Gustavo Taniguti[1]
A história das ciências sociais brasileiras abrange a participação de seus pesquisadores em atividades coordenadas pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) desde meados do século vinte. Na realidade, em países latinoamericanos como o Brasil, Argentina, México e Chile, seria difícil conceber o estabelecimento profissional das ciências sociais alheio à força impulsionadora dessa organização (MAIO, 1999; BEIGEL, 2013; GRISENDI, 2014; DUEDAHL, 2016; CUTRONI, 2018).
Revisitar algumas dessas atividades nos possibilita melhor avaliar o intercâmbio entre domínios científicos em desenvolvimento, situados nos planos local e supranacional, logo após o fim da II Guerra Mundial. Entre as décadas de 1940 e 1950, a UNESCO financiou diversos estudos e inaugurou espaços institucionais dedicados (associações, periódicos, congressos) que interligaram domínios científicos nacionais, promovendo assim mais dinamismo e maior alcance ao conhecimento sociológico e antropológico.
No artigo Internacionalização das ciências sociais: a sociologia paulista e o Projeto Tensões da UNESCO, publicado na revista Contemporânea (UFSCar), apresento a história de um projeto internacional, conduzido entre 1947 e 1955, que incluiu a realização de pesquisas empíricas no Brasil. Ele originou os estudos da psicanalista Virgínia Leone Bicudo (1910-2003) e do sociólogo Hiroshi Saito (1919-1983) sobre estereótipos, tensões e conflitos étnico-raciais. Orientado pelo viés reconstrucionista da UNESCO, esse projeto também procurou validar a aplicação de instrumentos de pesquisa supostamente universais, refletindo as aspirações universalizantes da prática científica daquela época. Descrevo seu percurso e seu desenvolvimento com o intuito de elucidar a participação desses dois autores no processo de internacionalização das ciências sociais brasileiras do pós-guerra.
O Projeto Tensões
O Projeto Tensões foi um dos principais projetos de pesquisa conduzidos até os anos 1950 pelo Departamento de Ciências Sociais da UNESCO, inaugurado em 1946 (SIX, 2021). Cabe destacar que, sob a influência desse departamento, uma parcela considerável de cientistas sociais de diversos países passou a estudar o tema das “tensões sociais” que causam conflitos ou guerras. Isso ficou explícito no documento A Statement by eight distinguished social scientists on the causes of tensions which make for war (1948), assinado por Gilberto Freyre (1900-1987), ou mesmo no I Congresso Mundial de Sociologia, realizado em 1950 com o apoio da UNESCO.
Entre outros aspectos, os formuladores do Projeto Tensões almejaram introduzir, ao redor do mundo, certo modus operandi na realização de pesquisas científicas. Visavam com isso produzir estudos de casos − sobre nacionalismos, discriminação racial e estereótipos − que, ao final, pudessem evitar a ocorrência de conflitos. Assim, o Projeto Tensões foi apresentado enquanto um terreno comum para viabilizar uma proposta de universalismo científico de orientação pacifista. Seus produtos mais diretos foram obras como Tensions Affecting International Understanding (1951), de Otto Klineberg, e The Nature of Conflict (1957), organizado por Jessie Bernard, Tom Pear, Raymond Aron e Robert Angell. Em São Paulo, a execução do Projeto Tensões ocorreu pelas mãos de dois alunos do sociólogo estadunidense Donald Pierson (1900-1995): Virgínia Bicudo e Hiroshi Saito.
Otto Klineberg e os estudos da psicologia social
Em 1948, o psicólogo canadense Otto Klineberg, docente da Universidade de Columbia, assumiu a direção do Projeto Tensões. Antes disso, entre 1945 e 1947, ele havia lecionado na Universidade de São Paulo (USP) logo após a criação do Departamento de Psicologia da instituição. Naqueles anos, a UNESCO apostava na contribuição trazida pela psicologia social para a interpretação das relações raciais. Para isso, a agência promoveu a realização de estudos comportamentais (aceitação/recusa) dos estereótipos raciais – tema de especialidade de Klineberg.
Ademais, em fins dos anos 1940, a UNESCO incentivou a realização de estudos que pudessem evitar a ocorrência do preconceito racial. Nesse contexto, na Organização das Nações Unidas (ONU), era bem aceita uma visão segundo a qual a tolerância racial e a convivência harmoniosa seriam os padrões de sociabilidade dominantes no Brasil, contrapondo-se aos casos dos Estados Unidos e África do Sul (MAIO, 2007; MOTTA, 2007; MAIO, 2017). Restava então realizar pesquisas empíricas no Brasil que pudessem demonstrar tal característica singular.
