Ronaldo Tadeu de Souza[1]
Andréia Fressatti Cardoso[2]
Sérgio Mendonça Benedito[3]
Na segunda parte da entrevista concedida ao Boletim Lua Nova por San Romanelli Assumpção (IESP-UERJ) e Paulo Henrique Cassimiro (UERJ), conversamos sobre a situação e os desafios para a teoria política e o pensamento político realizados no Brasil. Leia a primeira parte da entrevista aqui.
A situação da teoria política brasileira é diferente da teoria política norte-americana? Sabemos que essa é uma questão complexa, dados os meandros do debate mais específico no interior da teoria política norte-americana. Mas até onde se sabe, a impressão é que os(as) teóricos(as) políticos(as) norte-americanos(as) estão numa posição de desvantagem se comparado a nós aqui no Brasil. Se observamos, por exemplo, algumas intervenções da Wendy Brown, ela constantemente se coloca em uma posição de defesa da teoria política e adota uma posição militante com relação ao subcampo. Vocês acham, então, que nesse aspecto a nossa posição é diferente? Temos uma situação mais bem colocada no campo das ciências sociais do que os(as) próprios(as) teóricos(as) norte-americanos(as)?
San Romanelli Assumpção (SRA): Eu não diria isso. Eu estou dando uma resposta pouco refletida e talvez muito enviesada pelo fato que eu sou de teoria política normativa, que é uma área muito orgulhosa. Teóricos políticos normativos escrevem livros que são “bíblias”: “O que importa?”; “Uma teoria da justiça”; ou “O que devemos uns aos outros”. Nós não temos problemas de autoestima. Eu acho que a teoria política é muito plural e que partes diferentes da teoria política anglo-saxã e continental têm percepções de si diferentes, muitas delas muito altivas e combativas, vide a autopercepção da teoria crítica, das teorias pós-estruturalistas, desconstrutivistas e pós/de-coloniais, por exemplo, que são campos teóricos que afirmam críticas profundas a tudo o que é produzido intelectualmente em qualquer campo disciplinar das ciências humanas e humanidade. A teoria política normativa, que também é muito altiva, faz menos críticas a outros campos do que as subáreas de teoria que acabo de citar. Eu acho o debate sobre a crise e a morte da ciência política um pouco datado. A teoria política não está em crise e não morreu, sua “estranha morte” não ocorreu. Seguimos existindo vigorosamente. Sem ignorar que tenhamos dificuldades, todas as áreas têm dificuldades. E o empreendimento do debate acadêmico é um empreendimento do debate, então, crítica e criação dentro de cada campo e entre campos disciplinares são o modo de existência. Dentro disso, a área de teoria recebe críticas e faz críticas. É parte do jogo universitário. Junto com isso, somos muito plurais, o que nos dá espaço em muitos lugares diferentes. Se olharmos os handbooks das editoras universitárias centrais, como os handbooks da Oxford, por exemplo, vemos que o campo é plural e repleto autores que fazem parte de cânones. Compor cânones é sempre uma demonstração de vigor e influência intelectuais. Então, eu diria que o mesmo discurso que eu fiz sobre a importância da teoria política numa perspectiva brasileira vale para a teoria política que se aplica a qualquer país.
