Lis Barreto[1]
O presente artigo surgiu de achados que incorporaram a minha tese de doutorado, os quais demandaram destaque e debate devido às provocações feitas pela história recente do Brasil. Este texto foi escrito entre os meses de novembro e dezembro de 2022, enquanto o País assistia às manifestações antidemocráticas que surgiram em contestação do resultado do pleito eleitoral. Entre ameaças golpistas, bloqueios de estradas e saudações nazistas, destacou-se entre os manifestantes o uso do argumento de que seria legítimo e constitucional uma possível intervenção das Forças Armadas nos Poderes Constituídos, pois o artigo 142 da Constituição Federal de 1988 permitiria isto. Este espaço e este texto não se permitiriam ser utilizados para o simples ato de combater uma fakenews ou a responder a algum dos vários devaneios do nosso tempo. Este trabalho tem como objetivo explicar, a partir de uma perspectiva institucional, o fundo histórico que circunda o artigo supracitado, e demonstrar como, com o passar dos anos, o Brasil conseguiu equacionar este aspecto dúbio das relações civis-militares e desenvolver um arcabouço constitucional mais democrático do que existia em 1988.
Premissas conceituais e metodológicas
Antes de adentrar propriamente na história brasileira, faz-se necessário expor os principais conceitos e vertentes metodológicas que compõem a análise, partindo da seguinte pergunta: por que um artigo importa tanto?
A pergunta se faz justa, afinal, em um tema tão sensível e poderoso como nas relações civis-militares, há como acreditar que um artigo constitucional possa garantir a democracia? Qual o poder de uma regra?
Na concepção clássica de Douglass North (1990, p.3), as regras do jogo – denominadas de instituições – possuem um amplo impacto no funcionamento das relações sociais e políticas, o qual precisa ser bem compreendido. De acordo com o autor, as instituições têm o poder de tornar determinada interação mais previsível, ao estabelecerem regras e condutas de como cada ator pode ou deve agir em determinadas situações. Desta forma, sabendo que cada ator deve conduzir a sua escolha de ação dentro de uma lógica que delimita as opções, tanto as partes envolvidas como os observadores dispõem de maior previsibilidade dos possíveis resultados desta interação (NORTH, 1990).
A previsibilidade nas interações políticas e sociais se apresenta como um aspecto organizador dos sistemas políticos/econômico/sociais, pois auxilia no gerenciamento das expectativas, no planejamento do futuro e na automatização de certas interações (NORTH, 1990). Por exemplo, é mais fácil sair de casa para comprar tomates sabendo que eles custarão certa quantia em dinheiro e não ter que se perguntar se o dinheiro será ou não aceito. Imagina se o vendedor decide que deseja outro item em troca dos tomates. Uma negociação extra seria necessária em uma transação que se repete com frequência, demandando, desta forma, um tempo maior, e nem o comprador nem o vendedor teriam a certeza de que seria capaz de conseguir o que buscavam. Aumentam as incertezas, a instabilidade e os custos, sejam estes em tempo e/ou recursos.
A lógica apresentada ajuda a compreender a desejabilidade de se estabelecer algum padrão a certas interações, com destaque para as corriqueiras. Contudo, não é porque se concorda que há vantagens no estabelecimento de regras, que a mesma convergência ocorra com a seleção de seus conteúdos. As instituições não são neutras. Quando um padrão de ação é estabelecido, os demais formatos tornam-se preteridos, ou até ilegais (NORTH, 1990).
Voltando ao exemplo dos tomates, nenhuma lei impede o vendedor de negociar os seus tomates por livros. Mas a verdade é que os vendedores que estiverem trocando suas verduras por dinheiro têm mais facilidade de terem seus tomates comprados, pois atendem à expectativa da maioria dos consumidores, que não precisam se engajar em negociações complexas. Há um aumento de custo para quem foge à regra, um constrangimento que já é suficiente para fazer alguns exóticos a repensarem suas opções, então imagina o peso que teria se fosse tornado ilegal. Poderia não evitar o aparecimento de contestadores da regra, mas certamente o custo de romper o padrão se modificaria.
