Marina Slhessarenko Fraife Barreto[1]
Acadêmicas(os) que estudam as “crises da democracia” hoje narram o uso de ferramentas legais por regimes autoritários como suposto traço inédito dos autoritarismos do século 21. Pressupor o atropelo completo do direito pelos autoritarismos do século 20, porém, é enganoso. No recém-publicado artigo Funções do direito em regimes não democráticos do século XX no Dossiê Teoria Política e Democracia da Revista Leviathan (USP), tento demonstrar o erro nesse pressuposto.
A ideia das crises da democracia ganhou espaço nas esferas públicas recentemente. Na última década, surgiram centros de pesquisa sobre qualidade democrática, índices de democracia ranqueando scores de países periodicamente, congressos e eventos específicos sobre a pauta, além de bibliotecas de artigos científicos e livros. Não é que a pauta democrática já não interessasse aos campos de teoria democrática, política comparada, sociologia política e áreas afins. Por outro lado, essas áreas passaram a soar o alarme da emergência, alertando seus pares e a imprensa de que o mundo estaria vivendo um novo momento.
Se nos anos 1990 a ideia hegemônica com a queda do bloco soviético era a de um “fim da história”, a partir do qual a democracia liberal como ideologia política dominante teria sedimentado seu valor, o cenário hoje já parece ser outro. Erosão ou regressão democrática, legalismo autocrático, constitucionalismo abusivo e outros tantos conceitos similares são ventilados nos círculos acadêmicos, políticos e jornalísticos, trazendo invariavelmente a sensação de que as democracias não caminham bem.
Negar que haja mudanças no funcionamento das democracias atuais é bastante desafiador. Embora alguns autores, em contrapartida, neguem a existência de crises sem precedentes, apontem um sensacionalismo midiático em torno da pauta ou indiquem que os termos do debate das crises estão viciados, não se pode fingir que as democracias simplesmente “vão bem, obrigada”. De fato, a maior parte da literatura aponta para desenvolvimentos regressivos em torno das democracias atuais e, além disso, cidadãs(os) e ativistas também ressoam a ideia geral de seu mau funcionamento, seja protestando em prol de demandas específicas, praticando atos de desobediência civil ou se mobilizando de outras formas.
O rol dos desafios atualmente enfrentados, no entanto, muda a depender do que se considera relevante para a construção de teorias e a avaliação do desempenho dos regimes políticos. Conjunturas econômicas desfavoráveis, estruturas partidárias ossificadas, polarização política entre cidadãs(os) e enxugamento do Estado são alguns dos fatores em disputa de causalidade. O papel do direito, por outro lado, é pautado por uma visão majoritáriachapada e reducionista, que o coloca nos termos de um colaboracionismo autoritário sem precedentes – ou, no extremo oposto, como bastião da resistência.
O que argumento no artigo recém-publicado é que as visões que defendem uma novidade sem paralelos no uso do direito pelos líderes autoritários atuais são cegas em relação a um vasto catálogo de seus usos em regimes autoritários do século passado. Mesmo quando concedem que as “lições aprendidas” pelos desenvolvimentos dos regimes passados, notadamente o nacional-socialismo e o comunismo soviético, sejam reducionistas da complexidade dos fenômenos vivenciados, ainda assim elas colocam de escanteio as complexidades patentes do emprego das formas jurídicas em tempos pretéritos.
Para demonstrar isso, sirvo-me de autores do campo da transição de regimes políticos e do neoinstitucionalismo, que estudaram os desenvolvimentos não-democráticos notadamente na Europa e na América Latina entre o fim da primeira Guerra Mundial e a queda do Muro de Berlim. São eles: Juan Linz, Guillermo O’Donnell, Robert Barros e Anthony Pereira. Mesmo que não necessariamente se proponham a sedimentar um tal campo, esses autores ajudam a fazê-lo, trazendo esforços novos e se propondo a suprir lacunas uns dos outros.
Também é certo que cada um deles tem sua própria concepção do fenômeno jurídico. Enquanto alguns tendem a observá-lo a partir de uma visão distanciada das leis e constituições, outros se engajam em tentar decifrar como os operadores do direito o encaram nos julgamentos de cortes. Logo após a introdução do artigo, discuto especificamente quais os pressupostos metodológicos e conceitos fundamentais empregados por cada um dos autores comentados, dentro de seus projetos acadêmicos específicos.