PHC: Eu concordo com a San. Eu acho que os discursos da Wendy Brown sobre a situação da ciência política têm muito a ver com a sua agenda, com uma certa concepção de ciência política que ela defende no debate norte-americano. Mas é como a San lembrou: ela não tem dificuldade em ter um emprego em uma excelente universidade, nem publicar em boas editoras. E abre eventos que são da ciência política como um todo, como o último encontro da ABCP, em que ela fez uma conferência na presença de uma comunidade com vários cientistas políticos hard. Então eu acho que isso não é um problema muito real. Mas acho que os americanos têm duas coisas que nós temos muita dificuldade de construir, e que são fundamentais para a existência de um campo de debate intelectual saudável, e que a gente precisa ter se quiser ter uma teoria política de “primeiro mundo”. Primeiro, a busca constante da originalidade. E quando eu digo originalidade quero dizer coisas que vão se tornar debatidas no seu campo, o que é muito difícil, sobretudo porque a gente está colocado numa relação que internalizou a posição periférica, em que nós lemos os autores gringos e resumimos o que eles dizem e não fazemos nem aquilo que o Guerreiro Ramos chamava de redução sociológica, o esforço de tentar adaptar as condições, as concepções teóricas às condições objetivas do chamado “terceiro mundo”, da periferia de forma mais genérica. Uma segunda coisa que é fundamental: ter debate interno. Se você faz um lance, você oferece uma proposta teórica, uma formulação instigante para o campo, você vai gerar debates, você vai gerar discordâncias, concordâncias, complementações. Isso acontece lá o tempo todo. E a gente faz o que? Nós lemos aquilo lá e tentamos ficar reproduzindo aqui de forma meio automatizada, pouco reflexiva, pouco crítica, no sentido de uma leitura que procure complementar, criticar, ver o que não se adequa ao debate de quem está num país como o Brasil. Sem isso não existe debate intelectual de verdade. Existe um simulacro de debate intelectual. Isso me faz pensar em dois problemas que a teoria política precisa enfrentar no Brasil, que são os seguintes. Não existe uma única forma de fazer teoria política; há formas de fazer teoria política e, como eu e a San gostamos de chamar, modalidades de teoria política, que obedecem à tentativa de responder a problemas diferentes de modos diferentes. Então, a teoria crítica tem um papel dentro da teoria política, porque ela tem as suas perguntas e o seu modo de responder essas perguntas. A teoria normativa formula respostas normativas, conceitos e justificações universalistas etc.. As abordagens históricas tentam entender como se constituem debates em determinados contextos, como as linguagens políticas surgem, como conceitos políticos mudam de sentido. O debate pós-colonial discute sobre a formulação do conhecimento na periferia, as representações sobre o que é periferia, as representações do centro em relação à periferia e vice-versa. Então, essas modalidades têm as suas próprias agendas. E você precisa fazer um tipo de teoria na medida que você tem uma pergunta e um problema. Não se escolhe antes que tipo de teoria você faz porque gosta de uma em particular. No geral, o ideal é que você tenha um problema e procure os autores, os textos, os instrumentos teóricos que vão te ajudar a responder a um problema. E há outra grande dificuldade, que é a criação de agendas de pesquisa comuns. Eu acho que no pensamento político brasileiro, o Gildo [Marçal Brandão] conseguiu fazer isso de forma muito forte; num certo sentido, na teoria normativa, o Álvaro [de Vita] também criou uma geração que tem agendas comuns. E você pega, por exemplo, associações como a Serras [Associação Serras de Minas de Teoria da Justiça e do Direito], que também têm tentado formular agendas mais comuns.Mas esse é um desafio que a gente precisa encarar. O Cícero [Araújo] e outros tiveram um projeto temático sobre constituições no Cedec, do qual a San participou, e que também montou uma agenda de pesquisa. Assim como o Christian [Lynch] tem tentado renovar a agenda de pensamento político brasileiro, muito em diálogo com Bernardo [Ricupero], com a Vera [Cepêda], entre outros(as).
Dando continuidade a essa questão de dificuldades, inclusive do próprio V Encontro de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro, quais as adversidades que vocês identificam, principalmente? Antes vocês mencionaram a questão do financiamento, mas o que mais é desafiador?
SRA: Eu acho que tudo o que a gente tem falado aqui é, em partes, uma realidade e um ativismo. Por exemplo, essa renovação da forma como a própria teoria e pensamento se veem como áreas é um ativismo, ainda que a gente possa dizer que é uma realidade a importância intelectual da teoria para os outros campos. Então, um dos desafios tem a ver com essa forma como a gente se vê, que está entre a realidade e os nossos ativismos. E a construção institucional é sempre um ativismo. A construção desse evento, que já está em seu quinto ano, é um ativismo coletivo, porque depende do apoio dos seniores e do apoio dos juniores. E é difícil para todo mundo apoiar, porque todo mundo tem uma quantidade gigantesca de atividades em seus próprios departamentos e programas. E aí, pensando sobre os grandes desafios, eu acho que tem duas coisas que sempre voltam às nossas conversas e que são as mais difíceis: a partir do nosso fortalecimento como rede, e como comunidade de debate, criar força para ter, um dia, uma revista e uma associação. E um dia, porque é uma coisa bem vir-a-ser. O Brasil é um país muito grande e com uma capilaridade universitária enorme para não ter uma revista de teoria política. A gente tem revistas de filosofia política, que se dedicam aos nossos temas, mas a gente não tem uma revista de teoria política. É importante que em algum momento a gente tenha como fazer uma revista. Isso era um dos objetivos iniciais do encontro e a gente ainda não conseguiu.
