Dylan Riley[1]
Tradução: Julio Tude d’Avila[2]
Eu nunca havia ido à Grécia, mas ao nível da vida-mundo trata-se de um lugar completamente familiar: numerosos mercados pequenos, cafés, boticários, uma eventual livraria, um padrão de trânsito caótico com motoqueiros que desafiam a morte ao costurar entre ônibus e táxis. Em certo sentido, Atenas parece uma cidade genérica do sul da Europa. Claro que existem diferenças, especialmente se a comparamos a Roma. A fragilidade econômica é mais palpável; um shopping elegante da virada do século que me lembra do grande shopping no centro de Milão está abandonado, ainda vemos nas janelas os nomes de joalherias, lojas de roupas sofisticadas e restaurantes que atendiam aos interesses de pessoas que não têm mais a renda que tinham. Descendo a rua em que estou hospedado há também o casco vazio do Hotel Sans Rival. Na esquina dessa rua encontramos uma escola às traças, ao lado de uma quadra de basquete abandonada e repleta de lixo, povoada por gatos de rua que vemos em todo canto de Atenas. (Giorgos, meu anfitrião da Fundação Rosa Luxemburg, não perde a oportunidade de lhes dar carinho, o que me faz lembrar de Emanuela.) O grafite também é mais intenso e colorido do que em Roma, cobrindo a maior parte dos prédios do térreo até um metro e meio do chão. Mas todas essas diferenças são mais de grau do que de tipo.
Outra semelhança marcante entre Roma e Atenas é a forma como elas exemplificam a relação difícil entre o passado nacional e o passado antigo. Uma das coisas sobre os turistas de Roma que enlouquecia Emanuela era quão pouco eles costumavam estar interessados na história do país. As multidões passavam rapidamente pelo Il museo del Risorgimento no caminho para o Mercado de Trajano ou o Fórum. Quantos deles prestavam atenção na enorme estátua de Garibaldi que tem vista para a Coluna do Janículo acima do Vaticano? Eu tenho a mesma sensação em Atenas; na verdade, aqui ela é ainda mais extrema. De manhã eu visitei o Museu de História Nacional, que se encontra no antigo prédio do parlamento. As exposições que celebravam duzentos anos da Guerra de Independência grega contam a histórias de helenos escravizados contra seus opressores otomanos.
Existem certas peculiaridades a respeito dessa história, como o fato de que ninguém parecia saber dizer precisamente o que ou aonde a “Grécia” era. A tentativa de Alexander Ypsilantis (o Garibaldi Grego) de formar um exército de voluntários conhecidos historicamente como o “Batalhão Sagrado” se deu na Moldávia e Valáquia – hoje Romênia. Como a exposição mostra, os gregos estavam espalhados pelo leste do Mediterrâneo em pequenas e autogovernadas unidades. Eles se imaginavam como uma nação? De todo modo, os curadores leram Benedict Anderson. Uma máquina impressora estava proeminentemente exposta ao lado de “trajes tradicionais” e outros artefatos da vida grega antes da independência. Mas o que mais chama a atenção no museu é como ele está praticamente vazio, apenas eu e um casal americano de meia-idade, os três obedientemente lendo as placas enquanto nos movíamos silenciosamente pela sacada superior.
O contraste com minha visita no começo da tarde à Acrópole foi enorme. Quando finalmente cheguei na bilheteria estava perto do meio-dia, a longa e cosmopolita fila se esticava na minha frente. Trechos de francês, espanhol, italiano, inglês, alemão e russo flutuavam sobre a multidão, mas quase nada de grego. Enquanto esperávamos, o sol nos cozinhava de cima e debaixo ao refletir das pedras de pavimentação de mármore branco que foram instaladas nos anos 1960. Era uma fila agradável: famílias educadas e relaxadas com casais jovens e velhos. Eu era o único sozinho até onde consegui ver; um lembrete pungente que eu deveria estar fazendo isso na companhia dela.
