Fabrício Ferreira de Medeiros[1]
A relação entre liberalismo e democracia foi e continua sendo caracterizada por uma série de percalços e ambivalências, entre as quais se destaca a proposta de ruptura institucional visando proteger os postulados liberais. O objetivo deste artigo é apresentar os resultados iniciais de uma pesquisa mais ampla a respeito do pensamento político de Carlos Lacerda (1914-1977), importante jornalista e político carioca que foi protagonista de diversas crises no período republicano. Nesta oportunidade, apresentarei a síntese de uma discussão sobre a aplicabilidade do autoritarismo instrumental (SANTOS, 1978) na análise de textos publicados pelo personagem em tela, questionando em que sentido o autoritarismo poderia ou não servir como meio transitório de instauração de uma ordem liberal-democrática no Brasil.[2] Para tanto, o trabalho prioriza a análise de artigos e editoriais publicados por Lacerda na Tribuna da Imprensa, entre os anos de 1950 e 1955, complementada pela referência ao conceito formulado por Wanderley Guilherme dos Santos (1978).
O retorno de Getúlio Vargas ao poder incendiou o conflito político e ideológico que ia da extrema esquerda à extrema direita.[3] A memória sobre a ditadura de 1937-1945 ainda era uma questão bastante sensível, sobretudo, para uma parcela de intelectuais, jornalistas, políticos e militares que se engajaram na derrubada do ex-presidente. Assim, a eleição de Vargas, em 3 de outubro de 1950, foi interpretada pela oposição como o prelúdio da volta da ditadura, abrindo espaço para o acirramento de antagonismos que já haviam se manifestado por ocasião da transição política de 1945.
Carlos Lacerda (1914-1977) escrevia para o Correio da Manhã, o Diário Carioca e o Diário de Notícias quando Getúlio Vargas sofreu seu primeiro golpe de Estado. Afastado de seus amigos de militância comunista, Lacerda acompanhou os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1946, expondo uma série de ataques pessoais a Getúlio Vargas, Luís Carlos Prestes e a vários políticos vinculados ao regime que entrava em decomposição. No mesmo período, o jornalista ingressou na recém-criada União Democrática Nacional (UDN), convertendo-se ao catolicismo e ao liberalismo, os quais, combinados, deram substância doutrinária ao seu anticomunismo. Desde então, Lacerda assumiria no antigo Distrito Federal, atual cidade do Rio de Janeiro, aquilo que via como a sua missão de enfrentar a influência varguista e comunista sobre o campo político e a sociedade brasileira (DULLES, 1992; MENDONÇA, 2002; McCANN, 2003; DELGADO, 2006; CHALOUB, 2015; BERLANZA, 2019; FERREIRA, 2021).
Antes de qualquer coisa, é preciso ressaltar que, na avaliação do jornalista, o país não vivia uma experiência democrática “autêntica”. Para ele, a ditadura estadonovista havia deixado cicatrizes profundas na sociedade e nas instituições políticas, impedindo que houvesse um processo efetivo de democratização. A influência de Vargas na criação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido Social Democrático (PSD), dois dos principais partidos da Quarta República (1946-1964); a preservação da interferência governamental sobre os sindicatos; a chancela do ex-presidente sobre a vitória do general Eurico Dutra nas eleições de 1945; a cooptação e o suborno de jornais e jornalistas; entre outros fatores, foram interpretados por Carlos Lacerda como evidências de que não houve uma ruptura efetiva com o regime anterior (FERREIRA, 2021).
Vargas foi atacado pelo jornalista em diversas oportunidades, representado como um político demagogo, corrupto, vazio de ideias, mentiroso e totalmente incompatível com a democracia. O temor de uma possível vitória do líder gaúcho nas eleições marcadas para 3 de outubro de 1950 se fundamentava no reconhecimento de que Vargas conquistou amplo apoio popular junto aos trabalhadores urbanos, se tornando um candidato fortíssimo a ocupar, novamente, a presidência da República (TI, 14 jun. 1950).