Qual a maior dificuldade no que diz respeito a fazer uma revista?
SRA: A primeira coisa é que uma revista nasce sem qualis e, portanto, não é atraente para autores individualmente. Criar um periódico exige muita virtude individual e coletiva. Entregar um bom artigo (que seja lido, que gere citação e impacto) para um periódico que ainda não tem nota, exige muito altruísmo do autor. E, como precisaríamos de muitos bons autores altruístas, o engajamento precisa ser coletivo. Eu acho que já temos um pouco desse material humano virtuoso no campo, por causa do GT da Anpocs e das ATs da ABCP, por causa das Jornadas, do nosso evento e, também, porque a gente é colega e amigo, existem muitas relações de coleguismo e amizade nesse campo. Mas, mesmo havendo essa comunidade, conseguir a quantidade de artigos necessários para levar a revista por uns dois anos iniciais exige muito dessas pessoas. Quando conversamos com as pessoas que criaram periódicos, a primeira coisa que nos falaram foi: vocês vão precisar de um banco de artigos antes de lançar a revista, porque precisarão de edições regulares para obter boa avaliação na CAPES e, no início, as chamadas de artigos não são suficientes para criar essa regularidade. Por isso tudo, creio que a maior dificuldade de todas não é dinheiro, é conseguir esses compromissos dos colegas para fazer um estoque de artigos para ir suprindo o periódico em formação. Isso exige muita virtude, não só por desperdiçar um bom artigo em uma revista sem qualis, mas também porque você não vai saber direito quando esse artigo vai sair. O periódico vai abrir momentos de submissão e o que for submetido tem que ser incluído, senão a nota não vai ser boa, então, quem contribuiu para o banco de artigos vai ter que esperar o momento certo para o periódico nascente. Juntemos a essa dificuldade grande, o problema do dinheiro. As revistas gastam dinheiro e as linhas de financiamento estão se fechando. O desafio global de criar uma revista de teoria e pensamento políticos é muito grande. E o desafio da criação de uma associação também é muito grande, porque uma associação exige dinheiro. Isso também exige muita capacidade organizativa, muito mais do que é necessário para organizar um evento. Além disso, quanto mais a gente institucionaliza, mais se fortalece um jogo ambíguo de abertura e de fechamento. Abre-se para novas pessoas entrarem e, ao mesmo tempo, se oligarquiza. Organização sempre cria viés.
PHC: Eu acho que o momento é muito difícil para revistas, não é? Porque mesmo periódicos consolidados, com o qualis no estrato superior, têm tido problemas. O Adriano Codato tem dito isso em muitas atividades públicas, que a revista Sociologia & Política tem tido muitas dificuldades de financiamento e outras também. A Brazilian Political Science Review agora cobra, e não cobra barato.
