Ana Paula Corti[1]
Este texto é uma reprodução do capítulo 10 da obra organizada por CORTI, Ana Paula; CÁSSIO, Fernando; STOCO, Sérgio (Org.). Escola pública: práticas e pesquisas em educação. Santo André, SP: Editora UFABC, 2023. p. 123-135. As inserções no texto após termos/palavras-chave em caixa alta referem-se a outros capítulos da obra. Agradecemos à autora e aos organizadores pela autorização para publicação.
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O Ensino Médio foi incorporado recentemente à Educação Básica, ou seja, à escolaridade mínima exigida para o pleno exercício da cidadania e para a inclusão social. Um olhar histórico mostra que, até então, ele havia sido uma etapa reservada às elites condutoras e à classe média letrada do país.
A “popularização” do Ensino Médio não foi um projeto de Estado. Não houve planejamento estatal do alongamento da escolaridade básica para além dos oito anos obrigatórios do Ensino Fundamental. Entretanto, esse alongamento tornou-se inevitável quando maiores parcelas da população passaram a ingressar e a concluir o Ensino Fundamental. Isso ocorreu a partir dos anos 1970, mas assumiu um caráter massivo nos anos 1990. Em 1991, no Brasil, 83,8% das crianças entre 7 e 14 anos já estavam frequentando o Ensino Fundamental e os níveis de aprovação e conclusão aumentavam, criando uma demanda efetiva para o Ensino Médio, a etapa posterior.
Os dados de matrícula e as matérias jornalísticas da década de 1990 mostram que essa demanda por Ensino Médio não encontrou espaço no sistema de ensino: não havia escolas de Ensino Médio nem vagas para acomodar essa população. Formavam-se longas filas na porta das escolas dias antes da matrícula, com familiares revezando-se e, por vezes, até dormindo na rua para garantir uma vaga para os filhos. Havia também o que foi chamado na época de “bingo das vagas”, um sorteio realizado em estádios e ginásios com base em uma senha recebida pelas famílias. Havia escolas que usavam o “vestibulinho” para selecionar os estudantes, uma prova de conhecimentos do Ensino Fundamental que era criada pela própria escola de Ensino Médio.
A falta de vagas era noticiada pelos jornais a cada início de ano letivo, mostrando que os jovens queriam estudar, mas que não havia escola para eles. Diante disso, os governos estaduais eram muito pressionados pela opinião pública. A resposta que eles deram para acomodar a pressão popular por vagas nas escolas estaduais foi: aumentar o período de funcionamento das escolas, inserindo turmas de Ensino Médio no período noturno; desativar laboratórios e salas de leitura para criar novas salas de aula; ampliar as unidades escolares existentes, construindo “anexos” para aumentar salas de aula; comprar contêineres para abrigar salas de aula emergenciais; desdobrar períodos e adotar rodízios de turmas ao longo da semana letiva. Essa situação de falta de planejamento do Estado e de adoção de medidas de emergência e improviso ajudam a explicar os problemas de infraestrutura que existem no Ensino Médio até hoje.
Assim, observamos que o “motor propulsor” da expansão do Ensino Médio não foram as reformas e as políticas educacionais. Estudos sobre a história da educação brasileira[2] mostram que a democratização da educação básica com a incorporação de novos segmentos sociais antes excluídos do DIREITO À EDUCAÇÃO [Ver capítulo 2] foi fruto de pressão das classes médias e pobres por acesso à escola, o que ocorreu também com o Ensino Médio[3]. A escolarização das elites foi um projeto do Estado, mas isso não ocorreu com a instrução das classes populares para além do ensino primário.
A partir da massificação do Ensino Médio, os governos nacionais passaram a produzir políticas públicas para esta etapa escolar, privilegiando a criação de reformas curriculares, destacando-se a reforma de 1998, realizada no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), e a de 2017, aprovada no governo Michel Temer. Podemos dizer que essas foram as duas reformas realizadas após a emergência de um Ensino Médio de massas, e passaremos a discuti-las. Sugerimos denominá-las como diferentes “atos” de um mesmo “espetáculo reformista” que, ao fim e ao cabo, buscou administrar, controlar e cercear o alongamento da escolarização dos jovens das classes populares, visando direcioná-lo para um mínimo necessário ao ajustamento dos jovens ao MUNDO DO TRABALHO [Ver capítulo 11] e ao exercício de uma cidadania subalterna. Ambas as reformas emergiram de uma sociedade com níveis decrescentes de proteção social e de democracia, processos que marcaram a implantação do projeto neoliberal no Brasil desde os anos 1990.