Em seguida, defendo que, a partir desses quatro autores é possível esboçar um catálogo de funções a que o direito serviu nos diferentes regimes não democráticos passados – que vão desde o nacional-socialismo alemão à ditadura de Pinochet, passando pelo regime militar brasileiro e pela série de golpes argentinos –, a saber:
- “Fachada” ao exercício do poder;
- Instrumento para a implantação de ideologias;
- Organização do poder em coalizões plurais; e
- Resistência contra a repressão extralegal.
Cada uma dessas funções embute complexidades próprias, que não podem ser reduzidas totalmente à forma simplificada em que foram apresentadas, nem aqui nem no artigo original. Optei por apresentá-las de forma a generalizar grandes traços percebidos pelos autores comentados. Por outro lado, não se pode ignorar que contratendências também poderiam ser notadas.
A primeira dessas funções apontadas é a única normalmente reconhecida pela literatura mainstream do “ineditismo” do uso do direito nos autoritarismos contemporâneos. E mesmo quando ela reconhece uma tal função, ela tende a descreditar sua importância, afinal, se algo é mera fachada, isso significaria, à primeira vista, que não tem incidência real nos quadros institucionais analisados. Por outro lado, a mera existência de uma fachada implica preocupação mínima com uma legitimação legal do regime frente a alguma audiência nacional ou estrangeira. Além do mais, ela exige uma escolha por determinadas formas do direito, o que também importa custos políticos aos líderes autoritários.
A fachada, por outro lado, pretende esconder uma outra camada de atuação político-institucional. Assim é que esses regimes políticos – exemplificados pelo brasileiro e o argentino dos anos 1960 – procuraram ocultar as violações aos termos legais e constitucionais, ao que se deu o nome de “perversão da legalidade”. Seu modo de funcionamento básico, em resumo, opera uma contradição entre as gramáticas liberais de direitos e liberdades civis e as frequentes mostras abusivas de poder, exercidas por meio de assassinatos políticos, perseguição de oponentes e exercício da violência para fins privados, por exemplo.
A ideia de esconder as violações de direitos, por sua vez, não é trivial. O uso do direito para a implementação de ideologias prova isso, já que, no sistema nacional-socialista, por exemplo, não havia um apelo dessa monta às formas legais para a legitimação do regime. Esse posto legitimatório era ocupado pela ideologia, ao que se revela o “paradoxo do direito” nos totalitarismos. Em vez de se valerem de tipos penais draconianos e formas rígidas e implementá-las por interpretações positivistas legais, os regimes nesse contexto se valeram de construções vagas e considerações sociológicas, tendo em vista a posição hierárquica superior das ideologias em relação às próprias formas e procedimentos legais. Por consequência, não há uma tentativa de esconder as violações do direito sob uma fachada oca de legalidade. Antes, defende-se abertamente o atropelo do direito em prol da concretização de visões ideológicas.
Nisso também reside outra diferença em relação aos regimes em que se tentou implementar uma fachada legal. Nesses últimos casos, não há ideologias tão cristalizadas, tampouco uma mobilização popular em torno delas. Enquanto a regra nos totalitarismos é uma intensa mobilização popular em torno de bandeiras comuns, nos regimes autoritários de fachada legal predominava uma apatia cidadã: os líderes políticos não se preocupavam com a mobilização fanática de civis. Muito pelo contrário: eles queriam majoritariamente reprimir quem se manifestava, já que contra o regime. Aqui vale recuperar a ressalva às contratendências feita acima: isso não quer dizer que não tivessem sido endossadas quaisquer manifestações públicas de apoio ao regime, nem que, inversamente, todas as críticas a elas tenham sido duramente reprimidas. O próprio artigo mostra temperamentos a isso, como alguns casos de resistência eficaz exercidas na esfera pública brasileira no começo dos anos 1970.
Uma terceira função do direito que pode ser aventada é a de seu uso em regimes cujas coalizões alçadas ao poder não detêm coesão interna. Assim, se há discordâncias entre os líderes autoritários, o direito serve como um instrumento para a autoimposição de limites. Mesmo que os limites a que se faz referência ainda estejam muito aquém de parâmetros substantivos do rule of law – enquadrando-se, em contrapartida, nos termos de um rule by law –, ainda assim é possível que eles sejam efetivos e impeçam piores arbitrariedades.