SRA: Poder publicar em revistas que cobram é algo que depende da sua trajetória individual e da trajetória da sua instituição. Para quem não é de uma instituição com dinheiro, depende de muita capacidade individual. Pensemos, por exemplo, que temos, na teoria política e no pensamento político brasileiro, alguns seniores bem produtivos que estão em programas com nota baixa. Eles vão conseguir por causa das suas bolsas de produtividade. E um júnior que consiga estar num programa com nota boa junto à Capes, pode conseguir a verba para publicar, mesmo se ele ainda não tiver essa bolsa produtividade – que está cada vez mais difícil conseguir. Mas e quem não está nem em um programa com recursos e nem possui uma bolsa de produtividade? É muito complicado. Essas revistas foram forçadas a isso. Elas não fizeram isso porque acreditavam nisso como valor. Fizeram isso porque precisavam disso prudencialmente, para a sua sobrevivência. E novamente, recurso oligarquiza em muitas frentes. Por que há mais teóricos políticos e pessoas de pensamento político brasileiro no Sudeste? Porque o Sudeste tem mais dinheiro e dinheiro se traduz em bolsas, salário de professor, em quadros, em departamentos, em programas de pós-graduação. Por que o nosso evento se alterna entre Rio e São Paulo? Porque é mais barato, para nós, irmos para essas duas cidades, que possuem a maior concentração de teóricos políticos. Tem muitas coisas delicadas nisso tudo. Politicamente, mesmo com restrição orçamentária, precisamos nacionalizar o máximo possível. Quando nós dizemos que o evento é bastante nacional, estamos falando que reunimos pessoas de três regiões do Brasil todos os anos, às vezes, de quatro. Nem sempre conseguimos que pessoas de todas as regiões aceitem, mas sempre convidamos pessoas de todas as regiões. E esse foi o primeiro ano em que conseguimos financiamento para o evento, conseguimos uma verba da Capes, do PAEP. Só conseguiremos ser nacionalizados plenamente quando conseguirmos financiamento para incluir as cinco regiões sem que nenhum palestrante tenha que pagar nada do próprio bolso. Isso ainda é um cenário um pouco distante. Ficaremos felizes quando conseguirmos que apenas as pessoas do Sudeste paguem suas próprias passagens, por serem as passagens mais baratas. A ideia é privilegiar o pagamento das passagens de quem vem do Norte, Nordeste e Sul por serem as passagens mais caras.
Com a pandemia de COVID-19, muitas atividades foram convertidas em virtuais e isso permitiu uma ampliação da participação, ainda que com custos para o modo de debate. Mas agora há uma tendência de retorno ao presencial. O que vocês pensam sobre a ampliação nesse retorno às atividades?
SRA: Olha, é complicado pensar nas perspectivas, porque todos preferimos o presencial, porque gostamos de certas dinâmicas, que inclusive criam comunidades de diálogo em rede que são muito boas presencialmente. Mas, ao mesmo tempo, temos que respeitar as necessidades de saúde pública. E temos outro problema adicional: para muitas pessoas, importa o fato de que participar virtualmente é mais barato. Então a modalidade virtual torna o evento mais plural e mais inclusivo, porque permite que pessoas que não têm financiamento, ou por alguma razão não querem tirar isso do próprio bolso, participem. Razões muito legítimas. O bolsista e o professor universitário não são pessoas que ganham mensalmente grandes quantias. Então, a nossa perspectiva é sentir o ambiente, o contexto de como essas coisas vão se desenvolvendo. Temos uma rede de conversa muito boa, muita gente conversa com a gente o tempo inteiro. E como as comissões organizadoras são grandes, tem muita conversa. A nossa perspectiva é sentir se as pessoas conseguem se incluir sem sacrifício no presencial. Se elas não conseguirem, a gente quer criar o híbrido, de modo que contemple presencial para quem pode, híbrido e virtual para as pessoas que precisam deles. E é claro, a gente vai ter que construir isso de um jeito que não crie desigualdade. Porque é claro que a experiência para quem está no presencial e para quem está no virtual não é a mesma. E a gente vai ter que criar modos gentis, e generosos, de incluir quem está no virtual de uma maneira que a pessoa de fato integre a rede.
