Soraia Marcelino Vieira[1]
Quando se fala em eleição não se pode deixar de falar em partido político, um ator central no processo eleitoral e fundamental nos regimes democráticos. Geralmente, as preocupações acerca deste ator giram em torno de seu comportamento frente à competição política, mas é importante, também, voltar o olhar para sua estrutura interna, principalmente para questões relacionadas à transparência, ética e processos de escolha de candidatos/as. O que se pretende destacar aqui é a importância de dialogar com questões referentes à democracia interna dos partidos políticos brasileiros, especialmente em ano eleitoral.
No atual contexto, no qual a legitimidade destes atores tem sido frequentemente questionada e os níveis de confiança neles têm declinado, como é possível observar nas rodadas mais recentes do Latinobrarômetro (Latinobarômetro, 2020), faz-se mister compreender como os partidos têm lidado com questões relativas à democracia interna. Apesar de todo debate envolvendo esses atores, inclusive questionando sua importância, seu papel e atuação nas democracias contemporâneas, eles continuam sendo cruciais nos regimes democráticos. Os partidos políticos assumem uma função vital para o funcionamento do Estado e da democracia de um país, uma vez que tornam operativo o sistema político, entrelaçando a sociedade e o Estado. Neste sentido, é importante discutir não apenas seu papel na competição política, mas também sua estrutura e democracia interna.
Os partidos possuem diferentes metas. Entre elas estão ganhar eleições, definir políticas, articular e representar interesses, mobilizar e socializar politicamente cidadãos e cidadãs, recrutar elites e formar governos. A democratização poderia ser uma das metas fundamentais do partido.
Com o avanço da democracia, novas formas de atuação dos atores políticos e sociais foram sendo incorporadas, o que aumentou a demanda por mais participação, também, nos processos de tomada de decisão e na política, de modo geral. Processo análogo acontece nos partidos políticos, cujos membros têm manifestado interesse em participar nos diferentes âmbitos que são vitais para a organização. A democracia interna dos partidos fortalece a ordem democrática, uma vez que promove, frente à cidadania, um senso de eficiência e pode encorajar a participação política (Scarrow, 1999), requisito indispensável para a consolidação da democracia.
Frente ao novo contexto e às adversidades com as quais se deparam os partidos políticos, uma das soluções para restabelecer a confiança dos eleitores é buscar uma reaproximação com seus militantes e com cidadãos e cidadãs. Essa é uma das mais importantes questões que as organizações partidárias enfrentam no atual contexto, tornar-se mais democrático pode ser uma medida que ajude a solucioná-la. Democratizar-se é um dos grandes desafios que os partidos enfrentam, como já apontavam Diamond e Gunther (2001).
Uma das maneiras de analisar a democracia interna dos partidos é elencar dimensões que sinalizam esse processo, as quais podem ser avaliadas observando seu posicionamento público. Neste sentido, uma das estratégias adotadas é a consulta aos seus documentos em busca dessas dimensões de democratização, entre os quais chama-se a atenção para os estatutos e suas páginas na internet. Os estatutos do partido são sua cara pública, e devem ser acessíveis aos cidadãos. Embora seja sabido que, em muitos casos, as relações informais exercem grande influência na vida partidária, sendo, em diferentes ocasiões, o que realmente move a instituição, os estatutos são um importante sinalizador do posicionamento dos partidos e um indicador relevante de sua democratização, e as páginas da internet são a maneira mais rápida de se comunicar com os filiados e eleitores.
Para analisar a democracia interna podemos pensar em cinco dimensões: a) funcionamento interno; b) direitos dos/as afiliados/as e sua proteção; c) informação dos partidos aos cidadãos e cidadãs; d) códigos éticos; e e) sistema de seleção de candidatos/as a cargos públicos. Atualmente no Brasil encontramos 23 legendas na Câmara dos Deputados. Analisando os documentos dessas legendas podemos constatar a presença ou ausência de critérios relacionados a essas dimensões.
A dimensão Funcionamento Interno está presente nos estatutos dos 23 partidos. Esta dimensão envolve elementos imprescindíveis para a existência do partido e para seu funcionamento, contemplando, principalmente, aspectos observados nas normas organizadoras da vida interna da instituição. O que se observa, nos partidos brasileiros, é a forte centralização do poder e controle dos órgãos superiores em relação aos órgãos inferiores. Além disso, os sistemas de seleção para cargos diretivos apresentam um caráter altamente oligarquizado.
Informações dos Partidos aos Cidadãos e Cidadãs também foram encontradas em todos os partidos. Essa dimensão está relacionada à publicidade de informações relacionadas à organização e estrutura do partido tanto aos filiados como à cidadania em geral. Nesta dimensão cabe destacar que todos os partidos possuem página na internet, contudo as informações que disponibilizam são variadas. Apenas dois partidos disponibilizam o programa eleitoral na página, e em nenhum deles há uma análise do grau de cumprimento do programa eleitoral.