Quando foi diretor do Projeto Tensões, Klineberg recomendou a realização de pesquisas comportamentais sobre preconceito racial em São Paulo. Sua execução caberia a uma jovem estudante que ele havia conhecido na Universidade de São Paulo: Virgínia Bicudo. Desde a sua dissertação de mestrado, defendida em 1945 sob orientação de Donald Pierson na Escola Livre de Sociologia e Política, Bicudo realizava estudos sobre estereótipos raciais (MAIO, 2010; 2015). Em 1948, participar de um projeto internacional era uma oportunidade singular para uma jovem pesquisadora negra em ascensão.
Virgínia Bicudo e o estudo dos estereótipos raciais
A pesquisa de Virgínia Bicudo só foi conduzida em 1951 e seguiu a proposta de Otto Klineberg, centrada nos aspectos psicoculturais das tensões. Ela foi intitulada Atitudes dos alunos dos grupos de escolares em relação com a cor dos seus colegas e posteriormente foi publicada como apêndice do livro Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo (1955), organizado por Roger Bastide (1898-1974) e Florestan Fernandes (1920-1995). Ao longo dos anos, este livro se consagrou como um marco para o estudo das relações raciais na sociologia brasileira.
Assim como ocorreu com a pesquisa de Bicudo, as pesquisas de Bastide e Fernandes, também publicadas naquele livro, haviam sido patrocinadas pela UNESCO. Entretanto, os dois últimos autores optaram por não seguir o viés comportamental oriundo da psicologia social, tão prezado por Klineberg. Para os dois autores, o preconceito racial assumia uma configuração distinta em São Paulo. Já em nível nacional, ele expressaria uma forma ligada às estruturas sociais mais amplas. Assim, seria necessário averiguar se no contexto urbano o preconceito ainda guardava relações com a antiga ordem escravocrata.
Em sua pesquisa, Bicudo buscou evidenciar os sentimentos e os mecanismos psíquicos de defesa manifestos nas atitudes relacionadas à cor. Foram realizadas entrevistas e aplicação de questionários em uma amostra de 4.520 alunos de escolas do município de São Paulo com idade entre 9 e 15 anos. A abordagem adotada buscou mensurar atitudes segundo critérios de preferências, assim como em auferir a intensidade de preconceitos.
Entre os argumentos desenvolvidos pela autora, é possível destacar o da baixa ocorrência de casos de preconceito racial de fato, pois os dados coletados indicaram a existência de poucas respostas dirigidas efetivamente por essa motivação. Foi o último trabalho de Bicudo sobre atitudes raciais. Desde então, ela se dedicou à psicanálise e se tornou uma referência central na área.
Tensões intragrupais: os estudos de Hiroshi Saito
O imigrante japonês Hiroshi Saito chegou ao Brasil nos anos 1930 para trabalhar em fazendas de café. Em 1947, ingressou no curso de Ciências Sociais da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, onde conheceu Donald Pierson, que viria ser seu orientador de mestrado. Saito também exerceu a profissão de jornalista, tornando-se um nome bastante conhecido no debate público sobre a imigração japonesa no Brasil. Em 1952, ele foi responsável por conduzir, no Brasil, uma pesquisa pertencente ao Projeto Tensões em parceria com o antropólogo japonês Seiichi Izumi.
Em 1951, o Departamento de Ciências Sociais Aplicadas da UNESCO deu continuidade à linha de estudos sobre estereótipos e nacionalismos – um dos pilares do Projeto Tensões. Foi quando a juventude japonesa se tornou tema de um survey, intitulado Atitudes da juventude japonesa − conduzido no Japão entre 1951 e 1952 pelo sociólogo Jean Stöetzel em parceria com pesquisadores da Universidade de Tóquio. O principal resultado desse estudo foi o volume intitulado Without the Chrysanthemum and the Sword (1957).
Os objetivos desse estudo eram encontrar respostas às seguintes questões: “em que se apoiam os jovens do Japão do pós-guerra e quais seus sentimentos e atitudes em relação às mudanças?”. Para os coordenadores do estudo Atitudes da juventude japonesa, o Brasil era um caso imperdível para atestar a ocorrência de mudanças atitudinais. No interior do estado de São Paulo, já haviam sido registrados diversos casos de “tensão” social motivado pela exacerbação do sentimento nacional japonês. Frações de imigrantes se recusaram a aceitar a derrota japonesa na guerra e promoveram atentados e assassinatos contra lideranças que reconheciam a derrota.