PHC: Eu acho que tudo é muito novo. Há certas coisas que a gente não voltará para o presencial. Vamos pensar em programas que não têm recursos: arcar com os custos de algo que pode ser suprido pelo virtual diante de uma situação de escassez parece fatal, não é? A Alacip, por exemplo, optou por um congresso presencial em 2022, apesar da volta das atividades em todo o continente. Eu acho que a opção pelo virtual por parte desses encontros se deve muito à dificuldade de organização diante da escassez de recursos, diante da falta de tempo, da incerteza, como a possibilidade, por exemplo, de gastar muito dinheiro para fazer um evento e depois acontecer um aumento nas contaminações que impeça a sua execução presencial. Então, eu acho que a gente vive um período de muita incerteza, é muito difícil bater o martelo. Uma coisa que eu tenho certeza, em certo sentido, é exatamente o que a San disse quando ela chamou atenção para o híbrido, que a gente não pode deixar de dar uma resposta a esse novo mundo que o virtual abriu. Por exemplo, o fato de que você pode ter um congresso com gente da Universidade Federal do Amapá, que não teria recursos para vir para o Rio de Janeiro, como a gente teve na Jornada de Pensamento Político Brasileiro, da qual eu era parte da organização. Você não pode simplesmente ignorar e voltar a fazer encontros com gente só de universidades que têm dinheiro para mandar um estudante viajar. Ao mesmo tempo, não dá para viver só no virtual, porque isso tem um prejuízo… Eu não estou falando dos prejuízos individuais, psicológicos, não. Estou falando de prejuízo acadêmico. A conversa que temos depois da reunião do GT redunda em projetos comuns, em agendas de pesquisa, em ideias, em você conhecer como é o campo, acompanhar o trabalho dos colegas, não é? Eu me lembro que Roberta Soromenho, que é minha colega de departamento, Felipe Freller e eu começamos a conversar em encontros na Anpocs, na ABCP etc. E isso redundou em eventos organizados em conjunto, em coisas escritas em conjunto etc. Você também não pode abrir mão disso, porque isso vai ter como resultado um prejuízo intelectual gigantesco.
Como a teoria política, no contexto político brasileiro, pode contribuir com o debate nacional? Qual é a contribuição dela para fazer a leitura de Brasil?
SRA: O que eu vou dizer aqui é a minha posição. O V encontro, todos os encontros, eles são plurais. E eles possuem participantes que são cidadãos plenos, com posições muito diferentes sobre todas as coisas. Feitas essas ressalvas, para começar, eu acredito na inovação e que temos que teorizar da perspectiva do que é possível ser teorizado no Brasil. Eu acredito num mundo objetivo, num conhecimento objetivo, como ideais. Mas eu acredito também que nós, seres humanos, somos perspectivados e limitados e, como tal, temos que lidar com isso o tempo inteiro. Eu acredito na razão e na empatia também. E eu acredito que a teoria política está no campo das humanidades e lida com valores. Para lidar bem intelectualmente com valores, perspectivas, experiências e posições sociais diferentes, é importante se aproximar de um entendimento do mundo que não seja faccioso e que não seja a construção de uma hegemonia, de um poder. Então, reunir várias perspectivas diferentes enriquece a forma como a gente lida com o que é normativo, com o que é ontológico, com o que é epistêmico. Eu acredito, também, que existem questões que viram não-questões na ausência de pessoas de determinadas posições e pertencimentos sociais. Então, por exemplo, pensemos que aquilo que é político varia, nós politizamos e despolitizamos o tempo inteiro. Politizamos quando dizemos que algo deve ser objeto de ação estatal. Despolitizamos quando dizemos que algo é questão de direitos humanos e justiça e deve ser protegido contra maiorias morais intolerantes e protegido contra poderes econômicos. Se nós politizamos e despolitizados todo o tempo, precisamos incluir pessoas com posições e pertencimentos sociais interessados em diferentes politizações e despolitizações. O movimento feminista politizou várias questões que não eram políticas: a família não era política, o pessoal não era político, hoje, são políticos em muitos sentidos. A liberdade religiosa fez a mesma coisa, ela despolitizou o Estado via laicidade, mas também abriu espaço para diversos ativismos políticos religiosos com enorme expressão eleitoral nos dias atuais. As discussões sobre Estado mínimo, Estado de bem-estar social, as diversas