Aplicando esta lógica às relações civis-militares, em especial para o artigo 142, duas perguntas ajudam a entender a importância deste marco regulatório: o que teria acontecido neste pós-eleições de 2022 se não existisse uma regulação para o uso interno das Forças Armadas? Ou pior, e se houvesse uma brecha nas regras que permitissem o seu uso na contestação das eleições? Certamente as coisas estariam mais complexas do que já estão. Se houvesse espaço para justificar legalmente uma intervenção política das Forças Armadas, os pedidos das manifestações antidemocráticas teriam um apelo ainda maior dentro e fora dos quartéis. Isso ocorreria porque não haveria impeditivos legais às demandas, reduzindo drasticamente os custos dos militares que cedessem à tentação de atendê-las.
A ilegalidade de uma intervenção militar aumenta os custos desta ação, e isto não pode ser desconsiderado. Uma vez ilegal, além do risco de punições e prisões pelos crimes contra a democracia, em caso do uso de violência, o pedaço golpista das Forças Armadas se encontraria em rota de colisão com seus demais colegas, os quais estariam exercendo o seu papel constitucional ao lutar pela manutenção dos Poderes Constitucionais e da democracia.
Felizmente, apesar da gravidade e peso das ações antidemocráticas, em 2022, não há espaço institucional para justificar uma intervenção militar no Brasil. Não há interpretação que possa ser feita na legislação que abra espaço para o seu uso como justificativa para uma intervenção militar. Contudo, isso foi por pouco.
A Carta de 1988 e as críticas ao artigo 142
Quando a atual Constituição foi promulgada, em 1988, críticas contundentes foram feitas ao seu conteúdo, no que se referia às relações civis-militares. Naquele momento, após vinte e um anos de ditadura civil-militar, havia uma expectativa de que a nova Constituição criasse barreiras para a ingerência militar na política, através de uma série de ações, a exemplo da criação de um ministério da defesa civil, do fim dos órgãos e agências envolvidos na repressão, e da implementação de regras claras que reduzissem a capacidade de ação autônoma dos militares (MATHIAS; GUCCI; 2010; ZAVERUCHA 1994). Contudo, muitas destas demandas se viram frustradas, tanto porque parte da demanda não era, de fato, assunto constitucional[2], mas principalmente porque o pouco do texto que tratou dos militares se apresentou como extremamente sucinto e potencialmente ambíguo, sendo o ponto mais polêmico o artigo 142.
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela
Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).
O artigo, da forma como estava circunscrito, permitia o uso interno das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, contudo, não definia o que seria esta lei e esta ordem a serem garantidas, nem quais os meios que poderiam ser empregados, e ainda deixava pouco delineados quem poderia demandar o uso das Forças nestes casos. O excesso de espaço interpretativo gerou críticas e não tardou a demonstrar o tamanho das suas falhas, pois ainda em 1988 um juiz de primeira instância demandou o uso das Forças Armadas na repressão de uma greve de trabalhadores, resultando na morte de três deles (ZAVERUCHA, 1994).
O caso marcante pautou o debate em torno da Lei Complementar 69/1991, a primeira lei criada com o intento de complementar o artigo 142 e dar maiores detalhamentos sobre o funcionamento deste. A LC 69/1991 não equacionou todos os problemas, mas teve o mérito de identificar e delimitar os atores com poder de demandar o uso interno das Forças Armadas, centralizando a decisão de aceitar o pedido nas mãos do Presidente da República. Desta forma, o número de atores envolvidos é reduzido, colocando as figuras centrais dos Poderes, a saber: o Presidente da Câmara, o Presidente do Senado, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o próprio Presidente da República (BARRETO, 2021, p. 82-84).
O regramento não parou por aí. Nas décadas que se seguiram, novas leis complementares foram aprovadas, fossem editando ou substituindo sua versão pioneira de 1991. Estas, aos poucos, foram adicionando elementos importantes às relações civis-militares, como a regulamentação da atualização e publicização de documentos para a área da Defesa, que fossem produzidos pelos governos eleitos, assim como se estabeleceram as primeiras atribuições formais do ministro da Defesa, cargo criado via uma combinação da Emenda Constitucional 23/1999 com a Lei Complementar 97/1999 (BARRETO, 2021).
