Murilo Calafati Pradella[1]
No Brasil, tanto o voto como o alistamento eleitoral são obrigatórios para todos os indivíduos alfabetizados entre 18 e 70 anos de idade, porém são facultativos para cidadãos com idades entre 16 e 18 anos e acima dos 70 anos. O não cumprimento da lei (art. 14, § 1º). implica que, caso o eleitor brasileiro não justifique sua abstenção à Justiça Eleitoral dentro dos prazos legais, deverá ser paga multa à União que pode variar de 3% a 10% do valor de 33,02 UFRIs (Unidade Fiscal de Referência). Em outras palavras, deverá ser desembolsada quantia que varia entre R$ 1,05 (um real e cinco centavos) e R$ 3,51 (três reais e cinquenta e um centavos). Para mais, conforme o Código Eleitoral Brasileiro, artigo 7º § 1º, até regularizar sua situação com a Justiça Eleitoral, o cidadão sofrerá uma série de restrições e punições.
O Brasil compreende o maior eleitorado compulsório do mundo. Ao todo, 24 democracias no mundo adotam o voto obrigatório[2], das quais 11 encontram-se na América Latina. Para além da abrangência, a norma se destaca no país por sua longevidade. A previsão do voto obrigatório no Brasil existe desde a Constituição de 1824. O Código Eleitoral, criado em 1932, e a Constituição de 1934 ratificaram a obrigatoriedade do voto, o que foi repetido pela Constituição de 1988, em vigor no Brasil.
Dada sua importância histórica e o tamanho do eleitorado, o estudo a respeito do comparecimento eleitoral há muito está presente no debate público brasileiro. Além disso, apresenta-se como uma linha teórica bastante consolidada dentro da Ciência Política, sendo uma temática de centralidade para o entendimento das democracias (DAHL, 2005[1972]; SARTORI, 1986). Outrossim, a área de comportamento político também tem uma longa tradição no estudo dos determinantes do comparecimento eleitoral (LIMA-JÚNIOR, 1990; BORBA, 2008; SILVA; GIMENEZ, BORBA e RIBEIRO,2014; RIBEIRO, BORBA e SILVA, 2015).
Embora seja abundante o número de pesquisas que estudam as razões que motivam os brasileiros a participarem das eleições, poucas pesquisas analisam se esses brasileiros participariam caso o voto não fosse obrigatório no Brasil. Essa pesquisa busca contribuir com a literatura explorando duas perguntas: quem são os eleitores brasileiros que não compareceram às urnas nas eleições de 2018? Caso o voto não fosse obrigatório, quem são os brasileiros que deixariam de participar das eleições?
Para respondê-las, revisamos as teorias gerais da participação política, que podem ser resumidas em três principais “escolas”: a teoria da escolha racional (modelo de Downs/escola downsoniana), a teoria psicossociológica (escola de Michigan) e a teoria sociológica (escola de Columbia). A teoria da escolha racional se norteia pela ideia de que os indivíduos são racionais e, portanto, cabe a eles a decisão de irem ou não votar. Essa tomada de decisão perpassa pelo fato de os indivíduos estarem imersos em uma sociedade mercadológica baseada em perdas e ganhos e o que os motivaria a participação é o cálculo de quanto irão ganhar a partir de tal ação, dessa forma um indivíduo escolhe votar naquele que irá o proporcionar os maiores ganhos em diferentes âmbitos de sua vida.
A teoria psicossociológica vincula o comportamento do eleitor a um processo de constituição psicológica que se dá a partir da absorção de determinadas crenças e valores advindos do meio social que ele se encontra. Já para teoria sociológica, a participação eleitoral não pode ser encarada como um processo individual, mas sim deve ser analisado por uma perspectiva de uma ação em grupo, isto é toma por base fatores: estruturais, históricos, culturais, regionais, políticos, sociais e econômicos que contribuem para uma determinação da participação eleitoral da população.
Também, utilizamos os dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB) de 2018. O ESEB é um survey eleitoral nacional aplicado desde 2002 com amostras representativas da população eleitoral brasileira. A pesquisa do ESEB 2018 foi aplicada em escala nacional, contando com 2.506 entrevistas face a face e domiciliares nas cinco diferentes regiões do país: (Norte; Centro-Oeste; Nordeste; Sudeste e Sul), contemplando 127 municípios divididos em todos os 27 estados federativos do Brasil. Além disso, o ESEB de 2018 conta com uma margem de erro de aproximadamente 2,2% e um intervalo de confiança de 95%.
