Sergio Simoni Junior[1]
Ainda que em 2022 participaremos da nona eleição presidencial pós-Constituição de 1988, número esse que é mais que o dobro da primeira experiência democrática em 1946-1964, o Brasil é um dos casos mais importantes da nova (ou renovada) e famosa seção editorial conhecida como “crises da democracia”. Na última disputa, a eleição de um político defensor da ditadura militar, autor de diversas frases racistas, misóginas, homofóbicas, sem estrutura partidária e nenhuma relevância nos debates sobre os grandes temas nacionais, tenderia a colocar uma das maiores democracias do mundo em retrocesso, como confirmado, por exemplo, pelo relatório de 2021 do V-DEM.
Na literatura internacional, é recorrente o argumento de que a emergência dos atuais políticos populistas estaria ancorada no apoio de parcela específica do eleitorado, de classe média baixa ou classe baixa, tanto por razões econômicas, após a crise global de 2008, quanto por razões culturais – sem negar a possibilidade de interação entre as duas -, dada as grandes ondas de imigração e o surgimento de novas clivagens políticas, particularmente, as identitárias. As raízes do populismo de extrema-direita estariam em um clamor por redistribuição a favor dos “nativos” que não fora ouvido por nenhuma força política do establishment. Os partidos de esquerda, em particular, se encontrariam em um dilema fruto da multidimensionalidade introduzida pelas novas pautas identitárias que implicariam em perda de parte do eleitorado pobre, mas conservador.
Sobre o caso do Brasil, em particular, os trabalhos sublinham também algumas explicações específicas. É consensual afirmar que as eleições de 2018 foram presididas pelo sentimento do anti-petismo, do combate à corrupção e à criminalidade. Esta demanda contingente desaguaria em Jair Bolsonaro, que melhor representava aquela pauta. Uma outra vertente ressalta que o eleitorado nacional, na verdade, sempre foi conservador. O ex-capitão logrou apenas fazer emergir esta disposição latente, após anos de submersão nos governos do PT. Por fim, também é recorrente o argumento de que em 2018 as preferências expressas do eleitorado foram influenciadas por fake news disseminadas pelas redes sociais.
No entanto, devemos estar atentos aos limites dessas explicações. Primeiro, em 2018, o presidente eleito teve mais votos entre os mais ricos, escolarizados, homens e moradores do Sudeste-Sul, ou seja, um grupo que não pode ser dito que tenha mais sofrido com a crise econômica. Se o segundo turno fosse confinado ao eleitorado com até fundamental completo, Fernando Haddad seria eleito com 55% dos votos válidos, segundo estimativa da rodada do Datafolha que foi à campo na véspera da eleição (Cesop, 2022a)[2]. Restringindo a amostra apenas às pessoas com até 2 S.M. familiares, o candidato petista abriria margem ainda maior, com 58% dos votos.
Esta distribuição não deveria surpreender, dado o histórico de Bolsonaro de crítica aos programas sociais direcionados aos mais vulneráveis -notadamente o Programa Bolsa Família (PBF), em contraposição às ações do PT, que não apenas criou ou expandiu políticas públicas formuladas pelo PSDB, como construiu uma plataforma em torno dessa bandeira, diferente de seu tradicional adversário tucano (Simoni Jr., 2022).
Segundo, a explicação pautada pelos sentimentos ou demandas do eleitorado não pode nos levar a considerar que eleitores formam sua preferência de maneira totalmente autônoma. Seria uma ingenuidade considerar que os cidadãos observam livremente seu contexto pessoal e geral, formulam de forma puramente endógena uma interpretação e uma demanda, para a qual aos candidatos cabe apenas se amoldar. Preferências são, em certa medida, formatadas pelas elites políticas (englobando nessa categoria não apenas os partidos políticos, mas também a mídia, atores do sistema de Justiça, elites econômicas, militares etc.).
Terceiro, o fato de que parcela relevante do eleitorado se autolocalize à direita, ou esposa pautas conservadoras, não diz nada sobre o peso dado à ideologia vis-à-vis outros fatores na decisão do voto. Este ato constitui uma síntese de pressões cruzadas que apontam para direções diversas. Quarto, a maioria dos estudos sobre os efeitos das fake news mostram seus limites em persuadir eleitores, em alterar sua preferência eleitoral, incidindo mais fortemente no reforço de posições políticas prévias.