Afixado na bilheteria estava uma placa branca a bandeira da União Europeia, anunciando que a Acrópole havia sido decretada um “Local de Herança Europeia”, declarando que aqui era o lugar “onde a Europa começou”. Aqui, lia-se na placa, democracia, ciência, filosofia e o teatro haviam sido inventados. Já que essas vocações e instituições eram supostamente traços definidores da “Europa”, então ela também deve ter sido inventada aqui. É difícil engolir essa dose imensa de Euro-Ideologia por muitas razões. Primeiro existe uma questão de veracidade. É de fato verdade que, por mais excepcional que a Atenas clássica tenha sido, todas essas coisas foram inventadas na Acrópole? Depois, ainda que fosse verdade, porque seria o nascimento da “Europa”? Como pode a Europa, e pior ainda, a União Europeia, se reivindicar como a herdeira legítima de Atenas? Afinal de contas, até o século XIX existia tanto uma mesquita quanto uma igreja dentro do Partenon; Alexandre, o Grande, espalhou a cultura grega Ásia adentro; e temos também o problema óbvio do Norte da África e a relevância de Aristóteles no mundo muçulmano. Além disso, o que dizer da relação atual entre Europa e Grécia? Chamá-la de tensa seria um eufemismo, dado quanto dano as medidas de austeridade ferozes da Troika fizeram à Grécia. Não é à toa que bandeiras da União Europeia são constantemente destruídas por aqui.
Talvez a questão mais profunda, que cria um elo comum entre Itália e Grécia, seria a dificuldade de ligar um passado pré-nacional de suposta importância universal ao presente nacional que parece uma versão de segunda mão de um Ocidente mais “avançado”. A irritação de Emanuela expressava exatamente isso. Tanto a Itália quanto a Grécia lidam com essa questão: a grandeza de suas civilizações precedeu por séculos o surgimento do Estado-nação, e a universalização dessa forma política os relegou ao status de “semi-periferia”. Dessa forma o paradoxo da identidade grega ou italiana é que esses nacionalismos, apesar de que parecem estar fortemente baseados em um passado carismático, só podem acessar esse passado por meio da mediação de terceiros que legitimam ele como um passado comum “europeu”. A população nacional em ambos os casos está condenada a fazer o papel de curadores de uma herança que não é exatamente sua.
Pode-se entender, então, o ódio que os futuristas sentiam pelo passado, somado à sua fetichização da velocidade, o culto do novo e a elevação de Milão ao status de uma anti-Roma. O futurismo era na verdade uma tentativa de escapar da armadilha da antiguidade por meio do estabelecimento de uma tabula rasa sobre a qual se construiria um espírito nacional renovado. Mas essa tentativa estava fadada ao fracasso, já que o culto futurista do novo era obrigado a fazer referência a, e portanto carregar em si, essa mesma antiguidade que rejeitava.
Ovelha Negra
Devemos ter caminhado por alguns quilômetros seguindo nosso percurso primeiro por distritos de lojas sofisticadas, depois passando pela Praça Sintagma onde o partido comunista fazia um protesto contra o aumento do preço dos combustíveis, antes de finalmente andar pelo caminho de mármore que marca a ponta sulista da Acrópole. O sol se punha e pintava o Partenon de rosa. Giorgos apontou para os enormes apartamentos cujas janelas e sacadas tinham vistas para o templo. Muitos estavam vazios – a consequência do fato de que alguns dos seus donos eram políticos que estavam na cadeia sob acusações de corrupção. Paramos para tirar uma selfie na frente do parlamento helênico e continuamos a andar enquanto ele me dava uma breve lição de história. Seus pontos principais eram os seguintes.
Em primeiro lugar, que a burguesia grega era fundamentalmente diaspórica. Ela havia retornado à “Grécia” só depois de ter sido expulsa das terras otomanas depois do nacionalismo ganhar tração por lá. Segundo, falta à Grécia, historicamente, uma classe de grandes donos de terras. Isso foi parcialmente resultado de uma política de reforma agrária que distribuiu a terra em pequenos lotes. Terceiro, a urbanização grega foi muito rápida nos anos 1960 e isso criou uma paisagem urbana paradoxal; ela é tanto hiper moderna quanto antiga, com pouco entre os dois extremos. As camadas de níveis históricos que sentimos em Londres, Roma ou Paris estão em grande medida ausentes em Atenas.
Nossa conversa se encerrou conforme nos aproximávamos do Ovelha Negra, o restaurante no qual encontraríamos duas colegas de Giorgos, da Fundação Rosa Luxemburg, Rosa e Phoebe. Rosa chegou assim que nos acomodamos na mesa. Ela e Giorgos se abraçaram, e sua conexão parecia incorporar uma série de ligações sobrepostas que pareciam quase de família; eram amigos, colegas, camaradas políticos. Fisicamente os dois eram muito contrastantes: Giorgos era alto, escuro, um pouco acima do peso, tinha um nariz angulado e olhos marrons inteligentes debaixo de suas sobrancelhas definidas; ele parecia um estereótipo “grego”. Rosa, por sua vez, tinha cabelo loiro e feições delicadas. Ela exalava energia, positividade, saúde. A comida chegou, junto com o simples e refrescante vinho que lubrificava toda noite que eu passava em Atenas, e a conversa variou por temas amplos; das aulas de boxe de Rosa e suas observações sobre como os colegas pugilistas pareciam procurar um meio mais gratificante que o desemprego ou seus empregos de merda, ao legado da guerra civil no fim dos anos 1940, até o oeste americano e os pontos fracos do progressismo estadunidense.