A vitória do político gaúcho na corrida presidencial deixou em segundo lugar o candidato udenista apoiado por Lacerda, o brigadeiro Eduardo Gomes. Logo em seguida, o diretor da Tribuna da Imprensa apareceu como um dos maiores defensores da tese da maioria absoluta, ponderando que, muito embora a Constituição de 1946 não deixasse claro que este princípio deveria prevalecer nas eleições majoritárias, ela também não afirmava que a maioria simples seria suficiente para escolher qualquer candidato (TI, 3 e 6 nov. 1950). Porém, por mais que Carlos Lacerda e a oposição udenista reivindicassem a anulação do resultado da eleição presidencial, a Justiça Eleitoral reconheceu a vitória de Vargas, sendo, por isso, alvo de várias críticas nos anos seguintes.
Além da Justiça Eleitoral, os partidos políticos também foram objeto de críticas formuladas pelo jornalista. O que mais lhe incomodava era a carência de uma definição programática nas agremiações, sobretudo, no PSD, no PTB e, às vezes, na própria UDN, partido que, para Lacerda, era o único que, efetivamente, reunia os quesitos morais necessários para governar, pautando-se pela democracia e liberdade (TI, 25 abr. 1951). O partido mais sólido em termos doutrinários seria o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, apesar de ser criminalizado por decisão judicial, em 1947, possuía um conjunto de ideias relativamente mais coerente e organizado do que seus concorrentes (TI, 18 dez. 1951).
Apontados como atores responsáveis pela representação política – ao lado do Congresso Nacional (TI, 22 jan. 1953) -, os partidos deveriam apresentar projetos políticos consistentes, competindo entre si pela preferência do eleitorado e pelo direito de tomar decisões acerca do bem comum (TI, 31 dez. 1951). Porém, a avaliação de Carlos Lacerda foi ambivalente no que tange aos partidos políticos: se, por um lado, eles foram considerados como peças-chave da democracia enquanto órgãos autorizados a representarem as demandas dos cidadãos; por outro, tiveram a sua autoridade questionada, sobretudo, em momentos de crise, como em 1954 e 1955, quando a demora na tomada de decisões entre as lideranças partidárias, segundo o jornalista, demandava o apelo a um “quarto poder” exercido pelas Forças Armadas (TI, 13 ago. 1954, 6 e 11 abr., 25 jul., 20-21 ago., 3, 4 e 8 nov. 1955).
Apesar de se identificar como democrata e afirmar que seu combate na imprensa se dava pela democratização do país, Carlos Lacerda se absteve de definir o que entendia por democracia. Mas ele deixou algumas pistas que podemos investigar. Em primeiro lugar, o diretor da Tribuna compreendia que a democracia não depende apenas de seu aspecto formal, ou seja, da existência dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, da manutenção de eleições, da liberdade de imprensa ou mesmo do sufrágio universal. Aliás, em vários momentos, o que se verifica em seus textos é um incômodo agudo com o funcionamento destas instituições e o que se considera como o desvio de seus princípios.
Segundo, a democracia, para Lacerda, não equivale, necessariamente, ao governo do povo.[4] O princípio do governo do povo exercido por representantes escolhidos em eleições livres, abertas e competitivas é aceito, mas com ressalvas. A sequência de derrotas nas eleições presidenciais (1945, 1950 e 1955) e o predomínio do PSD e do PTB no Congresso Nacional e nos governos federais seriam, segundo a sua perspectiva, um sinal de que o povo ainda não estava preparado para votar. A democracia não equivaleria ao governo da maioria ou do homem comum, e sim dos “melhores”, termo que aparece nas fontes como sinônimo de elites (TI, 25 mai. 1950). Em outras palavras, a democracia deveria ser o regime dos “melhores”, e não, necessariamente, o regime da maioria, ainda mais quando a maioria elege ditadores e representantes sem “autoridade moral”.