Diretos dos/as Afiliados/as é outra das dimensões presente em todas as fontes analisadas. Essa dimensão também é fundamental para o partido, uma vez que se associa com a relação entre os/as afiliados/as e a organização. Trata-se da defesa de direitos frente às decisões das direções dos partidos, além de demonstrar a autonomia que os/as afiliados/as podem ter em relação à Direção Central para manifestar suas opiniões, e a garantia de que os conflitos serão resolvidos de forma institucionalizada e não pessoal. O que se observa é que não há na estrutura dos partidos, de acordo com as fontes observadas, a figura de um defensor dos/as afiliados/as ou comissão de garantias dos direitos dos/as associados/as.
Questões relacionadas aos Códigos de Ética estão presentes em todos os estatutos. Não obstante, os códigos de ética estão presentes na página web de apenas seis partidos (26% dos casos). Essa dimensão se destaca por enfocar a existência e publicidade de códigos de comportamento ético, prevendo, por exemplo, a existência de um código de ética e sua publicação em espaços acessíveis a todos/as filiados/as do partido. Nela também se observa a presença de mecanismos para denúncia de corrupção e a garantia de anonimato no caso de denúncia. Essa dimensão é importante pois explicita os princípios éticos do partido e os procedimentos para denúncia em caso de descumprimento deles. Nenhum dos documentos apresenta mecanismos de denúncia de corrupção e em apenas um deles o anonimato no caso de denúncia de irregularidade é uma garantia estatutária.
A dimensão menos frequente nas fontes é a de Sistemas de Seleção de Candidatos/as a Cargos Públicos (encontrada apenas em 17% (quatro dos casos)). Ainda assim, quando mencionadas se apresentam de forma ambígua e pouco específica. A ausência desta dimensão em 19 dos 23 documentos sinaliza para o grau de discricionariedade que os dirigentes partidários têm na escolha dos candidatos. Ou seja, pelo observado, é possível inferir que tal escolha se dá muito mais por mecanismos informais que institucionalizados.
Não obstante o caráter representativo e coletivo dos partidos políticos, é possível observar que seus estatutos e suas páginas web apresentam mais informações ligadas a questões relacionadas à organização interna e estrutura que àquelas relacionadas a questões éticas. Estudos sobre a temática apontam um processo de elitização, no qual uma cúpula concentra o controle da vida partidária e das decisões da instituição (ALCANTARA & CABEZAS, 2013; RIBEIRO, 2013; GUIMARÃES et all, 2019), o que as torna mais oligárquicas e menos democráticas. Esse fenômeno tem sido observado em partidos de diferentes países, e no Brasil não tem sido diferente.
Em um contexto em que se observa a crescente descrença nessas instituições e no qual não são poucas as denúncias de irregularidades e corrupção encabeçadas por partidos políticos, o que observamos é a concentração de poder e decisão na cúpula e a pouca publicidade de questões relacionadas à ética e a escolha de candidatos, por exemplo.
Em um momento no qual tanto se discute acerca de democracia é importante observar como os atores que entrelaçam sistema político e sociedade têm se deparado com a temática internamente. A proposta aqui é apresentar os problemas relacionados à democracia interna dos partidos políticos brasileiros. Analisando os estatutos e as páginas web dos partidos que o que se observa é a cúpula do partido controlando a organização e inviabilizando a participação mais ativa da organização. Em um contexto eleitoral, no qual os partidos tomam centralidade no debate público é importante problematizar questões relativas à sua democracia interna a fim de se discutir questões que ultrapassam as estruturas dessas instituições e acabam impactando no sistema político e, inclusive, no sistema democrático.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências
ALCANTARA, Manuel. & Cabezas, L. Selección de candidatos y elaboración de programas en los partidos políticos latinoamericanos. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2013.
DIAMOND, Larry and GUNTHER, Richard. Political Parties and Democracy. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2001.
GUIMARÃES, A. R. S., RODRIGUES, M. R. and BRAGA, R. de J. A oligarquia desvendada: organização e estrutura dos partidos políticos brasileiros. Dados, v. 62, n. 2, e20160046, 2019. ISSN: 0011-5258 [viewed 11 November 2019]. DOI: 10.1590/001152582019181. Available from: http://ref.scielo.org/wq6gjq
Latinobarômetro, 2020. Informe 2021. Disponível em https://www.latinobarometro.org/latContents.jsp. Acesso em 01/08/2022.
RIBEIRO, P. F. Organização e poder nos partidos brasileiros: uma análise dos estatutos. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 10, p. 225-265, 2013.
SCARROW, Susan E. Parties and the Expansion of Direct Democracy: Who Benefits? Party Politics, 5 (3): 341 – 62. 1999.
[1] Doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Professora Adjunta na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: soraiamv@id.uff.br
Fonte Imagética: Montagem a partir dos símbolos oficiais dos partidos políticos listados no sítio da Câmara dos Deputados.