Andrei Koerner[1]
É soberano quem decide sobre a situação excepcional… Ele decide não só sobre a existência do caso de necessidade extrema mas também sobre as medidas a tomar para eliminá-la. Ele está à margem da ordem jurídica normalmente em vigor mas mesmo assim pertence a ela, pois lhe cabe decidir se a Constituição deve ser suspensa em sua totalidade (Carl Schmitt, Teologia Política).
O estado de exceção é… a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de
leirealiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa… [Ele] marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real (Giorgio Agamben, Estado de exceção).The sovereign is not simply (…) he (or she) who first decides that there is an exception and then decides how to resolve it. Sovereign is that which decides an exception exists and how to decide it, with the that composed of a plurality of forces circulating through and under the positional sovereign of the official arbitrating body (William Connolly, Pluralism).
O presidente Jair Bolsonaro levou 45 horas para se manifestar sobre o resultado da eleição presidencial e, quando o fez, não reconheceu a derrota, enaltecendo, pelo contrário, os manifestantes que já bloqueavam as rodovias e se manifestavam em frente a quartéis e outros locais públicos contestando o resultado da eleição e reivindicando uma intervenção militar. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proclamara os resultados poucas horas depois do fechamento das urnas e a correção do pleito fora reconhecida por autoridades políticas nacionais e estrangeiras, dirigentes partidários e outros atores políticos e sociais.
Depois da sua fala, Bolsonaro dirigiu-se ao Superior Tribunal Federal (STF) para uma conversa com os ministros. Em seguida, o ministro Edson Fachin assumiu-se intérprete da vontade do mandatário, que, ao usar o termo ‘acabou’, valeu-se de tempo verbal que significaria seu expresso reconhecimento da derrota.
Desde então, o mandatário mantém-se em silêncio e as manifestações contra o resultado eleitoral têm continuado, financiadas por empresários e estimuladas por seus seguidores, que usam perfis e robôs em redes sociais. O Ministério da Defesa divulgou seu relatório sobre as urnas que reconhece não ter encontrado evidências de fraudes, mas levanta a hipótese de que graves vulnerabilidades poderiam ter permitido a inserção de algum programa malicioso que teria fraudado a votação ou a contagem dos votos. Em seguida, os chefes das três armas publicaram críticas veladas aos ministros do TSE, atribuindo à “casa do povo” o direito de decidir sobre o impasse da validade das eleições. Por fim, o general da reserva Villas-Boas emitiu nota em que critica juízes e tribunais, elogiando os manifestantes e suas aglomerações em frente aos quartéis.
Esses episódios não chegaram a configurar uma crise política, mas a situação cultivada pelo mandatário tem provocado incertezas e gera especulações sobre seus desdobramentos. Seu silêncio e inércia nestas duas semanas alimentam hipóteses, ainda não completamente descartadas, como, por exemplo, uma tentativa desesperada de permanecer no Palácio do Alvorada depois da posse de Lula, alegando não reconhecer o resultado das eleições e exigindo sua revisão ou a realização de novo pleito. Viria a confirmar, de certo modo, os discursos em que afirmou que não sairia do governo senão morto, preso ou derrotado em eleições limpas. Excluídas as duas primeiras alternativas, e com a previsível resistência da força militar ou policial para desalojá-lo, seu entrincheiramento poderia configurar um acontecimento político capaz de reativar manifestações de seus seguidores.
Dado o histórico de recuos do mandatário ao enfrentar potenciais confrontos políticos, esta hipótese é pouco provável. Mas a situação atual evidencia dois aspectos. O estado de exceção em sentido próprio – a suspensão da ordem constitucional como um todo – não ocorreu e a incerteza foi superada pela pluralidade de sujeitos políticos que reconheceram a validade das eleições e afirmaram publicamente o respeito aos seus resultados. Apesar de a validade jurídica do processo sucessório ter sido autenticada, o derrotado não reconheceu o resultado e alimenta a tese de uma suposta mácula na sucessão presidencial. Com isso, reitera suas contestações à democracia constitucional, mesmo que em nome de eleições limpas.
Desde o início do mandato, ele cultivou sua ambivalência em relação à democracia e à Constituição, mantendo uma situação de permanente incerteza política. Ele procurou desconfigurar a ordem constitucional democrática por meio da sua posição de sujeito, fundamentos, objetivos e meios de ação. Colocou-se numa posição interna-externa à ordem constitucional porque se identificou como sujeito referido a um outro sistema normativo – a Bíblia, os mandamentos religiosos – que é heterogêneo e incompatível com os fundamentos e regras constitucionais. Afirmou-se como líder de um movimento, de caráter reacionário e proto-fascista, de superação da ordem constitucional existente, de modo a criar uma outra – mais legítima, autêntica, purificada.
