Leonardo da Rocha Bezerra de Souza[1]
Recentemente, em parceria com o Prof. Dr. João Bosco Araújo da Costa, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), publicamos o artigo “As Políticas Públicas e as Privações Sociais em Territórios Quilombolas: a comunidade da Aroeira no Rio Grande do Norte”, na revista Contraponto, do programa de pós-graduação em Sociologia da UFRGS. Esse texto é produto de uma pesquisa realizada entre os anos de 2018 e 2020, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS/UFRN). O objetivo central do trabalho era demonstrar como agem as políticas públicas através do combate às privações sociais nessa comunidade. Nesse caso, temos como principal política pública a de regularização do território quilombola (RTQ), regulamentada pelo Decreto nº 4.887 de 2003, assinado pelo então presidente Lula.
A imersão em campo, junto à comunidade da Aroeira, que fica localizada na região Central do Rio Grande do Norte, no município de Pedro Avelino, próximo a cidade de Angicos, potencializou a compreensão de um cenário que, no plano histórico e contemporâneo, revelou inúmeras privações sociais, no sentido lançado pelo filósofo e economista indiano Amartya Sen (2009). Elas são marcas não apenas de um contexto particular de uma só comunidade, mas sim, tornam-se a expressão que é característica comum a um conjunto de comunidades negras no Brasil e no mundo. As privações sociais às quais estão submetidas essas comunidades, são produtos de um racismo estrutural (ALMEIDA, 2021) e por denegação (GONZALEZ, 2020). Se mostram na vida cotidiana dos indivíduos, atingindo toda a coletividade.
Como Gonzalez (2020 [1983]) nos diz, esse racismo é um mecanismo sofisticado, que não demonstra abertamente aquilo que se pretende, mas que exerce toda influência de forma direta e indireta. À saber, as privações surgem em uma diversidade aparente, são problemas básicos como acesso à saúde pública de qualidade, à educação, ao trabalho e à renda, e, sobretudo, a garantia de posse e propriedade do território para o uso coletivo — no caso das comunidades quilombolas. A ocupação do território da Aroeira por terceiros, é, de longe, a mais aguda das privações, pois atenta contra a existência do povo que fez daquele espaço seu lugar, tendo uma relação com a terra que é marcada pela forma como atua sobre o espaço. Nessa seara estão contidas a relação com a terra e o trabalho, uma relação espiritual e cosmológica, entre outros.
A ocupação do espaço, constituindo assim as territorialidades da Aroeira, é o processo de tomada do território como seu; há um arraigamento, aquele povo deixa marcas no terreno, na paisagem, no estilo de ocupação. Há uma relação da história pessoal de cada membro da comunidade com a forma de uso do espaço. Nesse contexto, aparecem outros marcadores de ocupação, como aqueles de cunho religioso, geracional e de gênero. Esses são elementos que nos ajudam a compreender como a comunidade ocupou seu espaço, foi formada e como se encontra atualmente. Em primeiro lugar, é uma ruptura com a visão instrumentalizante de determinados culturalismos que reduzem o conceito de cultura, como se houvesse um isolamento dela diante de outros referentes. Sabemos que a cultura opera com um emaranhado de referenciais, sobretudo, políticos e ideológicos. Em segundo, no âmbito das privações, essas são formas de enxergar o racismo, o sexismo e outros problemas sociais.
Tais fenômenos não são apenas pontos de controle ou descontrole do poder público em relação à comunidade, mas sim, um registro de um modo de operacionalização do Estado, também das relações sociais como estão constituídas. Essa herança do racismo que opera de forma medular na vida cotidiana da comunidade vítima do preconceito, confronta-se com a herança do Quilombo histórico, que produz narrativas e armas de resistência. Nesse sentido, a RTQ tornou-se não uma mera política no sentido instrumental, mas sim, o que defendemos, ela é uma política catalisadora, que impulsiona a realização de outras políticas e programas, demonstrando como esse é um processo repleto de descontinuidades e ela própria se converte em um espaço de agenciamento.
As privações sociais têm diversas naturezas. Como comentamos, não são as mesmas entre homens e mulheres, para a juventude e os idosos, para os aposentados e os trabalhadores rurais. Nossa pesquisa constatou que a comunidade quilombola da Aroeira possui inúmeros tipos de privações, mas a principal delas, como é comum na região nordeste do país, diz respeito ao problema do acesso à água potável para consumo e trabalho. A relação da comunidade com a questão do combate à seca é algo fundamental, que molda as relações da comunidade, dentro e fora do território e nas relações com outros atores políticos.
