo com Rawls (2020, p. 305), “a estrutura básica é entendida como a maneira pela qual as principais instituições sociais se articulam em um sistema único, distribuem direitos e deveres fundamentais e moldam a divisão dos benefícios obtidos mediante a cooperação social”.
Referências Imagéticas: Robert Nozick challenged professional thinkers to think harder. (Gazette file photo). The Harvard Gazette. Disponível em <https://news.harvard.edu/gazette/story/2002/01/philosopher-robert-nozick-dies-at-63/>. Acesso em 13 abr 2022.