Principais modificações realizadas via Lei Complementar (1988 – 2014)
Ação | Leis Complementares |
Foi estabelecida uma cadeia de ação. Centralizou-se no Presidente a decisão de empregar ou não as Forças Armadas a pedido dos demais Poderes. | 69 de 1991 97 de 1999 136 de 2010 |
Detalhou as funções subsidiárias das Forças Armadas. | 69 de 1991 97 de 1999 117 de 2004 136 de 2010 |
Estabeleceu funções aos ministros militares. | 61 de 1991 |
Indicou os atores responsáveis pelo assessoramento do Presidente da República para suas funções de Comandante Supremo. | 69 de 1991 83 de 1995 97 de 1999 136 de 2010 |
Define diretrizes para o orçamento. | 97 de 1999 136 de 2010 |
Atribui ao Congresso Nacional o dever de apreciar os documentos da Defesa elaborados pelo Executivo. | 136 de 2010 |
Criou o ministério da Defesa | 97 de 1999 |
Estabeleceu funções ao Ministro da Defesa | 136 de 2010 |
Criou o Estado Maior Conjunto das Forças Armadas | 136 de 2010 |
A existência da regra, portanto, não é trivial. Ao definir um padrão, a regra impõe um custo aos seus desafiantes. Ainda que o principal custo aqui destacado seja o legal, este não é o único – afinal, os constrangimentos sociais e políticos nunca devem ser desconsiderados[3]. A ausência de leis complementares que circunscrevessem os limites do artigo 142 poderia ser o pouco que faltava para uma maior adesão e radicalização dos movimentos golpistas, levando o Brasil ao padrão interventor e antidemocrático que marcara os seus primeiros cem anos como república.
A cultura interventora e o passado que se recusa a morrer
Seria errado e enganoso atribuir toda esta movimentação antidemocrática unicamente às antigas falhas e ambiguidades que existiam em torno do artigo 142. As raízes da cultura intervencionista são profundas e perduram há mais de um século. Como exposto em texto anterior[4], o hábito de cooptar militares é antigo na cultura brasileira, iniciado de uma interpretação distorcida das funções das Forças Armadas, que acabou legitimado pelas elites civis durante a República Velha e pela experiência democrática de 1945-1964 (BARRETO, 2021).
Durante o Império, a figura do Imperador dispunha da função constitucional de Poder Moderador. Isso quer dizer que cabia a ele a função de moderar e decidir querelas e disputas entre as elites civis e, para isto, se utilizava das Forças Armadas – em especial, do Exército – para impor suas decisões, as quais nem sempre eram recebidas com alegria ou mansidão. Com o fim do Império e início da República – através de uma intervenção militar – começa a cristalizar-se no imaginário de parte dos militares e dos civis que passava a caber aos primeiros a continuidade ou manutenção da função de árbitro político que antes dispunha ao Imperador (FERREIRA, 2004; CARVALHO, 2006).
Desta forma, como bem analisa Stepan (1975), parte das Forças Armadas não só passaram a acreditar que cabia a elas o papel de moderar, como tiveram esta visão reforçada pelas elites civis que traziam as FA para dentro dos conflitos políticos, com interesse de cooptá-las seu favor. Para Carvalho (2006), durante a República Velha, esta conduta intervencionista se materializou como uma grande desestabilizadora política, ainda que isto não necessariamente fosse percebido desta forma por todas as partes. A crítica de Carvalho (2006) é coerente com as premissas apresentadas nas seções anteriores, as quais destacam a importância da estabilidade e da previsibilidade na vida política e social. A constante da ação militar durante a República Velha, ainda que tenha se tornado previsível por sua repetição, trouxe à equação política um elemento de caos e violência, pois as disputas da vida política passaram a depender de qual grupo seria capaz de se impor pela força e não pelo estabelecimento de regras. E quando se dependia do uso da força, a cooptação das Forças Armadas se fazia essencial para vencer.
Esta tendência intervencionista foi agravada pela criação de uma legislação que pregava a obediência das Forças Armadas ao governo eleito apenas “dentro dos limites da lei”. Isso, na prática, significou uma ambiguidade legal tão grande, que a regra foi interpretada como uma autorização para que as próprias Forças Armadas definissem o que fugia ou não dos “limites da lei” (FERREIRA, 2004; CARVALHO, 2006). O elemento de imprevisibilidade era tamanho que esta interpretação sequer acontecia de forma uniforme pelas instituições militares, causando dissidências e quebras de hierarquias dentro das próprias Forças Armadas, sendo o movimento tenentista um exemplo disso (CASTRO, 2002). Ou seja, quando parte delas interpretava haver espaço para intervenção na política, isso dificilmente acontecia de forma coesa e não implicava em respeito das cadeias de subordinação. As Forças rachavam ao ponto de disputarem entre elas e dentro de cada uma delas.