1º ATO: REFORMA DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, EM 1998
Em 1998, já era público e notório que o Ensino Médio brasileiro havia passado por uma intensa expansão e que não era mais aquela “escola secundária das elites”, inacessível para a maioria da população. Não havia mais os exames de admissão, os vestibulinhos haviam reduzido seu alcance nas redes estaduais, e a “cara” do Ensino Médio havia mudado. Em 1998, foram contabilizadas 6.967.905 matrículas no Ensino Médio brasileiro. Reconhecendo as mudanças, o governo FHC lançou uma Reforma do Ensino Médio[4], composta pela elaboração de Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a criação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O foco era “modernizar” o currículo, trazendo as noções de habilidades, competências, interdisciplinaridade e contextualização do conhecimento, substituindo a antiga concepção conteudista com ênfase na memorização e na erudição. O governo defendia um ensino mais flexível, que ajudasse os jovens a se adaptarem aos diversos tipos de arranjos ocupacionais, diante de um MUNDO DO TRABALHO EM CRISE [Ver capítulo 11], com aumento do desemprego, da informalidade e diminuição dos ganhos salariais.
O governo FHC obteve empréstimo junto ao Banco Mundial, para realizar reformas de algumas escolas e financiar a formação dos professores dentro do novo currículo para o Ensino Médio. Entretanto, pouco se fez para melhorar as condições estruturais de funcionamento das escolas e a qualidade efetiva do ensino. Nesse sentido, Krawczyk[5] afirma que a reforma de FHC incidiu mais na organização e gestão escolares, bem como nas condições do trabalho docente do que sobre o processo de ensino-aprendizagem.
Em sua pesquisa, Krawczyk percebeu que a falta crônica de professores no Ensino Médio, juntamente com a noção inovadora de áreas de conhecimento como espaços mais amplos de organização do conhecimento trazida pela reforma, estava sendo compreendida por gestores dos estados investigados como possibilidade de maximizar o aproveitamento de professores ministrando diversas disciplinas. Focalizando o impacto desta reforma nas redes estaduais, a autora deparou-se com uma GESTÃO TECNOCRÁTICA [Ver capítulo 6] e burocratizada, com POUCA PARTICIPAÇÃO DE PROFESSORES E DAS COMUNIDADES [Ver capítulos 3 e 4], gerando ausência de reflexão e de trabalho coletivo no cotidiano escolar.
A reforma propunha uma modernização do Ensino Médio apoiada na gestão, apostando em MODELOS GERENCIAIS [Ver capítulo 6] e descentralizadores que “terceirizavam” para as escolas a responsabilidade pelos resultados nas AVALIAÇÕES EXTERNAS [Ver capítulo 5], que surgiram naquele período, porém sem investir na carreira docente e no aumento de sua capacidade intelectual de planejar os processos educativos. Isso gerou incapacidade de os sistemas de ensino efetivamente traduzirem a reforma em melhoria do ensino-aprendizagem.
Vemos que os professores são um elemento central para a obtenção de êxito em reformas curriculares, e o baixo investimento em sua CARREIRA [Ver capítulo 7] juntamente com o baixo aproveitamento de suas capacidades intelectuais foram entraves concretos ao êxito da reforma de FHC.
2º ATO: REFORMA DE MICHEL TEMER, EM 2017
A Lei n. 13.415/2017 foi aprovada quase 20 anos depois da reforma anterior, em um período que registrava 7.930.384 matrículas. O Ensino Médio trazia problemas não resolvidos do passado, mas estes encontraram uma nova configuração política, econômica, demográfica e educacional.
