Samira Feldman Marzochi[1]
Em vez de privilegiar o modus operandi dos aplicativos e plataformas digitais, a análise da subjetivação política contemporânea exige que pesquisadores e pesquisadoras se situem um pouco além das propriedades e dinâmicas dos softwares, no intuito de resistir à colonização da sociologia pelos imperativos tecnológicos. Embora o funcionamento, a capitalização, o alcance e a potencialidade das mídias devam ser considerados, é preciso evitar a sobrevalorização da tecnologia na análise. Em última instância, ela coincide com o discurso do mercado e nos faz, involuntariamente, substituir a crítica sociológica pela ideologia que atribui às mídias digitais um papel preponderante sobre as formas de pensar, sobre os valores e escolhas políticas.
O determinismo tecnológico, afinal, dispensa o escopo próprio da sociologia que é a busca por explicações sociocentradas e multifatoriais dos fatos sociais. Em contrapartida, a inscrição da análise sobre a subjetividade política contemporânea no quadro das referências teóricas de uma sociologia do inconsciente que considere, simultaneamente, as dimensões subjetivas e coletivas, poderia satisfazer esta exigência epistemológica.
A possibilidade de uma sociologia do inconsciente foi aberta pela obra durkheimiana e seus desdobramentos teóricos por meio da psicanálise, antropologia e filosofia. A elaboração do conceito de fato social, por Durkheim, como “coisas” exteriores aos indivíduos, dotadas de objetividade e poder coercitivo sobre as consciências individuais, revela que o descentramento, na sociologia, é seu pressuposto fundante e perfeitamente complementar ao descentramento psicanalítico. Durkheim descobre o caráter inconsciente das representações coletivas e prepara o caminho para o encontro entre a sociologia e a psicanálise que Freud, Lévi-Strauss, Lacan, Foucault, Deleuze e Guattari, entre outros, levarão adiante.
A pesquisa, então, voltar-se-ia às relações sociais constitutivas dos sistemas de comunicação, como as novas relações entre espaço e tempo referidas a contextos históricos, econômicos, políticos e culturais mais abrangentes. A primazia da categoria espaço, a instantaneidade, a simultaneidade, a onipresença, a imanência, a fragmentação e a ausência de profundidade não seriam, portanto, características determinadas pelo uso pessoal das mídias digitais, mas se encontram na base da sociedade em virtude de suas formas de organização produtiva, política e cultural predominantes.
Nem promotoras da liberdade e da democracia, nem entraves à comunicação, as mídias são apropriadas pelos indivíduos de maneiras singulares, ainda que ofereçam limites à sua utilização e que elas próprias se apropriem dos usos que eles fazem delas. São as relações sociais, inclusive aquelas digitalmente mediadas, que determinam as referências tempo-espaciais dos indivíduos.
Com a passagem do fordismo à “acumulação flexível”, que acentua os traços subjetivos da modernidade industrial, os indivíduos experimentam novas relações entre espaço e tempo. O espaço social contemporâneo, que denominei “ciberespaço”, configura-se como um contexto sociológico relativamente original referido a combinações espaço-temporais particulares. Estruturado como linguagem, constitui-se do entrecruzamento de técnicas, imagens, sistemas, redes, interesses, desejos, capitais, códigos e línguas em que estaríamos todos mergulhados; é a nossa realidade comum onde o simbólico e o imaginário dificilmente se distinguem.
Neste ambiente que se caracteriza pelas exigências de adaptação, flexibilidade e sociabilidade, dissolvem-se os projetos de futuro. A noção de sentido da história apreendido pela razão, é substituída pela metáfora online, que traduz o aqui-agora contínuo tendente a aderir ao “tempo real” do território. Ao contrário da individuação possibilitada pela temporalidade, tem-se a adesão identitária ao grupo que, na forma contemporânea, corresponde à lógica do consumo. A tradição se oferece como referência fundamental para luta pela cidadania, invalidando as antigas oposições entre “progressismo” e “tradicionalismo” como balizas ideológicas da orientação política.
A obsessão pela afirmação da identidade percebida como autêntica e eterna, sem a qual o indivíduo se sente despossuído e privado de valor, revela-se um sintoma das novas relações tempo-espaciais. Passamos do ideal iluminista de emancipação individual para o de pertencimento integral ao grupo, à comunidade étnica, religiosa, partidária ou de gênero, sem encontrar o ponto de equilíbrio entre os dois extremos.
