Daniel Estevão Ramos de Miranda[1]
O texto a seguir apresenta uma síntese de um artigo de mesmo título, publicado recentemente na revista Agenda Política (UFSCar).
O período de meados da década de 1980 até meados da década de 1990 foi um divisor na trajetória do Estado brasileiro: tanto a lenta e gradual redemocratização quanto o ciclo de reformas liberais alcançaram um novo patamar nos governos FHC (1995-2002). Nesse contexto, foi criado um Ministério da Administração e Reforma do Aparelho de Estado (MARE), que recebeu atenção desproporcional à sua real influência no processo então em curso de privatização e desregulamentação (MIRANDA, 2014).
Enquanto a Presidência da República e o núcleo “duro” da equipe econômica articulava junto ao Congresso Nacional as reformas que teriam impacto real sobre a estrutura e capacidade de intervenção econômica do Estado brasileiro, parte importante dos críticos e opositores do governo FHC concentrava sua atenção e crítica a documentos do MARE como o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (1995) ou ao A reforma do estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle (1998), de natureza mais acadêmica do que legislativa ou administrativa.
O esforço sistematizador e justificador do MARE fazia parte do movimento mais geral das reformas do governo FHC e, como tais, eram merecedoras de debate crítico, obviamente. Mas o tamanho que o legado do MARE alcançou não foi decorrente de sua contribuição direta para aquelas reformas. Inclusive porque o próprio FHC e seus assessores mais próximos assumiram a atitude de franca desconfiança com as ideias de Bresser-Pereira.
Os conselheiros em administração pública de seu governo eram Eduardo Jorge e Clóvis Carvalho. Há claros sinais de que FHC desdenhou da proposta de Bresser, mas pagou para ver, embora de forma desconfiada (há pelo menos um caso de sondagem direta de FHC a um notório especialista em gestão, sobre as ideias de Bresser) e sob a vigilância atenta de seus ministros mais próximos (MARTINS, 2003, p. 157).
O problema central aqui, então, é: sendo não apenas um ministério pequeno e com escassos recursos, mas também, e principalmente, um órgão que existiu sob a ativa desconfiança do próprio Presidente da República, por que a proposta de reforma gerencial recebeu tanta atenção e se tornou um dos legados mais influentes do governo FHC?
A resposta mais direta é: devido, principalmente, à atuação de Luiz Carlos Bresser-Pereira (doravante somente “Bresser”) como titular do MARE. Plenamente consciente de sua posição marginal no governo e das várias resistências às suas ideias, fora e dentro do governo, o então ministro colocou no centro de sua estratégia de ação as atividades de comunicação e divulgação das novas ideias. Nesse esforço, foi criada a série Cadernos MARE, como 17 números[2], foram publicados artigos em jornais, e também textos do próprio Bresser, prolífico escritor desde a década de 1950.
O MARE não foi a primeira iniciativa intelectual de Bresser no campo de discussões sobre a temática da burocracia. Mais precisamente, destaca-se em seus textos dois empreendimentos intelectuais relativos àquela temática: a tese da tecnoburocracia e a reforma gerencial.
Com relação à primeira, entre as décadas de 1960 a 1980, Bresser desenvolveu a tese de que o capitalismo estaria sendo superado por um novo tipo de sociedade dominado pela tecnoburocracia. Uma tese polêmica e de grande alcance em suas intenções. Contudo, ela não recebeu atenção para além de alguns poucos círculos intelectuais.
Com relação à reforma gerencial, a produção intelectual de Bresser resultou em sua contribuição mais decisiva e mais bem-sucedida ao tema da burocracia. Afirmar isto não implica uma avaliação da reforma em si. Suas iniciativas foram bem-sucedidas enquanto ator político que conseguiu imprimir novos sentidos ao debate sobre Estado e administração pública no país.
Basicamente, os principais efeitos provocados pela atuação de Bresser no MARE, em relação ao debate sobre reforma do Estado no Brasil, foram: 1) fixação de temas e prioridades: emenda constitucional, estabilidade, eficiência, privatização, regulação, etc., na agenda pública (imprensa, políticos, sindicatos etc.); 2) aumento quantitativo da produção acadêmica, ou seja, agenda de pesquisa; 3) enriquecimento de abordagens: gestão pública não mais como tema técnico, mas também da ciência política, sociologia, economia, etc.