Rosa descreveu sua infância como filha de uma família comunista em um vilarejo profundamente conservador, localizado no norte da Grécia. As crianças comunistas, ela explicava, brincavam, comiam e socializavam juntas, e acima de tudo não iam à igreja aos domingos. Seu pai viajava regularmente para a Bulgária para encontrar camaradas e talvez passar suas férias – apesar de que, quando voltava para a Grécia, ele tentava apontar que as coisas não iam tão bem no Norte. Dado seu passado, não é à toa que ela partilhava o nome com a Fundação: Luxemburgo era sua homônima. Phoebe também descreveu sua formação política, explicando que ela havia trabalho em algum cargo de uma agência da ONU em Berlim, mas que havia se desiludido com a impotência da agência e agora estava de volta a Atenas, animada por estar envolvida na Fundação.
Ao fim da noite, coloquei uma pergunta para o grupo. “Vocês conseguiriam se imaginar estando romanticamente envolvidos com alguém que não é de esquerda?” Eles riram, um pouco surpresos com minha questão. Todos, depois de alguma consideração, rejeitaram a ideia. “Pode ser interessante no começo”, disse Rosa, “mas ser de esquerda é adotar uma visão de mundo, um modo de vida”. Os outros concordaram. Isso, é claro, mostra uma diferença importante entre os EUA e os países que tiveram um partido comunista forte ou pelo menos movimentos e partidos marxistas. Na Grécia, Itália ou França, tradições políticas são ancoradas em um meio social que se espalha da esfera da política formal para o tempo livre, amizades e relações amorosas. Nos EUA, no entanto, as esferas da política e da vida comum são claramente separadas. Restringir seus ciclos social e amoroso apenas a pessoa “de esquerda” teria como resultado isolamento social ou algo como pertencer a um culto. É possível que isso esteja mudando em alguma medida agora que o largamente criticado, mas em minha opinião saudável e normal fenômeno da “polarização política” se dá com mais força e clareza.
Mas devemos ser cautelosos nesse ponto, já que a especificidade dos EUA muitas vezes impossibilita comparações e convergências aparentes. O fenômeno da polarização política nos EUA não pode ser entendido nos termos de categorias históricas como esquerda e direita, já que estas surgiram na Europa depois da Revolução Francesa. É possível restringir suas interações sociais exclusivamente a eleitores do Partido Democrata por décadas sem jamais conhecer alguém que seja de fato de esquerda. Isso é verdade mesmo na ala de Sanders, que engloba um espectro amorfo de opiniões, desde tipos de Brandeis partidários de um estado regulador até variáveis do Kautskismo que se abrigam sob a bandeira dos Socialistas Democratas da América. A falta de tradição, ou de um conjunto de referências intelectuais, ou de uma visão de mundo no sentido forte, precisará de décadas para ser reparada. Nesse meio-tempo, ser um estadunidense de esquerda exige uma forma de vivência eclética ou a incorporação de um pluralismo que é muito diferente da experiência descrita por meus anfitriões gregos.
Fritz
A Fundação Rosa Luxemburg é uma organização admiravelmente internacionalista, como seu nome nos faria crer – com filiais em diversos países da Europa, bem como nos EUA e no México. Mas é um internacionalismo com “características alemãs”. Isso é particularmente evidente na diretoria das organizações locais. Cada filial deve ter um diretor alemão; em Atenas, esse posto era ocupado por um homem chamado Fritz. Na tarde da apresentação, ele se destacou imediatamente como um exemplar alemão em meio aos gregos; tinha cabelo branco cortado curto, um nariz triangular, um brinco, e usava uma camisa rosa de linho que parecia um pouco uma roupa de praia. Seus maneirismos ligeiramente formais e deferentes, eram algo que eu ainda não havia experimentado com os gregos. Mas ele revelou ser uma alma profundamente sensível e perceptiva.