Em relação às respostas às privações, conseguimos observar uma montagem de um processo de agenciamento na comunidade. Isso tem respostas por diversos sentidos. Em primeiro lugar, esse processo não é novo, faz parte da luta pelo território. Conforme lembraram nossos interlocutores dentro da Aroeira, trata-se de uma “luta dos mais velhos”. O marco da resistência e da reivindicação antecede o início formal da regularização. Isto é, quando a comunidade se autodefine e, em seguida, adquire a certificação junto à Fundação Cultural Palmares e, depois, é iniciado o processo de titulação junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). No caso da comunidade em questão, esse processo foi iniciado em 2006, mas encontra-se até então paralisado. Aguarda o decreto de desapropriação de terras em posse de terceiros, de responsabilidade da presidência da República, para então ter o título emitido.
Apesar dessa letargia no processo e dos inúmeros obstáculos que existem, como constatam alguns pesquisadores, como O’Dwyer (2016) e Costa e Oliveira Jr. (2017), a comunidade vê o processo evoluir de forma positiva, com a conquista de inúmeros intitulamentos, para usar um termo do vocabulário seniano. Na verdade, a visão da comunidade da Aroeira sobre o processo, acontece em um sentido diferente do formalismo, já que a regularização é lida pela comunidade como um processo integrado, repleto de descontinuidades, no qual o título é somente uma parte dele. Trata-se de uma ruptura da visão linear da política pública e de seu processo de formulação e implementação.
Em segundo lugar, a comunidade observa o acesso aos programas e políticas derivados da RTQ, algo que muda drasticamente sua realidade, que agora tem suporte para desenvolver suas capacidades. Como nos diz Sen (2009, p. 32): “Essas capacidades podem ser aumentadas pela política pública, mas também, por outro lado, a direção da política pública pode ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades participativas do povo”. São as capacidades de experienciar a vida como se quer, como se tem por razão, que defende Sen. Automaticamente, o próprio poder público passa a ter instrumentos de leitura sobre os ciclos e as formas de implementação dessa política pública — esse é um dos objetivos diretos do nosso texto, contribuir com ferramentas de análise e avaliação dessas políticas.
Para Sen (2009) a capacidade de escolha livre das privações — que são marcas do desenvolvimento capitalista consolidado entre o raciocínio economicista clássico e a aplicabilidade do utilitarismo ético — é uma máxima da sua proposição de desenvolvimento como liberdade. A RTQ, ao possibilitar o acesso a outros programas e políticas (como foi o caso do Programa Brasil Quilombola, por exemplo), está contribuindo com essa ideia de desenvolvimento que, diante dos dados coletados, demonstram a realização de efetivações na vida das pessoas da comunidade, incluindo, a consolidação do processo de agenciamento, ou seja, na organização da comunidade como sujeito histórico (coletivo). Trata-se de uma longa empreitada, que está sujeita também ao enfrentamento de desafios e a constante aparição de obstáculos (sejam eles de caráter político, econômico-financeiro, ideológico, entre outros).
Para a comunidade e seus membros, é importante lutar pela emissão do título, mas isso tem que, impreterivelmente, estar associado a um processo que engloba a conquista da liberdade que se dá por meio da produção de intitulamentos. Nesse caso, a RTQ é fundamental para essa conquista. Após isso, produzem-se as efetivações nas vidas de indivíduos e da comunidade em geral. Conseguimos encontrar dentro da Aroeira um processo de agenciamento de grande potencial, sobretudo, entre mulheres e jovens. Elas têm um papel de destaque, produto da forma da ocupação do território e da fundação dos ramos familiares, onde a figura da mulher sempre foi central. Elas demonstraram como sua voz atualmente obedece à consciência que assumem como sujeitos protagonistas do processo. Certamente, isso não é apenas um mero resultado da RTQ, mas sim a demonstração de que, o mesmo, é muito mais complexo do que se pretende expressar. Na verdade, como nos dizem Zambam e Kujawa (2017, p. 64-65):
A abordagem das políticas públicas, como propõe Sen, está ancorada na importância da pessoa e na necessidade de ter as condições para o desenvolvimento das capacidades (capabilities) e agir como cidadão na condição de agente ativo, na atuação do estado como organizador de políticas de promoção humana e combate às desigualdades, na ação de instituições ou associações com a finalidade de propor, incentivar e administrar de forma propositiva, participativa e cooperativa as políticas que visem o bem comum e a equidade social, razão primeira de sua existência.
O nosso artigo tenta mostrar justamente o potencial e a complexidade da regularização, atuando como vetor e também como campo potencial. O agenciamento que, nesse caso, dialoga com a ideia de consciência histórica e social enquanto sujeitos, alinhado com o que pensa Freire (1987), é uma chave de leitura sobre o combate às privações, a partir dessa política tão importante. Dedicamo-nos a empreender essa leitura, porque ela por si só nos propicia a interpretação do papel das políticas públicas, como também aponta uma outra leitura sobre o Estado e sobre as comunidades tradicionais.