Na edição de 2018, o ESEB disponibilizou duas perguntas que permitem analisar quem são os brasileiros que declararam ter votado (voto declarado) os que teriam ido votar caso fosse facultativo (voto hipotético/facultativo): (1) o voto declarado – “O Sr.(a) votou na última eleição?” – e o voto “hipotético” – (2) “Nas eleições deste ano, se o voto NÃO fosse obrigatório o(a) Sr.(a) teria ido votar?”.
Além das perguntas acima, o ESEB coleta dados referentes às características demográficas e econômicas dos eleitores, bem como uma série de orientações políticas individuais. Com esses dados, a partir de uma abordagem metodológica quantitativa (BABBIE, 2001), será possível determinar qual é o perfil do eleitor que votaria caso o voto não fosse obrigatório – que chamaremos de “voto facultativo” – e o eleitor que declarou ter votado nas últimas eleições – “voto declarado”.
A pesquisa se justifica por contribuir para um debate que não é meramente acadêmico, mas que, de tempos em tempos, chega ao Congresso Nacional. Segundo o estudo eleitoral produzido em 2016 pelo Superior Tribunal Eleitoral (TSE), a partir das manifestações de 2013, alguns projetos de reforma política passaram a tramitar nas casas legislativas federais com maior constância, dentre elas a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 352/2013, que pretende dar fim à obrigatoriedade do voto para torná-lo facultativo, modificando o art. 14, § 1º, no entanto mantendo a obrigatoriedade do alistamento eleitoral para os cidadãos entre 18 e 70 anos. Ainda em 2013, foi proposta uma nova PEC, nº 356/2013, por João Campos – PSDB/GO que além de tornar o voto facultativo, extinguiria também a obrigatoriedade do alistamento eleitoral para maiores de 16 anos.
Ademais, segundo Paulo Henrique Soares (2004), discussões sobre a norma do voto obrigatório é um dos temas mais recorrentes no Congresso Nacional. Uma das mais recentes e impactantes propostas de Emenda Constitucional (PEC) nesse sentido foi votada em maio de 2015. Resultante de uma comissão criada pela Câmara dos Deputados para tratar da Reforma Política, a PEC número 352 de 2013, de Cândido Vaccarezza, do PT de São Paulo, tinha como intuito a efetivação do voto facultativo no Brasil. Em 10 de maio de 2015, ela teve seus diversos pontos analisados e interpretados pelos parlamentares e foi rejeitada em primeira sessão.
Além da importância prática, a pesquisa também contribui ao explorar uma variável ainda pouco explorada: o voto hipotético. Dado que o voto obrigatório é uma constante no Brasil, não é possível comparar como era o voto antes de depois da regra. Por essa razão, uma das formas de se aproximar de uma resposta de como se comportariam os brasileiros é analisar sua resposta diante de uma pergunta hipotética, na qual o voto não fosse obrigatório. Obviamente que a simples declaração da participação não garante a sua efetivação. Sabemos, no entanto, que a atitude é um elemento fundamental e anterior ao comportamento (DALTON, 2000) e, diante das limitações, consideramos ser uma boa oportunidade de explorar questão tão relevante quanto esta.
Nossa análise se baseia em uma metodologia quantitativa e usa técnicas de análise descritiva de dados, como também se vale de modelos de regressão logística, que se trata de extensões do modelo linear de relação entre variáveis explicativas e uma dependente, tendo sido elaboradas para atender variáveis de interesse expressas em categorias, e não em valores contínuos. A partir de tal método é possível estimar a probabilidade de ocorrência de determinado evento.
A fim de identificar quais brasileiros iriam votar caso o voto facultativo fosse introduzido no país, é necessário o uso de um banco de dados que contenha a questão referente a este comportamento, bem como informações sociodemográficas dos respondentes, além de questões a respeito do comportamento político destes cidadãos. Este é o caso do Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB). Nesta primeira parte, serão abordados e analisados os resultados e impactos que as variáveis de Sexo, Idade e Escolaridade apresentam na decisão do brasileiro de ir ou não as urnas em um cenário hipoteticamente facultativo.
Diferenças por Sexo, Idade e Escolaridade
A Tabela 1 é uma tabela de contingência que cruza ainformação do voto facultativo por sexo do respondente. De acordo com ela, 63% dasmulheres não votariam caso o voto não fosse obrigatório. Já entre os homens essepercentual é menor, de 53%. O teste do Qui-quadrado aponta para uma magnitude de24.9 e o V de Cramer de 0,1, a uma significância estatística de p< 0,01. Assim,podemos estar seguros de que existe uma diferença estatística entre homens e mulheresno voto facultativo.