A compreensão da eleição de Bolsonaro em 2018 e os contornos do próximo pleito certamente englobam elementos apontados acima, mas carregar as tintas nessas dimensões acaba por obliterar um aspecto básico para compreender a decisão do voto: a avaliação do que governos fazem ou fizeram (ou deixam ou deixaram de fazer), e da credibilidade das propostas apresentadas pelos candidatos.
A disputa de 2018 ocorreu em um quadro totalmente diferente das eleições presidenciais de 1994 a 2014: Dilma Rousseff enfrentou baixos níveis de popularidade desde o princípio de seu segundo mandato, e, destino melhor não teve o governo Michel Temer, que assumiu após o processo de impeachment. Parte da avaliação ruim se deveu à forte crise econômica que abateu o país principalmente em 2015 e 2016, e outra parte aos escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava-Jato, que contava com forte apoio da mídia e da opinião pública – pesquisa Datafolha de abril de 2018 indicava que 84% defendiam que a Operação deveria continuar.
No entanto, as duas dimensões não podem ser dissociadas. Na narrativa política construída, a corrupção era a principal causa da crise econômica, e a ela, contribuía, -principalmente, mas não apenas-, o PT e todos os partidos brasileiros. Este discurso tinha sinais de credibilidade aos olhos de boa parte da população, dada a concomitância temporal entre as operações da Polícia Federal, a queda do PIB e o aumento do desemprego e da inflação. Além disso, saltava aos olhos a contradição entre o discurso da campanha e as decisões de Dilma, tanto em política econômica quanto em política social, ao iniciar o ajuste fiscal (sem ter o apoio consistente de seu próprio partido), reforçado na administração de seu ex-vice.
Não à toa, não apenas diversos dos principais cardeais do governo Temer não foram (re)eleitos, como Romero Jucá, Bruno Araújo, Mendonça Filho, André Moura, Roberto Freire, além evidentemente do próprio presidenciável Henrique Meirelles, como o PSDB, que por 4 pontos percentuais não conquistou a cadeira presidencial em 2014, viu derreter fortemente seu capital político, muito provavelmente pela vinculação com o governo Temer e pelo escândalo que atingiu Aécio Neves.
Ao contrário do seu adversário tradicional em sete disputas, o PT foi historicamente capaz de criar raízes fortes no eleitorado, de modo que mesmo com toda a punição jurídica e eleitoral que sofreu nas disputas municipais de 2016 – quando perdeu 60% das prefeituras conquistadas em 2012-, e mesmo tendo seu líder carismático preso e impedido de participar do pleito de 2018, elegeu a maior bancada na Câmara, o maior número de governadores de estado e amealhou mais de 47 milhões de voto para presidente. No entanto, não foi o suficiente para deter a subida de Bolsonaro ao Planalto
No final de 2019, após um ano de governo, o perfil social da avaliação do governo continuava semelhante ao da eleição, segundo Datafolha (Cesop, 2022b). Ou seja, Bolsonaro tinha maior suporte em homens de maior renda, escolaridade, brancos e moradores das regiões ricas – a bem da verdade, pessoas evangélicas representavam um flanco a favor do governo no eleitorado de maior vulnerabilidade. E logo veio a pandemia.
A necessidade de isolamento social e, logo, de diminuição ou paralisação de determinadas atividades econômicas, colocou na agenda o reforço ou criação de novos auxílios governamentais aos trabalhadores informais. Enquanto o Ministro da Economia Paulo Guedes planejava a criação de um benefício de R$ 200 para um grupo específico de trabalhadores já cadastrado, mas não beneficiário do PBF, o Congresso tomou a dianteira e pautou um Auxílio Emergencial mais robusto em termos de valor e do público elegível. Ainda que o montante de R$ 600, e de R$ 1200 para mães solo, tenha sido proposto por Bolsonaro, ele só o fez ao antecipar que o auxílio seria aprovado com relativa facilidade. Além disso, no dia em que foi promulgada a lei, seu filho e vereador Carlos Bolsonaro publicou no Twitter: “partimos para o socialismo. Todos dependentes do estado até para comer”. Dentro do Congresso, parlamentares de esquerda foram os que mais defenderam um benefício mais abrangente (Simoni Jr., Guicheney e Oliveira, 2021).
O Auxílio Emergencial atingiu 68 milhões de pessoas em 2020, desembolsando quase R$ 300 bilhões, um patamar que corresponde a 65% de todo o gasto com o PBF em 17 anos. No segundo semestre daquele ano, enquanto o Brasil era um dos países que mais sofreu com mortes por Covid-19 e o governo federal defendia práticas de combate à pandemia que iam na contramão da comunidade científica, pesquisas de opinião mostraram uma subida na avaliação positiva do governo (e uma queda na negativa), inclusive para patamares mais favoráveis em relação ao período pré-pandêmico. Diversos analistas defenderam que a política de transferência de renda estava rendendo dividendos de popularidade ao governo.