É muito difícil fazer uma quantificação da “proliferação” de textos sobre a reforma gerencial de 1995. Somente nas revisões de literatura feitas sobre o tema “reforma do Estado” ainda no início dos anos 2000 (ABRÚCIO e PÓ, 2002; SOUZA e ARAÚJO, 2003), no site pessoal de Bresser, e na Revista do Serviço Público, editada pelo ENAP, é possível encontrar uma quantidade imensa de trabalhos dedicados ao tema. Isso sem contar as inúmeras dissertações e teses produzidas, mas não publicadas.
Tão ou mais importante que esse impacto quantitativo, são os efeitos qualitativos gerados pela proposta de reforma. Essa alteração substancial no debate público e acadêmico, em sua linguagem e agenda, foi possível devido a um trabalho de sistematização feito pela equipe do MARE, tendo Bresser à frente, cujo documento símbolo foi o Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado (BRASIL, 1995).
Portanto, independentemente do sucesso ou fracasso global da reforma do MARE, há relativo consenso entre defensores e críticos de seus impactos sobre o campo de debates relativo à administração pública no Brasil. E, tais impactos foram resultantes, em grande medida, da atuação pública de Bresser.
Tal campo de debate foi remodelado a partir de ideias e conceitos como: reforma gerencial (foco nos resultados ao invés de nos controles tradicionais), público não estatal/publicização, agências executivas, organizações sociais, contrato de gestão, direitos republicanos, social-liberalismo, atividades exclusivas de Estado, governança, entre outros.
Quase nenhum desses conceitos e ideias são de autoria de Bresser. Mas sua circulação nos debates acadêmicos, com repercussões difusas sobre iniciativas reformistas subsequentes, foi decisivamente marcada pela influência de Bresser, cujos textos se tornaram referência obrigatória para qualquer estudioso ou profissional da área de administração pública no Brasil.
Sem dúvidas, o modo de pensar o Estado brasileiro mudou dos anos 1990 em diante não apenas porque o próprio Estado mudou, mas também devido à disponibilidade de uma nova gramática e novo vocabulário sistematizados, em grande medida, por Bresser.
* Este texto não expressa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
ABRUCIO, Fernando Luiz; PÓ, Marcos Vinícios. Trajetórias da literatura sobre reforma do Estado (1995-2002): transformações e desafios para a pesquisa em Administração Pública. Relatório de pesquisa ENAP. Brasília: ENAP, 2002.
BRASIL. Presidência da República. Câmara de da Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado. Brasília, 1995. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/fhc/plano-diretor-da-reforma-do-aparelho-do-estado-1995.pdf. Acesso: 13/03/2023
BRESSER PEREIRA, L.C. A reforma do estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Lua Nova [Internet], n. 45, 1998. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-64451998000300004
MARTINS, H. F. Uma teoria da fragmentação de políticas públicas: desenvolvimento e aplicação na análise de três casos de políticas de gestão pública. Rio de Janeiro: tese de doutorado apresentada à Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, 2003.
MIRANDA, D. E. R.. Reforma Gerencial de 1995: Uma narrativa analítica das origens. PONTO DE VISTA (RIO DE JANEIRO), v. 6, p. 1-21, 2014.
SOUZA, A. R. e ARAÚJO, V. de C. O estado da reforma: balanço da literatura em gestão pública (1994/2002). RSP – Revista do Serviço Público, Ano 54, Número 2, Abr-Jun 2003.
[1] Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), E-mail: mirandacs@yahoo.com.br
[2] Todos disponíveis no site de Bresser: https://www.bresserpereira.org.br/index.php/mare-ministerio-da-reforma-do-estado/cadernos-mare
Fonte Imagética: IPEA. Para Bresser-Pereira, Brasil deve ter uma meta de câmbio. 22 set. 2016. Disponível em: <https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/index.php?option=com_content&view=article&id=28596>. Acesso em: 27 fev. 2023.