Tabela 1 – Voto facultativo por sexo
Mulher | Homem | |
Não votaria | 822 63,57% | 624 53,65% |
Votaria | 471 36,43% | 539 46,35% |
Total | 1293 100% | 1161 100% |
Cramér’s V = 0,1006
FONTE: Dados do autor, com base no ESEB 2018
Por outro lado, ao analisarmos a Tabela 2, do voto declarado, podemos notar que a diferença percentual entre homens e mulheres é menor. Entre as mulheres, 81,6% disseram ter votado nas últimas eleições. Já entre os homens esse percentual foi de 79,9%. O valor do Qui-quadrado e do V de Cramer também são menores, apesar de estatisticamente significativa. (p = 0,009). Isso quer dizer que homens e mulheres votaram quase na mesma proporção, com uma baixa diferença entre eles.
Tabela 2 – Voto declarado por sexo
Mulher | Homem | |
Não Votou | 241 18,38% | 238 20,14% |
Votou | 1070 81,62% | 944 79,86% |
Total | 1311 100% | 1181 100% |
Cramér’s V = 0.0688
FONTE: Dados do autor, com base no ESEB 2018
Lendo as duas tabelas em conjunto podemos perceber que caso o voto não fosse obrigatório muitas pessoas cogitariam não votar no Brasil. Entretanto, o número de mulheres que pensa dessa forma é substantivamente maior do que o de homens. Logo, temos um indicativo de que, se a regra da não obrigatoriedade fosse abolida, os homens poderiam, potencialmente, participar mais do que as mulheres.
Na Tabela 3 e 4, testamos os efeitos para a faixa etária. Na Tabela 3, do voto facultativo, podemos perceber que não há um padrão muito bem delimitado pelas faixas. O maior contraste está entre a faixa etária mais nova, de 16 a 24 anos, em relação à mais velha, de 61 anos ou mais. Nesse caso, 62,9% e 51,3% não participariam caso o voto fosse facultativo, respectivamente. Podemos dizer, nesse sentido, que existe apenas uma leve tendência, na qual a faixa etária mais jovem deixaria de votar em maior medida se comparada à faixa etária mais velha. Esse resultado corrobora pesquisas mais recentes sobre a participação política que demonstram que os mais jovens estão cada vez menos engajados nas formas tradicionais de participação, como o voto e a filiação partidária, e mais engajados em formas alternativas, não eleitorais (RIBEIRO e BORBA, 2010).
Tabela 3 – Voto facultativo por idade
Voto facultativo | De 16 a 24 | De 25 a 40 | De 41 a 60 | 61 ou mais |
Não votaria | 257 62,99% | 479 58,49% | 535 60,25% | 175 51,32% |
Votaria | 151 3,01% | 340 41,51% | 353 39,75% | 166 48,68% |
Total | 408 100% | 819 100% | 888 100% | 321 100% |
Cramér’s V = 0.0688
FONTE: Dados do autor, com base no ESEB 2018
Quando olhamos para a Tabela 4, o padrão é inverso. As faixas etárias intermediárias, de 25 a 40 e de 41 a 60, são as que mais participam. Ou seja, é na “vida adulta” que estão concentrados os maiores percentuais de participação. Além disso, o voto abaixo de 18 e acima de 60 já é facultativo no Brasil, o que acaba estimulando essas faixas etárias a comparecerem menos às urnas do que as demais. O resultado para a idade demonstra que o voto obrigatório estimula a participação dos adultos. Porém, ao observar o que fariam, caso o voto fosse facultativo, vemos que os mais velhos tendem a querer participar mais do que os jovens.
Tabela 4 – Voto declarado por idade
De 16 a 24 | De 25 a 40 | De 41 a 60 | 61 ou mais | |
Não votou | 98 23,44%% | 161 19,54% | 140 15,59% | 80 22,66% |
Votou | 320 76,56% | 663 80,46% | 758 84,41% | 273 77,34% |
Total | 418 100% | 824 100% | 898 100% | 353 100% |
Cramér’s V = 0.0780
FONTE: Dados do autor, com base no ESEB 2018
O nível de escolaridade dos participantes apresentou um efeito moderado, não apresentando mudanças estatísticas muito impactantes nos dois diferentes cenários no ponto de vista estatístico. Na tabela 5 analisamos substancialmente a escolaridade daquelas indivíduos que declararam que votariam caso o voto fosse facultativo no brasil em 2018 e notamos que a diferença percentual do índice de participação entre os grupos analisados é pequena, ou seja, o efeito da variável da escolaridade não se apresentou de maneira tão intensa como se esperava inicialmente, uma vez que no contexto brasileiro quanto maiores forem os indicativos socio econômicos maiores serão as chances de um indivíduo ir às urnas em dias de votação, como já apontou Aguiar e Casalecchi (2021), como também maior será seu interesse por política (Nicolau 2022). A diferença entre os índices de participação do grupo mais escolarizado para o de menor escolaridade é menor do que 7%, enquanto aqueles que estudaram até o Ensino Fundamental apresentam uma taxa de participação hipotética de 41,7% e os que possuem ensino superior apresentam 48,39%.
