Carolina Arouca Gomes de Brito[1]
Thiago da Costa Lopes[2]
Em artigo publicado no número 115 da revista Lua Nova, intitulado “Saúde, desenvolvimento e interpretações do Brasil: uma análise da perspectiva sociológica de Carlos Alberto de Medina”, os autores analisam o pensamento de Carlos Alberto de Medina e sua inserção no campo das ciências sociais no Brasil. Assim, indicam como a obra e a trajetória do sociólogo, ainda pouco conhecidas e estudadas, constituem uma rica fonte para a compreensão dos debates, característicos dos anos 1950 e 1960, sobre as relações entre doença, pobreza, subdesenvolvimento e autoritarismo.
O artigo aborda os anos iniciais de Medina como sociólogo, assinalando como parte significativa da sua formação e de sua atuação profissional tiveram lugar em contextos outros que não a universidade, em particular o mundo das políticas públicas e de diferentes agências devotadas à agenda do desenvolvimento. Neste particular, a parceria de Medina com o sociólogo rural José Arthur Rios foi decisiva. Ao lado de Rios, ele realizou levantamentos sobre as populações da zona rural brasileira, chamando a atenção para o modo como as fissuras sociais no campo constituíam forte obstáculo à promoção da educação rural e da educação sanitária, especialmente entre as camadas pobres. A reflexão sociológica de Medina, inicialmente voltada para a vida rural, estendeu-se às favelas dos centros urbanos no final dos anos 1950, tocando novamente na questão das desigualdades. Para o sociólogo, o processo modernizador brasileiro se mantinha refém de problemas sociais e econômicos oriundos do mundo rural, o que implicava a perpetuação de uma ordem desigual e autoritária.
Comunidade rural e fissuras sociais
José Arthur Rios teve considerável ascendência intelectual sobre Medina em seus primeiros passos no mundo das ciências sociais. Rios foi um dos veiculadores, no Brasil, das técnicas de organização de comunidade, esta última entendida não apenas como uma estratégia para se chegar ao desenvolvimento socioeconômico, mas como um ideal de civilização, baseada nos princípios de cooperação e harmonia entre os grupos humanos. Entre 1951 e 1953, Rios foi coordenador da Campanha Nacional de Educação Rural (CNER), lançada pelo Ministério da Educação e Saúde com o objetivo de aplicar os princípios da educação de adultos e da educação de base, que ganhavam destaque nos fóruns internacionais, às populações rurais brasileiras. Tratava-se de uma política destinada a elevar os padrões e níveis de vida do homem do campo, infundindo-lhe noções básicas de trabalho, economia doméstica, nutrição, higiene e civismo, a partir do estímulo à participação social e à mobilização de recursos locais pelos próprios habitantes.
Em 1952, Medina participou dos dois primeiros cursos de formação de técnicos em Missões Rurais da CNER, sob a coordenação de Rios, e realizou estudos no interior de São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. No ano seguinte, colaborou nas pesquisas do movimento Economia e Humanismo, capitaneado pelo frei dominicano francês, Louis-Joseph Lebret, conhecido por defender uma via que acreditava ser alternativa aos regimes econômicos em confronto na arena internacional, destinada à “humanização” das estruturas socioeconômicas da modernidade.
Nos anos posteriores, Medina e Rios atuaram no Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), agência nascida do acordo de cooperação entre Brasil e EUA durante a Segunda Guerra Mundial e inspirada no modelo norte-americano de saúde pública e medicina preventiva. Medina realizou levantamentos para o órgão a fim de indicar as localidades mais propícias ao desenvolvimento dos serviços de saúde. Também conduziu estudos com o intuito de avaliar a adequação dos materiais e estratégias de educação sanitária à realidade socioeconômica das populações rurais. Conforme as diretrizes então postas em marcha pelos organismos internacionais e adotadas pelo SESP, era preciso compreender de que forma o homem do campo poderia absorver as concepções e práticas da medicina científica a partir de uma forma de desenvolvimento local autossustentado, baseado em sua participação na elaboração e implementação dos programas de saúde. Na produção do sociólogo desse período, transparece a preocupação com aqueles que seriam os obstáculos à organização de comunidade pensada nestes moldes, como as relações desiguais entre as classes sociais, uma tradição política paternalista e autoritária e o tênue espaço existente para o exercício de cidadania entre os segmentos empobrecidos. Nos textos de Medina, a passividade e o conformismo desses grupos diante de sua situação de privação material e doença vêm à tona, sendo interpretadas como o resultado de uma cultura da escassez e da subordinação cujas raízes remontariam a uma dinâmica societária fortemente hierarquizada, presa ao latifúndio senhorial.