dimensões da justiça, como a justiça distributiva, também estabeleceram politizações e despolitizações: essas discussões estão dizendo que economia e mercado são uma questão que tem que ser pensada politicamente e que devem respeitar alguns direitos que lhes são prioritários. Quando os movimentos antirracistas fazem reivindicações e colocam na pauta pública a discriminação e a violação racialmente orientadas, quando o movimento LGBTQIA+ está fazendo isso, estão fazendo a mesma coisa: politizando e despolitizando. Quando temos sujeitos do conhecimento mais plurais construindo teoria e pensamento políticos, temos um entendimento mais plural, mais perspectivado e, portanto, no horizonte, temos um entendimento teórico mais universal, mais no campo da razão universal e mais no campo de um exercício empático universalista. Então, eu acredito em política de presença: precisamos de teóricos políticos com múltiplos pertencimentos e posições sociais. Agora, a política de presença também tem várias delicadezas, porque elas podem ser cosméticas e falsas correções de injustiças sociais, temos que procurar uma maneira da política de presença ser enriquecedora da política de ideias. Tem um equilíbrio importante e difícil aí. A política sempre é sobre valores, então, políticas de presença têm muito a contribuir para a teoria e pensamento políticos, porque estes tratam de liberdades, igualdades, desigualdades e violações em sua dimensão política. E discutir o que é a dimensão política é muito importante. Isso é especialmente importante em momentos de tanta intolerância quanto o momento atual, no qual temos que pensar sobre o político de uma maneira aceitável pelos diferentes, pelos diversos. A teoria política tem uma oportunidade intelectual valiosíssima no momento. São tempos ruins para os cidadãos e cidadãs, mas são tempos bons para os teóricos e teóricas políticos, porque não nos faltam objetos. Novamente, são muitas as delicadezas, uma puxando a outra. Eu acredito que o intelectual público, que está alimentando a esfera pública, não é exatamente o mesmo intelectual que o universitário e acadêmico. Quando produzimos teoria política, não estamos produzindo ideologia no mesmo sentido que um partido político, um movimento social. A teoria política e o pensamento político têm exigências de coerência, consistência, capacidade de formulação de conceitos, de articulação de conceitos que não são da esfera pública, ou da opinião pública, e nem devem ser. Se a universidade se amalgama completamente com o campo da atividade política, a universidade morre e fica só a política. Eu acho que deve existir uma autonomia da teoria política, como existe uma autonomia da ciência. Eu respeito o intelectual público, eu acho que é uma categoria importante, mas eu acho que um bom intelectual público que é também um bom intelectual acadêmico existe nos dois registros, ele não inventa um registro só e usa nos dois lugares. Eu acho que há um problema na aproximação excessiva entre o papel “teórico na academia” e o “intelectual público”, ou como eu falei antes, intelectual público/intelectual acadêmico, que é uma sobrevalorização da teoria acadêmica, da ciência acadêmica, do que é acadêmico: a face intelectual público não precisa ser subsumida à face intelectual acadêmico para ter valor intelectual. Existem muitas formas de conhecimento válidas e nem todas são científicas, nem todas são teóricas, nem todas são filosóficas. Em suma, eu acho que nem todo o conhecimento é científico ou teórico, e não deve ser. E que esse conhecimento científico e teórico não é superior, e por isso ele não tem que prestar contas políticas a esses outros conhecimentos. Uma outra coisa, um pouco mais controversa, que eu queria acrescentar é que a perspectiva e o lugar de fala são importantíssimos para a gente incorporar questões teóricas importantes. Mas o conhecimento acadêmico, que está no campo da filosofia e da ciência, é um conhecimento entre pares e ele depende de uma inteligibilidade mútua. Quando a gente pensa na perspectiva e no lugar de fala, a gente não pode abdicar da inteligibilidade mútua da comunidade acadêmica. E a gente não pode usar como argumento que existem coisas que não podem ser traduzidas em linguagem acadêmica e que só existem na linguagem do eu. Então, resumindo, creio que existe lugar para todos os tipos de conhecimento, o conhecimento acadêmico não é superior, ele é específico. E eu acredito que a gente tem que respeitar suas especificidades.