Nesse contexto, o antropólogo japonês Seiichi Izumi veio ao Brasil e convocou o jovem sociólogo Hiroshi Saito para a realização de pesquisas. Os pesquisadores aplicaram questionários a 637 entrevistados imigrantes japoneses de oito áreas representativas do país e buscaram argumentar que tais conflitos seriam casos excepcionais no processo de aculturação dos japoneses já em curso.
O estudo revelou ao público internacional o conflito entre imigrantes japoneses “derrotistas” e “vitoristas”, estes últimos que, passados alguns anos desde o fim da Guerra, ainda acreditavam na vitória do Japão. Foi notável o esforço dos autores em mostrar que tal conflito havia sido paradigmático, porém nada mais representaria do que uma exceção, uma interrupção temporária na transição de japoneses em brasileiros. Em suma, a pesquisa corroborou tanto o interesse da UNESCO em estudar a juventude japonesa do pós-guerra quanto a tese da inexistência do preconceito racial no Brasil.
Considerações finais
Os estudos de Virgínia Bicudo e Hiroshi Saito sobre tensões e estereótipos raciais são peças importantes no processo de desenvolvimento das ciências sociais brasileiras do pós-guerra. Por vezes omitidos das narrativas prevalecentes, eles representaram, no início dos anos 1950, a execução do Projeto Tensões da UNESCO em São Paulo. Trata-se de iniciativas que à época alcançaram, possivelmente, uma baixa repercussão acadêmica, o que delas não subtrai uma participação significativa na história disciplinar.
Além das contribuições trazidas pelos resultados obtidos, esses dois estudos nos informam como se estabeleceu a relação entre dois domínios científicos em desenvolvimento, situados nos planos local e supranacional, por meio de procedimentos e temas de pesquisa considerados universais. Ao examiná-los, argumento que a participação de brasilianistas e cientistas sociais brasileiros em ações da UNESCO merece ser constantemente revisitada.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências
BEIGEL, Fernanda (Org.). The politics of academic autonomy in Latin America. Routledge, 2013.
CUTRONI, Anabella Abarzúa. El poder simbólico de la Unesco en América Latina sobre el vínculo Flacso – Unesco. História da Educação, vol.22, n.55, 2018, p.244-259.
DUEDAHL, Poul (Org.). A History of UNESCO: Global Actions and Impacts. Palgrave macmillan, 2016.
GRISENDI, Ezequiel. El centro de la periferia: internacionalización de las ciencias sociales y redes académicas latinoamericanas. Manuel Diegues Junior y los avatares de la sociología del desarrollo. Revista Crítica e Sociedade, v. 4 n. 2, 2014, p.148-167.
MAIO, Marcos Chor. “Educação sanitária, estudos de atitudes raciais e psicanálise na trajetória de Virgínia Leone Bicudo”. Cadernos Pagu. 2010, n. 35, pp. 309-355.
______. “O projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, 1999 , p. 141-58.
______. “Medindo o preconceito racial no Brasil: Aniela Ginsberg e o estudo das atitudes raciais”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. 2015, v. 18, n. 4, pp. 728-742.
______. Modernidade e racismo: Costa Pinto e o projeto Unesco de relações raciais. In: PEREIRA, Claudio.; SANSONE, Livio. (Org.). Projeto Unesco no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007, pp. 11-24.
______. A Crítica de Otto Klineberg aos testes de inteligência. O Brasil como laboratório racial. Varia hist., vol.33, n.61, 2017, p.135-161.
MOTTA, Roberto. “Gilberto Freyre, René Ribeiro e o Projeto UNESCO”s. In: PEREIRA, Claudio.; SANSONE, Livio. (Org.). Projeto Unesco no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007, p. 38-62.
SIX, C. “Securing peace through scientific progress: Unesco’s Tensions Project (1947-1957)”. Paper presented at Peace History Society Biannual Conference, Kennesaw State University, Georgia, USA, Kennesaw, United States, 2021.
[1] Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Autor de Imigração, política e cultura: a trajetória empresarial da Cooperativa Agrícola de Cotia (Annablume, 2019). Este texto é resultado de pesquisa pós-doutoral financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e corresponde a uma versão de artigo publicado na revista Contemporânea, v. 12, nº 1 (2022).
Fonte Imagética: Colagem feita a partir de indicação do autor. Fotografias, respectivamente, de Otto Klineberg (1899-1992), Virgínia Bicudo (1910-2003) e Hiroshi Saito (1919-1983), fornecidas pelo autor. Fontes: UNESCO Archives; UNESCO Archives, Sociedade Brasileira Psicanálise de São Paulo; e Acervo particular da família Saito, respectivamente.