À semelhança de outros cientistas sociais vinculados ao SESP, Medina acabou interpelando de maneira crítica a tese, então em voga, de que ações em educação e saúde poderiam impulsionar o desenvolvimento socioeconômico das comunidades, chamando a atenção para os limites estruturais daqueles modelos de intervenção. Para o sociólogo, a transformação do quadro sanitário das populações rurais só ocorreria se os programas de saúde estivessem associados a planos mais abrangentes envolvendo a mudança nas estruturas fundiária e social do país. As estratégias de educação sanitária dificilmente poderiam lograr êxito frente ao quadro de pobreza e acanhamento característicos do homem do campo. Em última análise, o próprio processo de mudança sociocultural no campo estaria comprometido caso os incrementos em infraestrutura e tecnologia que começavam a ser experimentados na agricultura e nas zonas rurais em geral não se fizessem acompanhar do alargamento da esfera da participação social e da elevação dos níveis de vida das massas.
A favela e os nexos entre rural e urbano
Em seus estudos para o SESP, Medina observa que a construção de estradas cortando o país, assim como a decadência econômica das grandes áreas de cultivo no Nordeste brasileiro, que vinham sendo substituídas por pastagem, faziam-se acompanhar de ondas migratórias de trabalhadores para os pequenos e grandes centros urbanos e do estrangulamento dos serviços médicos das cidades. O sociólogo nota que os antigos laços de dependência entre as camadas populares e as elites, em crise no antigo mundo rural, pareciam se refazer no novo contexto urbano. As lideranças políticas das cidades apelavam para os programas cooperativos em saúde do SESP, como forma de aumentar a margem de recursos destinada à prática clientelística da distribuição de favores entre as massas empobrecidas, o que contribuía para mantê-las em uma situação de menoridade política.
Aos olhos de Medina, as favelas das metrópoles brasileiras surgiam precisamente na esteira de um processo acelerado de urbanização e industrialização do país incapaz, contudo, de quitar suas dívidas com o passado rural desigual. A reflexão do sociólogo sobre esses aglomerados urbanos se produziu no âmbito de pesquisa da Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (SAGMACS) realizada em fins dos anos 1950, no Rio de Janeiro, sob a supervisão do frei Louis-Joseph Lebret. O estudo, encomendado pelo jornal O Estado de São Paulo, deu origem ao relatório “Aspectos humanos da favela carioca”, originalmente publicado em duas edições daquele periódico. Enquanto Rios, então à frente do escritório da SAGMACS no Rio de Janeiro, dirigiu o plano geral das investigações, Medina ficou responsável pela coordenação de parte dos trabalhos de campo. Durante dois anos, as equipes de pesquisadores realizaram o levantamento de dados socioeconômicos e demográficos de doze grandes favelas do Rio de Janeiro, buscando estabelecer os níveis de vida, educação e saúde de suas populações e delinear o perfil sociológico das mesmas.
Conduzida por estudiosos da sociologia rural afeitos à análise das condições de vida das populações do hinterland brasileiro, a pesquisa da SAGMACS tendeu a enfatizar os nexos que ligavam as favelas ao mundo rural. O estudo parece interessado em sublinhar como o processo de modernização que o país atravessava na década de 1950 reintroduzia nas áreas urbanas as desigualdades sociais encontradas no campo. Resultado de alta demanda não atendida por moradia próxima aos locais de trabalho, e composta em grande medida por aquilo que os autores do relatório denominam “pária rural”, as favelas tenderiam a reproduzir os déficits educacionais, sanitários e cívicos de caipiras e caboclos brasileiros. O “rural” se fazia notar nesses espaços pela preponderância, entre outras, de práticas e concepções da medicina popular ou de “folk”, com seus curandeiros e rezadeiras, e de índices alarmantes de mortalidade infantil e doenças infecciosas. À maneira do homem do campo, seus moradores acabavam se apoiando em agentes políticos externos na busca de assistência e recursos, o que contribuía para que as relações de subordinação, nascidas no latifúndio, se perpetuassem em meio ao cenário de urbanização e industrialização. Este era o caso do problema da falta d’água, para cuja solução concorria o “político demagogo”, ator que se mostrava como “pai” ou “padrinho” protetor e benevolente, dispensando benesses, como a construção de bicas públicas, a fim de angariar votos.