O primeiro, profundamente perpassado pela correlação de classes, como nos diz Poulantzas (2015), é uma condensação. A segunda, passa pela experiência de organização e da busca por uma coesão social, no qual os marcadores de gênero, classe e, principalmente, de raça, são determinantes na leitura da formação social, no reconhecimento como sujeito da história e do agente de transformação social. Bem como, vemos a relação entre comunidade e o Estado, antes e depois de serem executadas as políticas e os programas sociais ligados à implementação da RTQ.
Há uma forte marcação da relação do poder público com as comunidades quilombolas, em especial, a partir de 1988. Esse divisor é reconhecidamente o processo inaugurado com a redemocratização, o qual podemos definir como a construção de um processo de cidadanização ou de inclusão cidadã, que acontece em meio ao que Dagnino (2015) definiu como uma confluência perversa de discursos, entre o discurso neoliberal e àquele da participação popular. Nesse sentido, é que as comunidades se inscrevem como sujeitos coletivos e de luta por direitos humanos, lutando por reconhecimento e sua inserção em um processo aquisição da cidadania plena.
Reproduzindo um trecho de nossas considerações finais:
A regularização dos territórios quilombolas é uma política que se converte no espaço político onde o agenciamento, a conquista e produção de intitulamentos e de funcionamentos é fundamental para sua compreensão e para mensurar o grau de efetividade de seu projeto. Trata-se de um processo complexo que engloba diversos matizes (políticas públicas, luta de classes, memória coletiva, processo de tomada de consciência, entre outros). A comunidade quilombola da Aroeira evidencia esse conjunto em sua concretude. Através dessa política pública ela constrói arenas políticas que se desdobram em novos espaços, onde a discussão toma forma e onde são tomadas as decisões em coletividade (SOUZA e COSTA, 2022, p. 31).
A maior conquista da Comunidade Quilombola da Aroeira em relação à luta histórica e ainda muito atual, é a de sua autonomia e da potencialização dos processos de agenciamento e das ações coletivas. Isso tudo está fundado em uma práxis histórica de luta por libertação que é quilombola, ao mesmo tempo amparada em um processo de ocupação de espaços como se apresenta a RTQ. São inúmeras as privações, mas também são importantes esses avanços. A RTQ, como política pública, cumpre bem mais do que o papel de instrumento de aquisição do título, ela proporciona a formação de um leque de ferramentas de mobilização, de reivindicação e de produção de cidadania, que geram efetivações na vida da comunidade. Entender essa política, bem como demonstrar sua implementação como base de luta contra as privações, foi uma forma de lançar luz sobre o debate que envolve as políticas públicas e os direitos de comunidades tradicionais. Evidenciando, sobretudo, a complexidade, as múltiplas variáveis e as descontinuidades que perpassam esse processo. Há ainda um longo caminho por percorrer e construir.
*Este texto não reflete, necessariamente, as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo, Jandaíra: 2021.
COSTA, João Bosco Araujo, OLIVEIRA JUNIOR, Geraldo Barboza. “Apresentação”. In: COSTA, João Bosco Araújo; OLIVEIRA JR, Geraldo. Barboza (Orgs.). O perfil das comunidades tradicionais e o acesso às políticas públicas nos territórios rurais e da cidadania do Rio Grande do Norte. Natal: Caravelas, 2017.
DAGNINO, Evelina. Confluência perversa, deslocamentos de sentido, crise discursiva. In: La cultura en las crisis latinoamericanas. GRIMSON, Alejandro (Org.). Buenos Aires: Clacso, 2004.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro Latino Americano. RIOS, Flavia; LIMA, Marcia (Orgs.). Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
O’DWYER, Eliane Cantarino. Uma nova forma de fazer história: os direitos às terras de Quilombo diante do projeto modernizador de construção da nação.In: O. M. Oliveira (org.). Direitos quilombolas & dever de Estado em 25 anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Aba Publicações, 2016.
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro/São Paulo: Vozes, 2015.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
SOUZA, Leonardo da Rocha Bezerra. Comunidade Quilombola da Aroeira: uma avaliação do processo de implementação da regularização de território. Dissertação de mestrado. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.
SOUZA, Leonardo da Rocha Bezerra. COSTA, João Bosco Araújo. As Políticas Públicas e as Privações Sociais em Territórios Quilombolas: a comunidade da Aroeira no Rio Grande do Norte. Revista Contraponto. Porto Alegre: v. 9, n. 1, pp. 9-35, 2022. ZAMBAM, Neuro José, KUJAWA, Henrique Aniceto. As políticas públicas em Amartya Sen: condição de agente e liberdade social. Revista Brasileira de Direito.Passo Fundo: v. 13, n. 1, p. 60-85, 2017.
Referências imagéticas: Acervo do autor, gentilmente cedida para a divulgação do Boletim Lua Nova.
[1] Comunicador Social e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro do Grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento (GPACE/UFRGS).