Esse foi o caso, por exemplo, da ditadura chilena inaugurada em 1973. O senso comum tende a personalizar na figura do presidente Augusto Pinochet todos os desmandos ditatoriais, mas a verdade é que o poder foi atribuído a uma junta militar, com representantes de todas as armas (exército, marinha, força aérea e carabineros). Os comandantes de cada arma tinham poder de veto sobre os projetos de leis, de modo que, caso não fossem unanimemente aprovados, tais projetos não poderiam ser implementados. Diversos foram os casos de embate entre os comandantes da marinha e da aeronáutica e Pinochet, o que serviu como limitação à adoção de determinadas decisões. A própria constituição chilena de 1980 – que, apenas em outubro de 2020, 78% dos chilenos optaram por revogar via plebiscito – foi resultado de uma aliança de projetos de governo distintos, mantendo-se omissa sobre questões controversas entre os comandantes.
Por fim, e de maneira diametralmente oposta às funções anteriormente esboçadas, também se pode dizer que o direito serviu como barreira ao autoritarismo dos líderes políticos. Em outras palavras, não apenas o direito corroborou a implementação de projetos políticos autoritários, como também foi instrumento de resistência a eles. Com a “judicialização da repressão”, houve um contrabalanço ao recurso à violência extralegal como forma de lidar com dissidências.
Em vez de apenas recorrerem a assassinatos e desaparecimentos de críticos, os regimes também se utilizaram de julgamentos políticos para intimidar opositores. Isso não quer dizer, no entanto, que não houve violência extralegal nos regimes em que uma tal função do direito pôde ser observada, como o brasileiro a partir de 1964. Com certeza houve, e diversos são os documentos que atestam a gravidade e a violência dos atos perpetrados (o “Bagulhão”, considerado a primeira denúncia pública contra agentes da ditadura, é um exemplo). A diferença é que ela não foi a única ou principal maneira escolhida pelos regimes para a manifestação do uso de seu poder arbitrário, tendo em comparação o cenário em países vizinhos. Em contraste com Chile e Argentina nos anos 1970, por exemplo, o Brasil teria adotado uma estratégia mais “legalista autoritária”, recorrendo com mais frequência à procedimentalização jurídica da repressão política.
Em conclusão, aponto que essa lista de quatro funções é apenas um esboço e abre espaço para uma agenda de pesquisas, tanto histórica quanto contemporânea. Apagar a importância do direito nos regimes não democráticos passados é praticar uma narrativa cega e parcial. Como já advertiu a sempre precisa Lilia Schwarcz, história não é bula de remédio, mas permite uma visão mais crítica sobre o passado, o presente e o sonho de futuro.
Para saber mais sobre as funções do direito referidas, os conceitos empregados entre aspas ao longo do texto e as posições contemporâneas acerca do papel direito em regimes autoritários passados, indico a leitura do artigo, disponível aqui.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
[1] Marina Slhessarenko Fraife Barreto é mestranda em Teoria Política no Departamento de Ciência Política e graduanda em Filosofia, ambos pela Universidade de São Paulo, desde 2021. É advogada e bacharel em Direito pela mesma Universidade (2020), em programa de graduação-sanduíche com a Ludwig-Maximilians Universität (Munique) e em dupla graduação com a Universidade Jean Moulin Lyon 3 (Lyon). É pesquisadora no LAUT e no Núcleo de Direito e Democracia do CEBRAP. Entre em contato por e-mail (marina.barreto@usp.br/ marinasfbarreto@gmail.com) ou acompanhe pelo Twitter (@marinasfbarreto).
Fonte Imagética: Paulo Biccas/ Tribuna da Bahia. Condenado à morte: Theodomiro Romeiro (esquerda) e Paulo Pontes durante julgamento, em 1971. 1971. “Ironicamente, ele [Romeiro] só ficou tranquilo quando soube de um carcereiro que seria condenado à morte. Deduziu que, se iria a julgamento, então não seria executado na prisão.” Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/historia-do-primeiro-preso-condenado-morte-no-brasil-que-fugiu-da-cadeia-e-virou-juiz.html. Acesso em 13/05/2022.