TABELA 5 – Voto facultativo por escolaridade
Até Ens. Fund. | Até Ens. Médio | Superior | |
Não Votaria | 330 58.30 | 828 62.16 | 288 51.61 |
Votaria | 236 41.70 | 504 37.84 | 270 48.39 |
Total | 566 100.00 | 1.332 100.00 | 558 100.00 |
Cramér’s V = 0.0860
FONTE: Dados do autor, com base no ESEB 2018
Quando focalizamos a análise para os dados de Tabela 6, podemos notar que os dados do cenário de voto obrigatório apresentam pouca diferença do que os apresentados no cenário hipotético. Ou seja, isso evidencia que a norma da obrigatoriedade apresenta pouco impacto quanto ao índice de participação de indivíduos de diferentes níveis de escolaridade. Enquanto cerca de 80% dos indivíduos que estudaram até o ensino fundamental declaram terem votado, aproximadamente 85% dos que possuem ensino superior declararam terem ido às urnas, uma diferença de 5% entre os dois grupos e uma diferença que não chega a 2% nos dois diferentes cenários.
Tabela 6 – Voto declarado por escolaridade
Declaração do voto | Até Ens. Fundamental | Até Ens. Médio | Superior | Total |
Não Votou | 114 19.86 | 280 20. 71 | 85 14.99 | 479 19.21 |
Votou | 460 80.14 | 1072 79.29 | 482 85.01 | 2014 80.79 |
Total | 574 100.00 | 1.352 100.00 | 567 100.00 | 2.493 100.00 |
Cramér’s V = 0.0588
FONTE: Dados do autor, com base no ESEB 2018
Nesta missão de compreendermos quais são a variáveis que determinam o perfil do eleitor brasileiro que iria às urnas e participariam efetivamente dos pleitos caso as eleições fossem facultativas, mobilizamos ainda algumas outras variáveis, como a diferença regional dos participantes da pesquisa, a religião, a renda e o interesse por política. Os resultados obtidos e analisados para essas variáveis e algumas conclusões são apresentados na segunda parte deste texto.
*Este texto não expressa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do
CEDEC.
Referências bibliográficas:
BORBA, J. e RIBEIRO, E. “Participação convencional e não convencional na América Latina”. Revista Latino Americana de Opinión Pública, 2010
BORBA, J., 2008. As bases sociais e atitudinais da alienação eleitoral no Brasil. Revista Debates, v. 2, pp. 134-157.
CASALECCHI, G. A.; AGUIAR, N. N. E se o voto fosse facultativo? Expectativas de participação eleitoral voluntária no Brasil e o papel do status socioeconômico. Campinas: opinião pública, 2021
CASALECCHI, G. A.; AGUIAR, N. N. Participação política, voto e estrutura: avaliando o impacto do status socioeconômico sobre a predisposição do eleitor brasileiro votar voluntariamente. Belo Horizonte: 10º encontro associação brasileira de ciência política, 2016.
DAHL, R. Uma Crítica do Modelo de Elite Dirigente. In: AMORIM, Maria Stella.
DALTON, Russel J. (2000), “The decline of party identifications”, in R. J.
DOWNS, A. (1957), An economic theory of democracy. Nova Iorque, Harper & Row.
LIMA JR, O. A alienação eleitoral e seus determinantes. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 14, ano 5, 1990.
NICOLAU, Jairo Eleições no Brasil: Do Império aos dias atuais. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2012
SARTORI, G. (1986), “The influence of electoral systems: faulty laws or faulty method?”, in B. Gofman e A. Lijphart, Electoral laws and their political consequences, Nova York, Aghaton Press.
SILVA, Rafael da; Gimenez, Éder; Borba, Julian; Ribeiro, Ednaldo. et al. Votos brancos e nulos no Brasil: bases cognitivas e atitudinais. Teoria & Pesquisa. Revista de Ciência Política. Vol. 23, No 2. 2014
[1] Mestrando em Ciência Política na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar/PPGPOL). E-mail: mucpradella@gmail.com.
[2] Democracias que adotam o voto obrigatório: Argentina, Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, República Democrática do Congo, Costa Rica, República Dominicana, Equador, Egito, Grécia, Honduras, Luxemburgo, México, Nauru, Paraguai, Peru, Samoa, Singapura, Tailândia, Uruguai, Turquia, Liechtenstein.
Fonte Imagética: Entenda como é eleito o presidente da República (TSE). Disponível em <https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Outubro/entenda-como-e-eleito-o-presidente-da-republica>. Acesso em 16 mar 2023.