Uma nova versão do Auxílio Emergencial vigorou entre abril e novembro de 2021, com valores e cobertura muito mais limitados que no ano anterior. Quando se aproximava o final do terceiro ano de mandato, Bolsonaro substituiu o PBF pelo Auxílio Brasil, num movimento ensaiado há muito tempo, com diversas idas, vindas e desavenças na equipe governamental quanto ao desenho, valores, financiamento e mesmo ao nome do benefício – foram aventados Renda Brasil e Renda Cidadã, por exemplo. Não é descabido interpretar que a decisão de Bolsonaro pode ser entendida como uma forma de capturar os efeitos eleitorais do Bolsa Família.
No momento que escrevo este texto, está avançando no Congresso, após meses de alta inflação, especificamente no preço dos combustíveis, uma emenda constitucional que busca expandir o Auxílio Brasil e o vale-gás de cozinha, criar um auxílio para caminhoneiros e taxistas, dentre outras medidas, por meio da instituição de um estado de emergência, de modo a contornar as limitações legais à criação de novos benefícios em período eleitoral – bem como as restrições impostas pelo teto de gastos, pela regra de ouro e pela lei de Responsabilidade Fiscal. Chama atenção que a proposta contraria o discurso de fiscalista da equipe econômica e recebe o apoio da oposição.
Essas medidas seriam capazes de alavancar o apoio de Bolsonaro entre os mais pobres, de modo a vencer o pleito nas urnas (eletrônicas) de outubro? Por que a oposição não apenas apoiou como até liderou iniciativas de políticas sociais se é Bolsonaro que usufrui todos os créditos políticos?
Minha avaliação é que não se pode tratar a relação entre políticas sociais e voto de modo simplista. A transformação de auxílios em votos não é automática. A imagem de credibilidade, construída historicamente, é importante para selar o apoio dos beneficiários aos políticos. Mesmo no auge do Auxílio Emergencial, alguns analistas, inclusive trabalhos que estou elaborando, defenderam que o retorno em popularidade do presidente não foi estável nem elevado, principalmente quando se considera a magnitude que a política social assumiu, pois se tratou de uma medida que o Congresso construiu e que contraria a posição histórica de Bolsonaro sobre políticas sociais. Além disso, a pesquisa do Datafolha de maio de 2022 não mostrava força de Bolsonaro entre os beneficiários do Auxílio Brasil.
As sondagens atuais indicam que a disputa principal do pleito presidencial se dará entre o atual e um ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva. Neste cenário, – raro, diga-se -, o peso da avaliação de governo e da credibilidade das promessas, fatores padrão de decisão do voto em democracias, ganham ainda mais força. A instabilidade e a incerteza veem mais de parte das elites políticas, que ameaçam não aceitar o resultado em caso de derrota.
Referências
CESOP (2022a), Intenção de voto para Presidente – 2º turno – véspera. In: Banco de Dados do Centro de Estudos de Opinião Pública – CESOP-UNICAMP. Disponível em ˂https://www.cesop.unicamp.br/por/banco_de_dados/v/4393˃.
CESOP (2022b), Avaliação do Presidente Jair Bolsonaro – 1 ano. In: Banco de Dados do Centro de Estudos de Opinião Pública – CESOP-UNICAMP. Disponível em ˂https://www.cesop.unicamp.br/por/banco_de_dados/v/4551˃.
SIMONI JR., Sergio (2022). “Electoral Dividends from Programmatic Policies: Theoretical Proposal Based on the Brazilian Case”. Brazilian Political Science Review, vol. 16, n.1, pp. 1-42
SIMONI JR., Sergio; GUICHENEY, Hellen e OLIVEIRA, João Lucas Sacchi (2021). “O Congresso e a Renda Emergencial”. E-Legis – Revista Eletrônica Do Programa De Pós-Graduação Da Câmara Dos Deputados, vol.14, Edição Especial, pp. 164- 181.
[1] Professor de Ciência Política e Políticas Públicas da UFRGS.
[2] Esta pesquisa estimou 54,6% dos válidos para Bolsonaro, praticamente cravando o resultado oficial.
Referências imagéticas:
Montagem feita a partir de imagem da urna eletrônica brasileira. Disponível em <https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2022/09/12/urna-eletronica-e-utilizada-no-brasil-desde-1996>. Acesso em 16 set 2022.