A modernização brasileira e os riscos à democracia
Apesar de apontar para a reprodução, no contexto urbano, das relações de dependência e dominação personalista típicas do mundo rural, fenômeno que punha em xeque a consolidação do regime político democrático no país, restituído ao final do Estado Novo, o estudo da SAGMACS conclui com uma visão otimista. O instituto do voto daria ao morador de favela relativo poder de barganha por meio do qual ele poderia se alçar a melhores condições de vida, pondo-se em condições sociais mais propícias à ação política cidadã. O incentivo à auto-organização da população por meio da criação de centros de convivência e associações de moradores, poderia contribuir para a inserção autônoma desses atores no mundo da política e dos direitos.
No opúsculo “A favela e o demagogo”, escrito alguns anos depois do estudo da SAGMACS, Medina irá retomar o problema da transformação dos moradores das favelas em sujeitos políticos, examinando com ceticismo os efeitos da forma como a urbanização e a industrialização se processavam no contexto brasileiro sobre os destinos da democracia no país. Publicado na conjuntura de forte polarização ideológica que antecedeu o golpe militar, e em meio à tentativa do governo João Goulart em obter apoio diretamente na sociedade e em movimentos populares para a instituição das denominadas reformas de base, o texto argumenta que a escalada das demandas populares provocada pelo processo modernizador, combinada a um persistente quadro de relações políticas clientelísticas, punha em xeque o regime democrático. Segundo Medina, no esforço de acompanhar o movimento ascendente das reivindicações sociais, o demagogo tradicional corria o risco de assumir a forma de uma liderança política radical, avessa aos ritos e processos institucionais. Ao mesmo tempo, o sociólogo é reticente quanto à possibilidade de canalização das forças sociais nas favelas, no sentido da auto-organização comunitária, observando o quadro socioeconômico complexo e heterogêneo de suas populações, atravessadas por diferentes formas de laços sociais, horizontais, mas também verticais, internos e externos às localidades.
Os autores, ao abordarem a produção intelectual de um sociólogo pouco conhecido e discutido na história das ciências sociais, convidam ao reexame dos debates políticos e intelectuais travados pela sociedade brasileira no pós-Segunda Guerra, período cuja imaginação foi fortemente marcada pela ideia de desenvolvimento. Como o texto demonstra, cientistas sociais como Medina, longe de abraçarem sem reservas a crença em um percurso histórico linear para a modernidade no país, capaz de gerar efeitos sociais e políticos positivos incontornáveis, produziram diagnósticos sobre as mudanças experimentadas pela sociedade brasileira permeados por ponderações e matizes. Em discussão estava não apenas o aumento da produtividade econômica e a elevação dos níveis de vida, mas também a inserção dos segmentos empobrecidos, rurais e urbanos, à cidadania e a construção das condições sociais para o funcionamento da democracia.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
[1] Doutora em História das Ciências e da Saúde, COC-FIOCRUZ/FAPERJ. Email: carolina.arouca@fiocruz.br.
[2] Doutor em História das Ciências e da Saúde, COC-FIOCRUZ/Pesquisador (PIDI). Email: lopes_47@hotmail.com.br.
Fonte Imagética: FIOCRUZ. Acervo do sociólogo Carlos Alberto de Medina será doado à Casa de Oswaldo Cruz. 20 abr. 2018. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/acervo-do-sociologo-carlos-alberto-de-medina-sera-doado-casa-de-oswaldo-cruz>. Acesso em: 30 jul. 2022.