Estávamos sentados um de frente para o outro em uma taverna encantadora aonde a Fundação organizou um jantar pós-seminário e ele explicou as dificuldades de sua situação. Acima de tudo, havia a questão da linguagem. Fritz fazia aulas, mas avançava pouco, e o alfabeto grego adicionava mais uma camada de dificuldade. Ele se sentia isolado, e sentia falta de Berlin. No jantar, foi o único a pedir uma cerveja; considerei acompanhá-lo para suavizar seu senso de isolamento, mas acabei escolhendo um vinho porque harmonizava tão bem com a comida. Senti culpa, como se tivesse o traído. Ele então me perguntou se eu tinha família. Era a primeira vez, desde a morte de Emanuela, que essa pergunta surgia nesse tipo de cenário, e me lembrou das inúmeras vezes que eu havia falado dela e descrito nossa vida para pessoas relativamente desconhecidas, depois de apresentar um trabalho ou seminário. Respondi que eu havia tido uma família, mas que minha mulher morreu tragicamente e meu filho agora estudava no Texas.
O pobre Fritz claramente sentiu que havia cometido uma tremenda gafe ao me fazer aquela pergunta, mas era natural que o fizesse, já que eu estava usando, e ainda uso, meu anel de casamento. Na verdade, a pergunta de Fritz surgiu de uma observação que mostrava como ele, ao meu ver, era extraordinariamente observador. Ele disse que durante a sessão de perguntas do seminário eu tocava no meu anel como se tirasse algum conforto disso. Eu nunca havia notado isso, e fiquei grato com seu apontamento. Me senti mais próximo dela. Depois perguntei se ele havia se casado. “Uma vez, por cinco anos”, respondeu. “Nos separamos amigavelmente e percebi que esse tipo de coisa não é pra mim; melhor ficar sozinho.”
Nesse momento, um episódio fascinante começou a se desenrolar. Começou com Rosa, que exercia uma autoridade fácil sobre a conversa no jantar, direcionando a discussão a um misterioso episódio do passado de seu pai envolvendo uma viagem para o Chipre nos anos 1960. Fritz aproveitou essa oportunidade para compartilhar um pedaço extraordinário de sua história familiar. Ele estava mexendo nos papéis de seu avô e encontrou uma carta de recomendação; devia ser dos anos 1930, escrita por um oficial do partido local, carinhosamente recomendando seu avô para um cargo de veterinário. A carta lamentava a circunstância local em que indivíduos que não eram membros do partido estava avançando em suas carreiras enquanto antigos membros do Partido Nazista como o avô de Fritz não conseguiam progredir. A situação era tanto mais escandalosa porque o avô tinha se envolvido em uma importante ação paramilitar como membro da SA (a primeira, e mais plebeia versão da SS) que resultara na morte de um comunista. Fritz ficou obcecado com isso e pesquisou o incidente, que se deu em 1932, para entender melhor a participação do avô nele. Isso o levou à descoberta de uma grande caixa de arquivos, dentro da qual ele encontrou uma fotografia que, para a incredulidade de Fritz, mostrava seu avô não só participando da ação, mas liderando uma coluna de homens da SA na cidade em que o evento ocorreu.
Ele então puxou seu celular e nos mostrou a foto da coluna com um homem careca impositivo na liderança que, segundo Fritz, era seu avô. “O que aconteceu com ele?” perguntou Rosa. E Fritz simplesmente respondeu: “Stalingrado”. Todos nós expressamos algum ceticismo, já que o avô já era um homem de meia idade em 1932 e devia ter mais de cinquenta anos no inverno de 1941. Mas Fritz nos lembrou que ele era veterinário e que pessoas assim eram muito valorizadas pela Wehrmacht por causa da importância dos cavalos no exército de Hitler. “História familiar é algo fascinante”, Rosa afirmou. “Há sempre um segredo obscuro a ser revelado”. “Especialmente entre vocês europeus”, eu brinquei. Ela respondeu, com razão, que certamente haveriam segredos obscuros nas histórias das famílias americanas também. É verdade, eu pensei, ainda que o século XX nos EUA tenha sido relativamente insulado daquelas escolhas políticas fundamentais que muitos europeus tiveram que encarar e que produzem, afinal de contas, os segredos aos quais Rosa se referiu.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Professor de Sociologia da Universidade da Califórnia, Berkeley. Este texto foi originalmente publicado em inglês, na New Left Review, em 13 jan 2023, sob o título Difficult Nations.
[2] Graduando em Ciências Sociais (FFLCH-USP) e em Psicologia no Mackenzie.
Fonte Imagética: Streets of Plaka. Foto de Despina Galani na Unsplash. Disponível em <https://unsplash.com/pt-br/fotografias/qGtpTQrN7VU>. Acesso em 09 fev 2023.