Todavia, é na dimensão simbólica e temporal da linguagem onde se dá a emergência do sujeito constituído pelo que escapa à autodefinição consciente da identidade pessoal. O sujeito não é o que o indivíduo afirma ser, mas o que sobra do corte realizado pelos signos. Na conversação, prática relacional, ele emerge como algo impreciso que se delineia, progressivamente, com o tempo e pelo reconhecimento do outro.
Ao desdobrar-se na temporalidade, a conversação é capaz de alterar a percepção tempo-espacial dos indivíduos, pois cada sujeito constituído neste processo é um ponto de vista descentrado. O processo de subjetivação se faria de uma dialética circularidade entre o estranhamento e o retorno a si, a partir do outro que pode ser tanto o Outro de si mesmo, quanto o outro indivíduo, uma vez que ambos são pontos transcendentes que se oferecem à reflexão e auto-observação, e que um outro indivíduo é sempre o Outro de si mesmo.
Evidentemente, as mídias digitais não atendem às exigências de mediação de uma “esfera pública”, e sim aos interesses de capitalização. Mas podem, entretanto, viabilizar o descentramento próprio do diálogo, quando o indivíduo se descola de sua conformação identitária para a comunicação com o outro por meio de estruturas simbólicas que estão além deles, num plano conceitual que ultrapassa as consciências. Se a fragmentação é um dos efeitos da primazia pós-moderna do espaço sobre o tempo, o descentramento subjetivo inverteria os termos, subordinando o espaço à temporalidade.
O tempo a que o descentramento corresponde, no entanto, não é o puramente cronológico, mas o “tempo lógico” capaz de distinguir os momentos da observação, da interpretação e da síntese; aquele que se inicia nas impressões, depois compreende e, por fim, conclui. Embora o ponto de partida do diálogo sejam as representações individuais e sensíveis, as imagens, sensações e impressões, o sujeito se situa entre a localização histórica e a estrutura simbólica que a transcende, o que permitiria afirmar que, a rigor, todo sujeito é descentrado.
Na vida cotidiana mediada pelas tecnologias digitais, a manifestação mais evidente da ausência de descentramento é a compulsão classificatória e a incapacidade de dissociar o conceito da imagem acústica. Quando o significante se cola ao significado, impõe-se o narcisismo do imaginário, a dificuldade de perceber o interlocutor e seu conteúdo linguístico como alteridades, e não meros reflexos ou extensões de si. Este é o período histórico em que a crítica da modernidade se combina ao antiuniversalismo político e ao anti-humanismo filosófico, e em que as grandes narrativas são substituídas por diversas pequenas narrativas que falam do passado e do presente, mas não se dedicam ao futuro.
Em momentos de crise econômica, política e social, predomina o espaço sobre o tempo, o imaginário sobre o simbólico, os significantes sobre os significados, o descentramento dá lugar à fragmentação e o sujeito ao indivíduo. Diluem-se as demarcações entre o público e o privado, as religiosidades se fortalecem, a cultura autoritária dissolve os valores democráticos, a identidade do grupo se torna mais viva que a noção de cidadania e os direitos e deveres se esvaem em favor dos afetos.
Uma análise do conteúdo publicado nas diversas mídias, sobretudo das conversas espontâneas nas redes digitais, não poderia prescindir destes pressupostos teórico-metodológicos. A interpretação literal dos textos prejudica a apreensão dos interlocutores e a compreensão de seus contextos culturais e políticos, pois supervaloriza a dimensão imaginária contida nos argumentos e nas emoções que eles suscitam.
É sabido que as palavras ultrapassam os limites da experiência pessoal e da consciência, e exprimem significados que fogem ao controle dos falantes. Portanto, é pelo encontro dos conceitos que escapam aos significantes que o indivíduo reconhece o outro e a si mesmo. O pesquisador deve, então, conduzir-se como um interlocutor descentrado que, no “tempo lógico”, consegue superar o primeiro impulso classificatório e se esquivar das técnicas quantitativas e taxonômicas que tomam os significantes como dados objetivos antes de problematizá-los.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
[1] Mestre e doutora em Sociologia pela Unicamp, com doutorado-sanduíche pelo Programa Capes-Cofecub-Paris VII, pós-doutora pelo PPGS/Unicamp e PPGPol/UFSCar. É docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar. Coordena o Núcleo de Estudos em Ambiente, Cultura e Tecnologia (Namcult). E-mail: marzochi@gmail.com
Fonte Imagética: Disponível em: <https://unsplash.com/photos/EQSPI11rf68>. Acesso em: 16 set 2022.