O mandatário explorou os limites das regras constitucionais procurando reduzi-las a um único elemento: a liberdade, a sua e de seus seguidores, sem qualquer reconhecimento do outro, da reciprocidade de direitos ou de limites à sua vontade. Isso tem como efeito a deslegitimação, subordinação ou exclusão daqueles que venham a se lhe opor. Ele promoveu e apoiou o uso de meios violentos e claramente ilegais contra opositores políticos e lideranças institucionais, identificados como seus inimigos pessoais. Definiu-se como quem jogaria dentro das “quatro linhas” da Constituição, desde que os demais atores também fizessem o mesmo, com o que deixou aberta a possibilidade de violar as regras e se colocou como um peculiar árbitro da validade das ações dos demais. Atacou reiteradamente adversários políticos e representantes institucionais que o contrariaram, uma tática que lhe proporcionou vários benefícios.
Em particular, os juízes do STF se esmeraram em decidir não decidir inúmeros casos que contrariam frontalmente políticas do governo, ou aqueles em que o mandatário ou seus próximos viessem a ser condenados. Os juízes substituíram sua omissão por medidas variadas de contenção, neutralização e respostas pontuais e laterais (a tática de contorno aconteceu mesmo em importantes decisões do STF sobre as (anti)políticas do governo federal contra o Covid-19). Em suma, o mandatário procurou tornar seu juízo pessoal a regra de julgamento e o critério de validade das ações e da própria condição dos seus opositores, nele incluídos os responsáveis institucionais e os juízes que contrariavam as suas pretensões.
Por sua vez, a oposição, o Judiciário, a grande imprensa e atores da sociedade civil buscaram assegurar e reforçar os apoios políticos à ordem constitucional. Tratava-se de assegurar o fundamento de validade da Constituição – a vontade do povo manifestada pelos seus representantes em 1988 e o sentido de uma democracia plural e inclusiva. Eles sustentaram que as regras constitucionais permaneciam vigentes, inalteradas, e reafirmaram sua condição de sujeitos legitimados a exercer seus poderes constitucionais. A disputa assumiu a forma de conflito entre os poderes executivo e judiciário, em que os juízes e outros sujeitos políticos sustentaram a legitimidade das decisões judiciais face aos ataques.
Quanto aos meios, os ministros do STF e do TSE valeram-se dos recursos judiciais existentes, mas fizeram inúmeras invenções, distorções, redefinições, muitas delas questionáveis juridicamente. Inventaram ou reforçaram os poderes de polícia dos tribunais, utilizando-os sem parcimônia, mas de maneira calculada para evitar confrontos frontais que poderiam eventualmente provocar desdobramentos graves. Eles também usaram meios pouco convencionais para juízes, mas que não são sem precedentes em nossa história. Ocuparam pessoalmente posições de destaque na mídia, valendo-se do serviço de comunicação dos seus tribunais. Realizaram encontros e diálogos com lideranças partidárias e responsáveis institucionais do Congresso e dos estados etc. Seu objetivo foi preservar a ordem constitucional contra as tensões e pressões postas pelo mandatário e seus seguidores.
A disputa sobre a Constituição de 1988 foi central no processo eleitoral. O mandatário denunciou supostas vulnerabilidades das urnas eletrônicas, liderando uma iniciativa de reforma constitucional pela volta do voto impresso e, derrotado em agosto de 2021, defendeu a realização de testes e auditorias civis e militares sobre possíveis fraudes. Durante o processo eleitoral, não cansou de denunciar agressivamente decisões do TSE e do STF que considerava violações a seus direitos.
As ressalvas do mandatário sobre a aplicação das regras eleitorais tiveram o sentido de tentar provocar uma situação excepcional. Dado o gap entre toda norma e sua aplicação, a denúncia de uma suposta fraude nas urnas procurava abrir um espaço de não aplicação da norma, espaço que passaria a existir pelo puro e simples ato de vontade do mandatário: o fato da denúncia ou da desconfiança suscitada por ele, independentemente de qualquer evidência.