PHC: Eu acho importante que a teoria política seja atenta a responder e refletir sobre questões que são de natureza pública, que são questões candentes do tempo. Crise, democracia e problemas de democracia, os problemas de inclusão, problemas de justiça social, a guerra. E, sobretudo, fazer aquilo que eu acho que a teoria faz de melhor, que não é demonstrar causalidades, mas distinguir: processos históricos, conceitos, formular definições precisas. Mostrar que distinções que muitas vezes são teóricas, do campo do discurso, na prática se imbricam. O que eu estou querendo chamar atenção é o seguinte: eu acho ótimo que a teoria política seja capaz de responder a questões que são colocadas pelo mundo, dentro das suas diversas formas de se fazer, das suas modalidades. Mas eu acho que ela não pode ser avaliada por aquilo que o mundo público considera importante ou não. O critério de avaliação de boa teoria não é o de uma adesão do mundo público a ela. A teoria tem que ser avaliada por critérios, como a gente conversou antes, de originalidade, contribuição ao campo, da sua capacidade de criar debates internos ao campo. Ela tem que ser orientada por critérios acadêmicos. A sua importância tem que ser a importância acadêmica. Isso não vale só para a teoria política, vale para qualquer área do conhecimento científico. Dito isso, eu acho que um dos problemas sobre o qual a teoria política pode pensar é exatamente sobre o lugar do intelectual no debate público. Eu vejo muitos colegas lamentando com um certo ar saudosista aquele momento heróico, até os anos 1980 e 1990, do intelectual acadêmico que ia ao mundo público e dava a resposta a partir dos movimentos sociais, dos partidos, da imprensa… A gente pode pensar em vários nomes importantes, como o Florestan Fernandes, que é um grande exemplo disso. Agora, isso ajuda a gente a pensar transformações estruturais na sociedade, na formação da opinião, o fato de que a formação da opinião hoje está muito menos mediada pela imprensa, seus resultados políticos, etc. Podemos pensar, por exemplo, por exemplo, nos pesquisadores/as, sobretudo ligados ao Cebrap, que tem estudado a respeito dos contra-públicos que emergem numa esfera pública transformada, menos mediatizada por certos mediadores tradicionais. Isso tudo pode ser objeto da teoria política e do pensamento brasileiro. Isso não significa lamentar politicamente o fim do “intelectual público”, mas entender que transformações sociais e políticas levaram à exaustão daquela categoria. O acadêmico pode ter compromisso com o mundo público, mas é um compromisso pessoal dele, uma escolha que não deve, e não pode influenciar nos critérios de avaliação do seu trabalho acadêmico. Estou falando como indivíduo, como eu entendo o papel e a atuação dos intelectuais no mundo público.
Sobre a pluralização, acho que a San já respondeu muito bem sobre essa questão. Agora, falando especificamente do Encontro, ele tem como objetivo ser, de algum modo,o espelho do campo. Então, quais temáticas que são questões emergentes do campo precisam ser incorporadas? Eu acho que, na medida em que há demanda do campo, ou seja, pesquisadores/as fazendo pesquisas que se enquadram na categoria mais ampla de debate pós-colonial, por exemplo, tem que haver espaço para discussões sobre o debate pós-colonial no Encontro. E isso vale para todas as subáreas da teoria e do pensamento político. Não há critérios públicos para você fechar a porta para as sub-áreas da teoria política que existem. E questões específicas, como as questões de gênero, podem ser discutidas pela teoria normativa, pela teoria crítica, pela teoria pós-colonial, pelas abordagens históricas. Elas não são domínio de um campo teórico, de uma modalidade teórica. E se elas são questões do mundo público, se existem, se as pessoas estão pesquisando sobre isso, elas têm que estar no Encontro. Agora, o recrutamento não é só nosso, é também das pessoas que têm que buscar ocupar o espaço. Compreensão mútua de quem organiza o Encontro, de quem tem que receber, recepcionar, incluir agendas emergentes, agendas importantes. E uma compreensão das pessoas de que isso tem um tempo e tem conflitos, problemas de organização, que também são delicados. Não é fácil. Existem questões políticas, regionais, de recursos, de gênero, que você tem que incluir na organização de um Encontro. Eu acredito em uma compreensão mútua, no exercício de uma certa tolerância, de um diálogo aberto. Eu acho que esse é o caminho.
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O V Encontro de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro ocorrerá entre os dias 6 e 8 de julho, no IESP-UERJ, e a programação pode ser acessada aqui.
[1] Doutor e Pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP e no Grupo de Pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica (CNPQ-USP) e membro da equipe editorial do Boletim Lua Nova/Cedec
[2] Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com bolsa FAPESP (processo n. 2020/14387-8), e membro da equipe do Boletim Lua Nova. E-mail: afressatticardoso@gmail.com. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
[3] Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), bolsista CNPq, membro do grupo de pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica e da equipe editorial do Boletim Lua Nova. E-mail: sergiombk@gmail.com.
Referência Imagética: Colagem feita a partir de fotos cedidas pelos entrevistados.