Luciléia Aparecida Colombo[1]
O objetivo central desta nota é oferecer algumas considerações sobre a relação estabelecida entre federalismo e a sua influência sobre as políticas públicas, em especial as de recorte regional. Considerando que todos os governos, direta ou indiretamente, utilizaram mecanismos para contenção do avanço das desigualdades, é necessário, ainda que de forma descritiva, localizar a maneira como estas agendas foram construídas ao longo do tempo, no Brasil.
Uma das características do federalismo brasileiro é o seu traço profundo que remete às diferenças observadas em regiões como o Norte e Nordeste em frequente dissonância com as condições socioeconômicas do Sudeste e do Sul. Consideramos que o federalismo é uma forma de organização espacial que prevê mecanismos para acomodar os conflitos, bem como para encontrar mecanismos, no processo decisório das políticas públicas, de integração dos interesses e da consolidação destes na personificação de políticas de recorte regional. Portanto, o que diferencia o federalismo de outros modelos, como o unitário, por exemplo, é a sua ampla capacidade de organizar as relações intergovernamentais de maneira a preservar a autonomia e a interdependência entre os entes federados, sem que com isso haja, por exemplo, um modelo hierárquico de ordenamento de tais relações. Neste sentido, a vantagem do federalismo reside na capacidade de compartilhar o poder e, consequentemente, de promover maior participação deste nas esferas subnacionais.
Um dos autores mais caros a essa ideia de federalismo baseado em uma acomodação de diferenças é Burguess (2006) que, além de apontar a causalidade de uma natureza federativa, fundada na heterogeneidade de um país, onde as desigualdades e as disparidades são a tônica do modelo, também considera que a questão territorial adquire grande protagonismo, para além da diversidade física, das questões étnicas, linguísticas ou religiosas presentes em um país. Constata, sobretudo, que a existência do federalismo pressupõe a unidade na diversidade, pois as unidades devem permanecer unidas para a composição de um território capaz de acomodar os conflitos e buscar a resolução destes de forma pacífica. Dentro deste desenho federativo traçado, tanto as particularidades regionais quanto as desigualdades se tornam evidentes e explícitas, especialmente quando observamos o caso brasileiro.
Existem também outras pré-condições para a existência do federalismo e presentes na grande maioria das federações, as quais foram amplamente discorridas por Watts (1990), como, por exemplo, a presença de unidades subnacionais (duas ou mais), as quais atuam diretamente na produção de políticas e de demais serviços oferecidos à população; a distribuição de poder e de autoridade, tanto no âmbito executivo como no legislativo, garantindo que estes possuam autonomia, apesar da dependência; abertura à ampla participação de demais interessados nas tomadas de decisão coletiva, especialmente com a garantia de uma segunda Casa Legislativa, como a existência do Senado Federal. O autor em tela também ressalta que a existência de um texto constitucional escrito, com a consequente garantia do consenso para a aprovação de emendas, caso estas sejam necessárias, para a atualização das demandas sociais. Por fim, a existência de um Poder Judiciário forte, independente e autônomo para arbitrar os conflitos também é uma das condições para a existência de um federalismo robusto. Este conjunto de condições propiciam a existência e a manutenção de instituições capazes de propiciar relações cooperativas entre os entes federativos.
A partir das observações do caso brasileiro, o federalismo tem a característica peculiar, como dito anteriormente, de uma diferença significativa entre as regiões brasileiras, fato que impulsionou uma agenda de políticas públicas em diversos governos brasileiros, no passado e atualmente. O tratamento para as desigualdades regionais brasileiras tem origem em 1956, quando o Presidente Juscelino Kubitschek convidou o economista paraibano Celso Furtado para liderar um estudo das condições econômicas e sociais da região Nordeste: nascia, assim, o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN).
Este grupo propunha uma reformulação na maneira como a intervenção estatal era implantada nesta região, especialmente com o fomento à industrialização e às transformações na organização da agricultura tradicional. Os trabalhos deste Grupo foram consolidados no documento chamado Uma Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste, em 1959, que foi a base, também, para o surgimento da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). O trabalho deste grupo colaborou com o diagnóstico de que a desigualdade da região Nordeste estava ancorada em uma ação limitada no Poder Público para a correção das desigualdades regionais, o que também tinha inteira conexão com a ameaça de seu principal setor produtivo, a agricultura, especialmente pela escassez de terras produtivas na região. O GTDN foi transformado posteriormente em Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (CODENO) e, de posse de um instrumental analítico responsável pelo diagnóstico da região, colaborou para o nascimento da SUDENE.
Esta instituição nasceu em 1959, com o objetivo de promover uma remodelação na maneira de articular o jogo político estabelecido entre o Nordeste e o Governo Federal, e esteve inicialmente vinculada à Presidência da República. Esta vinculação era uma prova da necessidade de tratar os problemas regionais a partir do topo da escala de poder. Entretanto, o projeto político da SUDENE não foi implantado de forma harmoniosa, como era esperado, sobretudo porque previa alterações na estrutura oligárquica da região, além de alterar sensivelmente o inter-relacionamento entre as elites locais. Neste sentido, o desenho institucional da superintendência funcionou aos moldes de seu idealizador, Celso Furtado, até 1964. A partir de então, ela foi remodelada para atender aos objetivos dos militares, com uma recentralização federativa e de um processo decisório de políticas engessado a partir de interesses convergentes com a integração do Brasil com o exterior e não mais com as regiões brasileiras entre si.