Recurso análogo foi o da suposta desigualdade de condições na disputa, decorrentes das decisões dos juízes constitucionais e eleitorais suspeitos que, portanto, teriam maculado de forma irremediável o processo eleitoral. A situação excepcional serviria para justificar uma intervenção voltada a assegurar a manifestação da vontade da maioria do povo. Mas essa vontade popular não seria para manter a ordem constitucional, mas para abrir espaço à sua transformação. Desse modo, a tentativa de criar a anormalidade na disputa eleitoral continha a promessa/ameaça de ruptura da ordem constitucional, abrindo caminho para uma nova ordem.
Os demais responsáveis e lideranças políticas usaram suas posições e recursos institucionais para intensificar os meios de convencimento racional: evidências, argumentos e demonstrações públicas da lisura das urnas. Os ministros do STF/TSE participaram da construção de uma impressionante rede de apoio às eleições, que compreendeu desde campanhas educativas e outros arranjos para combater as fake news até contatos com autoridades estrangeiras, passando por alianças ostensivas ou reservadas com lideranças políticas, bem como acordos com OnGs, sindicatos e outras associações para acompanhar o processo, de modo a validar resultado e assegurar o seu respeito.
Essa construção procurou asseverar pública e coletivamente que as urnas e as condições de competição mantinham-se na normalidade e que não havia qualquer evidência que justificasse a excepcionalidade pretendida pelo mandatário. Assim, nesse processo, os ministros do STF/TSE lideraram, ou, pelo menos, foram participantes centrais de uma aliança entre diversos setores do establishment político em defesa da democracia constitucional. O processo produziu inovações na posição institucional dos juízes constitucionais/eleitorais, nos seus meios de ação e nas suas relações efetivas com outros atores políticos e sociais. Essas inovações terão implicações e desdobramentos importantes, mesmo em condições de normalidade democrática.
É inegável que os “fatores reais de poder”, isto é, chefes militares e grandes empresários, foram decisivos neste processo, tanto quanto a atuação de outros Estados. Mas sua tomada de posição foi indissociável de sua inserção num campo público e coletivo onde estava em disputa a preservação das condições de aplicação das regras sobre as eleições. E eles acabaram por não deixar de assegurar o seu apoio à ordem constitucional democrática.
A disputa sobre a excepcionalidade envolveu dois modos distintos de ação no espaço público. Opuseram-se a tática da desconfiança, das forças ocultas, dos complôs, insinuações e segredos, e a da confiança, das alianças públicas abertas, fundadas no compromisso com a democracia. A que pretendeu conformar um nós/eles a partir do ponto de articulação entre o interno e o externo à ordem constitucional. Ele se dedicou à instauração da situação excepcional sobre a validação das eleições, que seria um momento propício para a ruptura voltada a criar a nova ordem. A ela se opôs uma forma de ação política que procurou fortalecer um nós inclusivo que, negando a situação excepcional, deslocou para as bordas da legalidade e da política aquelas franjas mais aguerridas dos seguidores do mandatário.
Assim, o presidente acabou diante do dilema de, sem apoio efetivo, lançar-se para além de todo limite legal e alcançar um ponto de não retorno, apostando na instalação de uma situação de exceção de fato, acreditando no poder criador da violência política, na sua capacidade produtiva das condições e das realidades nas quais as forças políticas atuam. Ou, pelo contrário, respeitar as normas constitucionais, reconhecer o resultado e ser absorvido pelo sistema como oposição barulhenta que reiteradamente denuncia supostas violações à suas liberdades, e apenas acena, de forma cada vez mais ocasional, com uma eventual ruptura.
O candidato à reeleição recebeu um número surpreendente de votos, mesmo considerados todos os meios clientelistas e outras ilegalidades que utilizou para angariar apoios. Seus seguidores serão uma força incontornável da política brasileira nos próximos anos. Mas o desfecho revelou em sua nudez a artimanha por ele anunciada e tentada: não um coup d´Etat mas um golpe na praça, uma manobra desonesta para enganar, prejudicar ou roubar. O futuro ex-mandatário voltará a encetar rezingas de baldado: vai lamuriar, choramingar, resmungar, rosnar, gritar, insultar, ameaçar violência ou mesmo pratica-la… Frustrado o milagre, o messias procura manter atentos os seus adeptos enquanto inventa nova prestidigitação para incautos.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências imagéticas:
Presidência da República. Galeria de imagens (Palácio da Alvorada). Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/conheca-a-presidencia/palacios-e-residencias/palacio-da-alvorada/galeria-de-imagens>. Acesso em: 21 nov. 2022.
[1] Professor associado do Departamento de Ciência Política da Unicamp e membro do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos do Instituto de Estudos Avançados da USP.