A crise política iniciada com o suicídio de Vargas, na manhã de 24 de agosto de 1954, e transcorrida até o final de 1955, é um período ímpar para análise do pensamento político lacerdiano. Pedidos de suspensão das eleições legislativas marcadas para 3 de outubro de 1954, e reproduzidos no ano seguinte, com vistas a impedir o que parecia ser a vitória certa de Juscelino Kubitschek (JK) e João Goulart, foram acompanhados de incitações à intervenção militar e à instauração de um regime de exceção. Na verdade, mesmo antes de sofrer o atentado na rua Toneleros,[5] em 5 de agosto de 1954, o diretor da Tribuna da Imprensa já publicava artigos que denunciavam uma aparente situação de impasse nos conflitos com o governo federal, conflitos estes que só poderiam ser solucionados por meio das armas. Em texto publicado em 10 de maio de 1954, Lacerda dizia que:
TENHO resistido, sempre, à ideia de que a ação de outras forças que não as do Congresso e as da opinião pública mobilizada através da imprensa, do rádio, das instituições cívicas, profissionais e culturais, deva intervir para pôr termo à ação da Oligarquia. A falta de combatividade e de união das principais dentre essas forças, porém, constitui um gravíssimo obstáculo ao triunfo, que almejamos, da opinião pública mobilizada. Por outro lado, a crescente agressividade do adversário com os recursos de que dispõe e os reforços levados à oligarquia pelas emissões constantes a que recorre, pela máquina de fazer decretos, pela sua loucura criminosa em arruinar material e moralmente o Brasil para não se entregar à ideia de que o seu poderio já foi ultrapassado, convencem-nos, cada vez mais, da necessidade de considerar a hipótese de uma reação pelas armas como a única solução possível para restaurar a ordem e a dignidade neste país (TI, 10 mai. 1954).
A instauração de uma ordem liberal-democrática estava no horizonte do jornalista na primeira metade da década de 1950, mas isso não significa que ele respeitasse as principais regras do jogo. Todavia, vale destacar que a democracia era uma realidade muito embrionária, sem longa tradição no país. Estávamos acostumados com golpes de Estado derrubando regimes (1889, 1945), inaugurando revoluções (1930) e ditaduras (1937). Até mesmo para preservar a legalidade se recorria a soluções de força (1955). Enquanto o Estado de exceção era uma tônica na história republicana, desde os primeiros governos. Talvez seja anacrônico esperar um respeito doutrinário aos resultados eleitorais daquelas pessoas que viviam os primeiros anos do regime democrático no Brasil, no início da Guerra Fria, e assistiam ao retorno de um antigo ditador à presidência da República.
A preocupação com a qualidade da representação política, por outro lado, foi marcada por um nítido viés elitista, que se manifestou na rejeição à inclusão dos analfabetos no processo político e em críticas frequentes a um suposto despreparo do povo para votar. Na perspectiva de Carlos Lacerda, a eleição de Getúlio Vargas (1950), Kubitschek e Goulart (1955), entre outros de seus adversários, era uma prova de que a maioria do eleitorado não possuía consciência política suficiente para eleger os “melhores”.
Democracia e liberalismo se distanciam no pensamento político de Carlos Lacerda, na medida em que princípios caros a um e outro são negados quando não se concorda com o resultado das eleições ou se desrespeita a soberania popular. Em todo caso, o autoritarismo surge apenas como um recurso transitório – mas é claro, valeria questionar até quando ele seria necessário. O princípio da autoridade baseada na força não predomina nos textos do referido jornalista, sendo acionado apenas em momentos críticos, para rapidamente ser substituído pela valorização do consenso e da autoridade legítima, baseada no contrato entre governantes e governados. Se não fosse assim, Lacerda não reconheceria a autoridade e a autonomia dos poderes Legislativo e Judiciário, a necessidade de contrapesos entre os três poderes, a importância da oposição para a democracia, da imprensa, para a fiscalização das autoridades públicas, da transparência e impessoalidade na administração pública e da responsabilização dos governantes por seus atos.
Reconhecer que o autoritarismo se insere no pensamento político lacerdiano como forma transitória de correção das imperfeições das instituições políticas não significa, necessariamente, concordar com a sua dimensão sociológica. Sequer significa concordar com a tese de que os fins justificam os meios, de que vale tudo para formar um governo honesto, íntegro e efetivamente preocupado com as demandas da população. De qualquer modo, penso que o emprego do autoritarismo instrumental como conceito permite diferenciar o pensamento político de Carlos Lacerda em relação ao integralismo, ao socialismo soviético, ao fascismo italiano, ao bolsonarismo, entre outras ideologias e movimentos políticos autoritários. Questões como: soberania, direitos humanos, limites do poder do Estado, cidadania política, eleições, liberdade de imprensa, liberdade de expressão, direitos individuais, entre outras, não são triviais, ainda mais quando se discute o autoritarismo e suas especificidades.