Findo o regime militar e com a euforia típica da reabertura democrática, umas das inovações da Constituição de 1988 foi a adoção de um modelo de federalismo altamente descentralizado, com a delegação de competências a estados e municípios, alijados do sistema político anterior. Entretanto, tal euforia não foi precedida de resoluções objetivas para as questões regionais, mas podemos apontar inovações importantes para o tratamento destas desigualdades. Vale lembrar que a Constituição de 1988 reconheceu deliberadamente a existência das assimetrias federativas, reservando uma parcela (3%) da arrecadação do imposto de renda (IR) e do imposto sobre produtos industrializados (IPI) para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através dos chamados Fundos Constitucionais de Financiamento do Norte (FNO), do Nordeste (FNE) e do Centro-Oeste (FCO), para alavancar os setores produtivos destas localidades. A partilha deste Fundo é assim distribuída: cabe ao FNO 0,6%, ao FCO 0,6% e ao FNE 1,8%. [2]
Embora sejam uma garantia constitucional importante, estes Fundos ainda não representam uma agenda para a contenção das assimetrias regionais, fato que podemos elencar com o nascimento, ainda que tardio – quando comparado ao nascimento da Constituição de 1988 -, da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) em 2003. Existem três versões da PNDR: a I (de 2003 a 2007), a II (a partir de 2007) e recentemente, a PNDR III (de 2019 até o momento). Esta política representa a abertura de uma agenda governamental para o tratamento das desigualdades regionais brasileiras, com dois objetivos bem definidos: o estímulo ao desenvolvimento regional, priorizando uma escala de atuação com grande participação, tanto dos entes federativos como da população em geral e também a priorização da dinamização dos territórios a partir de uma distribuição equânime dos recursos públicos. Além disso, a PNDR também possui alguns pressupostos claros, como a preservação do meio ambiente e a sustentabilidade, a inclusão social e a competitividade econômica, aliadas a uma articulação federativa para a produção de políticas públicas em moldes cooperativos. A PNDR também ressalta uma tendência observada desde a Constituição de 1988, que é a possibilidade de articulação do poder público com o poder privado para a execução das políticas previstas.
Conforme aponta Monteiro Neto e Pêgo (2019), alguns objetivos da PNDR são:
Em atenção aos reclamos do órgão de controle (TCU) e da Casa Civil, as propostas de modificação da PNDR foram sistematizadas na apresentação de novos objetivos da política. Objetivo um: convergência. Promover a convergência dos níveis de desenvolvimento e de qualidade de vida inter e intrarregiões brasileiras e a equidade no acesso a oportunidades de desenvolvimento em regiões que apresentem baixos indicadores socioeconômicos. Objetivo dois: rede de cidades policêntrica. Consolidar uma rede policêntrica de cidades, em apoio à desconcentração e à interiorização do desenvolvimento regional e do país, considerando as especificidades de cada região. Objetivo três: competitividade regional e geração de emprego e renda. Estimular ganhos de produtividade e aumentos da competitividade regional, sobretudo em regiões que apresentem declínio populacional e elevadas taxas de emigração. Objetivo quatro: agregação de valor e diversificação econômica. Fomentar agregação de valor e diversificação econômica em cadeias produtivas estratégicas para o desenvolvimento regional, observando critérios como geração de renda e sustentabilidade, sobretudo em regiões com forte especialização na produção de commodities agrícolas ou minerais (Monteiro Neto e Pêgo, 2019, p. 32).
Neste sentido, hoje temos a abertura de uma agenda governamental pautada em pressupostos solidamente construídos, através de diagnósticos de especialistas, que analisaram profundamente as assimetrias regionais brasileiras. Entretanto, a PNDR encontra-se paralisada atualmente, bem como os Planos de Desenvolvimento da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), da Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO) e da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), que estão desde novembro de 2019, aguardando novas deliberações para apreciação do Congresso Nacional. Todos os fatores aqui elencados, bem como as diversas agendas governamentais que foram abertas e fechadas ao longo do tempo, demonstram que o enfrentamento da temática é necessário, mas que possui diversos óbices para ser consolidado de maneira satisfatória.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec
REFERÊNCIAS:
BURGUESS, M. Between a rock and a hard place: the Russian federation in comparative perspective. In: ROSS, C; CAMPBELL, A. (Eds.). Federalism and local politics in Russia. Routledge, 2009, pp. 25-53.
______. Comparative federalism. Theory and practice. New York: Routledge, 2006.
MONTEIRO NETO, A.; PÊGO. B. A proposta de revisão da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR): memória de um grupo de trabalho. Brasília: Ipea, 2019.
WATTS, R. L. Comparing Federal Systems in the 1990s. Ontario: Queen’s University Kingston, 1990.
[1] Professora Adjunta do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da mesma Universidade. E-mail: leiacolombo@gmail.com
[2] Os Fundos Constitucionais de Financiamento foram previstos no artigo 159, inciso I, alínea “c” da Constituição de 1988 e regulamentos pela Lei nº 7.827, de 27 de setembro de 1989, cujo objetivo central foi contribuir para o desenvolvimento das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Fonte Imagética: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). Juscelino Kubitschek e Celso Furtado (à direita), entre outros, na reunião da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. 28 out. 1963. Disponível em: https://jk.cpdoc.fgv.br/imagem-som/fatos-eventos/superintendencia-desenvolvimento-nordeste-sudene . Acesso em: 30 ago. 2022.