Curiosamente, a solução para parte dos problemas de insubordinação e interferência na política se consolidou justamente durante a maior intervenção militar brasileira: a ditadura de 1964-1985. Uma vez no poder, os militares aprofundaram tendências iniciadas no governo Vargas para uniformizarem as correntes de pensamento dentro das FA, fosse através de expurgos ou de uma campanha educacional fortemente doutrinadora (CASTRO, 2002). Além disso, era óbvio que um governo que não tolerava nem oposição não iria permitir a manutenção de uma legislação que abriria espaço para alguma instância que pudesse dizer ou não se o governo estava dentro ou fora do limite da lei. Foram os próprios militares que, durante a ditadura[5], uniformizaram as Forças e destruíram sua capacidade legal de intervir de forma autônoma.
Considerações Finais
O presente texto buscou elucidar as razões históricas que tornam o artigo 142 da Constituição Federal um ponto ainda polêmico da política brasileira. Contudo, faz um pouco mais que isso, pois também mostra como o Brasil logrou transformar o ponto legal mais sensível das suas relações civis-militares, em uma fonte de resistência democrática.
O marco legal e político representado pelo artigo e suas complementações age como um aumento de custos para aqueles que desafiam a democracia, ainda que esteja longe de representar um veto. Afigura-se como um importante elemento que, entre outros, ajudam a segurar a democracia brasileira em pé, criando constrangimentos aos transgressores, e tornando formalmente injustificável a afronta aos preceitos democráticos.
É preciso, no entanto, ter em mente que as regras mudam. E que assim como cabos de guerra políticos, novas distribuições de forças podem estabelecer padrões de conduta diferentes dos atuais. O Brasil, se quiser seguir democrático, precisará lutar por isto, e, como visto neste texto, todo detalhe importa.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
BARRETO, Lis. A institucionalização das relações civis-militares no Brasil (1988-2014): o papel das prerrogativas presidenciais. Tese (Doutorado em Ciência Política), 2021. Disponível em: < https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/14842>.
BARRETO, Lis. Hábitos que se recusam a morrer. Publicação disponível em: < https://gedesunesp.org/habitos-que-se-recusam-a-morrer-a-cooptacao-de-militares-pelas-elites-civis/>.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
CARVALHO, José Murilo. Forças Armadas e Política no Brasil. 2ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2006.
CASTRO, Celso. A Invenção do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2002.
FERREIRA, Oliveiros da Silva. Forças Armadas Para Quê? Rio de Janeiro. Fonte Digital, 2004
MATHIAS, Suzeley Kalil; GUZZI, André Cavalier. Autonomia na lei. As forças armadas nas constituições nacionais. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 25, N. 73, 2010.
NORTH, Douglass. Institutions, institutional change and economic performance.
Cambridge University Press, 1990.
STEPAN, Alfred. Os militares na política. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.
ZAVERUCHA, J. Rumor de sabres. Tutela militar ou controle civil? São Paulo: Ática S.A., 1994
[1] Pós-doutoranda ligada ao Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI/UNESP) do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (PUC/UNICAMP/UNESP).
[2] Usualmente, ministros e ministérios não são assuntos constitucionais. No entanto, como ficou evidente na década de 1990, a criação de um Ministério da Defesa (MD) estava condicionada a uma alteração constitucional, pois os cargos dos ministros militares constavam na Carta, como membros obrigatórios do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional. Sendo assim, criar o MD implicou em retirar os ministros militares da Carta e inserir o ministro da defesa nela.
[3] Isto é perceptível na fala do atual Vice-Presidente, o general do Exército Hamilton Mourão, que, em entrevista, alegou que uma investida dos militares no questionamento da eleição poderia levar o Brasil a sofrer sanções econômicas da comunidade internacional. Ou seja, a fala do Vice-Presidente Mourão ressalta que, para além das sanções legais, uma aventura golpista poderia ter um custo político e econômico gigantesco devido ao constrangimento imposto pela comunidade internacional. Disponível em: < https://www.cnnbrasil.com.br/politica/lula-foi-eleito-e-agora-tem-que-governar-diz-mourao/>.
[4] Texto publicado em 2020 no ERIS (GEDES-UNESP).
[5] A regra também foi suspensa em 1937, durante o Estado Novo (CARVALHO, 2006).
Fonte Imagética: Viaturas usadas no transporte de tropas estão sendo desativadas (Créditos: Exército Brasileiro/Agência Senado). Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/11/03/sancionada-doacao-ao-paraguai-de-20-caminhoes-do-exercito-brasileiro>. Acesso em 15 dez 2022.