* Este texto não reflete, necessariamente, as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Fontes
Tribuna da Imprensa (1950-1955)
Referências
ANDERSON, Perry. O sentido da esquerda. In: Afinidades seletivas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002, p. 243-264.
BERLANZA, Lucas. Lacerda: a Virtude da Polêmica. São Paulo: LVM Editora, 2019.
BOBBIO, Norberto. Democracia. In: ___; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 7 ed. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1995 [1983], p. 319-329.
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. 3 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011 [1994].
CHALOUB, Jorge Gomes de Souza. O liberalismo entre o espírito e a espada: a UDN e a República de 1946. 2015. 311f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
DELGADO, Márcio de Paiva. O “golpismo democrático”: Carlos Lacerda e o jornal Tribuna da Imprensa na quebra da legalidade (1949-1964). 2006. 162 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2006.
DULLES, John W. F. Carlos Lacerda: a vida de um lutador. Volume 1: 1914-1960. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
FERREIRA, Fabrício. “O último dos panfletários brasileiros”: Carlos Lacerda e a memória dos jornalistas. 2021. 137 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021.
FERREIRA, Fabrício. O autoritarismo instrumental no pensamento político de Carlos Lacerda (1950-1955). Intellèctus, Rio de Janeiro, Ano XXI, n. 2, p. 248-272, 2022.
McCANN, Bryan. Carlos Lacerda: The Rise and Fall of a Middle-Class Populist in 1950s Brazil. Hispanic American Historical Review, 83: 4, 2003.
MENDONÇA, Marina Gusmão de. O demolidor de presidentes. 2 ed. São Paulo: Códex, 2002.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
[1] Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense e bolsista da CAPES. Atualmente desenvolve pesquisa sobre o pensamento político de Carlos Lacerda. Email: fabricio.f.medeiros@hotmail.com.
[2] O artigo completo encontra-se em: FERREIRA, Fabrício. O autoritarismo instrumental no pensamento político de Carlos Lacerda (1950-1955). Intellèctus, Rio de Janeiro, Ano XXI, n. 2, p. 248-272, 2022.
[3] Apesar das críticas formuladas por intelectuais como Perry Anderson (2002), refiro-me a “esquerda” e “direita” segundo a perspectiva bobbiana, que define estes conceitos políticos a partir de seu caráter relacional e contextual. Assim, enquanto as esquerdas, no plural, cultivam, historicamente, uma valorização da pauta igualitária, as direitas tendem a ser inigualitárias, concebendo boa parte das desigualdades como se fossem fenômenos naturais. Extremismo e moderantismo, por sua vez, se referem aos meios ou recursos políticos empregados pelos agentes na busca por seus ideais. Os extremistas são aqueles que defendem a realização de mudanças sociais através de rupturas, de movimentos bruscos e, muitas das vezes, violentos. Daí o seu viés antidemocrático. Já os moderados são aqueles que priorizam as mudanças graduais e contínuas, sem grandes saltos qualitativos na história, assumindo, consequentemente, maior compromisso com a ordem vigente (BOBBIO, 2011 [1994]).
[4] Na definição apresentada por Norberto Bobbio (1995 [1983]), a democracia inclui algumas características básicas, a saber: 1) governo do povo, distinto de outras formas de governo, como a monarquia (governo de um só) e a oligarquia (governo de poucos); 2) governo baseado na soberania popular e na representação política (democracia moderna); e 3) sistema no qual a classe política é escolhida por meio de eleições livres, abertas e competitivas, etc.
[5] O atentado ocorreu no auge da radicalização política, num momento em que Carlos Lacerda vinha intensificando suas críticas ao governo Vargas. Embora o jornalista tenha escapado da tentativa de assassinato, o major Rubens Vaz, que lhe acompanhava naquela madrugada, foi morto a tiros. As denúncias de que o governo estava diretamente envolvido com o atentado serviram como um ingrediente a mais na crise política, que teve seu ápice no suicídio de Vargas. Sobre o evento, ver: DULLES, John W. F. Carlos Lacerda: a vida de um lutador. Volume 1: 1914-1960. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
Fonte Imagética: Carlos Lacerda discursa em reunião do diretório da UDN, Rio de Janeiro, 1963 (Memorial da Democracia). Disponível em <http://memorialdademocracia.com.br/card/lacerda-pede-apoio-dos-eua-para-golpe>. Acesso em 08 fev. 2023.