A partir da segunda metade dos anos 2000, o Ensino Médio passou a ocupar mais espaço nas políticas educacionais, bem como no debate público, nos meios de comunicação, nos projetos de organizações não governamentais e, principalmente, em programas mantidos por institutos e fundações empresariais, tais como Instituto Unibanco, Instituto Ayrton Senna, Fundação Itaú Social, entre outros.
A expansão de matrículas tinha encontrado um “teto” no ano de 2003, pois em 2004 começaram a diminuir, e nos anos posteriores alternaram entre pequenas oscilações e estabilização. Portanto, diferente da reforma anterior, a de 2017 não foi feita em um contexto de crescimento das matrículas. Porém, a estabilização do número de alunos passou a ser denunciada como aspecto preocupante, uma vez que o Ensino Médio não havia sido universalizado, de modo que, em 2017, apenas 68,4% dos jovens entre 15 e 17 anos estavam estudando nessa etapa: uma parte dos jovens estava ainda no Ensino Fundamental e outra estava fora da escola. Outro ponto que gerava preocupação era o fraco desempenho dos jovens brasileiros de 15 anos no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA).
Tais questões foram o fermento que fez crescer o discurso sobre a crise do Ensino Médio. Algo precisava ser feito para tornar a escola mais atrativa e mais efetiva em termos das aprendizagens que os alunos conseguem demonstrar nas avaliações internacionais. Foi a partir dessas preocupações que foi criada uma proposta de Reforma do Ensino Médio, em 2013, pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG). Como estava sendo apresentada pelo Poder Legislativo, tratava-se de um Projeto de Lei, o PL n. 6.840/2013. Porém, essa primeira proposta foi engavetada com a crise política do Brasil a partir de 2014, em que as atenções ficaram voltadas ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff e à Operação Lava-Jato.
Com o afastamento da presidenta, em 2016, Michel Temer assumiu a Presidência da República e apresentou, no final daquele ano, uma Reforma do Ensino Médio, mas dessa vez como um projeto do Poder Executivo, na forma de Medida Provisória, a MP n. 746/2016.
Finalmente, em 2017, a proposta foi aprovada pelo Congresso Nacional – Lei n. 13.415/2017 –, instituindo: uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de 1.800 horas, a ser complementada com variados itinerários formativos, conforme a oferta do sistema de ensino e a escolha dos jovens[6]. Dessa forma, o Ensino Médio massificado, que antes era uma formação geral para todos, perdeu essa característica para se tornar um ensino segmentado.
Um dos pontos mais importantes é a retirada das disciplinas do Ensino Médio tal como as conhecemos, e sua transformação em conhecimentos que poderão ser oferecidos aos alunos em outros formatos, com exceção de Língua Portuguesa, Matemática e Língua Inglesa, que foram mantidos como disciplinas curriculares. Além disso, a nova lei permite que 20% do Ensino Médio seja realizado a distância, e que sejam contratadas pessoas para dar aula que não tenham o diploma de professor (o que a lei denomina pessoas com “notório saber”). Não fica claro nessa reforma como a qualidade de ensino poderia ser melhorada. Na verdade, muitas pessoas receiam que aconteça o contrário, que o Ensino Médio se torne ainda mais precário sem as disciplinas já conhecidas, sem a necessidade de professores profissionalizados e sem a obrigatoriedade do ensino presencial.
A precarização da CARREIRA DOCENTE [Ver capítulo 7] também está presente na atual reforma, bem como o aprofundamento da desvalorização da dimensão intelectual do trabalho do professor, com a ênfase nas tecnologias digitais e no notório saber. A reforma de 2017 gera intensificação do trabalho docente, pois os professores precisam assumir um número maior de componentes curriculares, em itinerários formativos muitas vezes irreconhecíveis e estranhos à sua formação, e que são evitados no momento da atribuição das aulas.
De fato, um estudo realizado em 2022 pela Rede Escola Pública e Universidade (REPU) sobre o “Novo Ensino Médio”[7] revelou que a criação dos itinerários formativos piorou ainda mais a falta de professores na rede estadual paulista, gerando uma situação bastante grave: em abril de 2022, já no final do 2º bimestre letivo, 22,1% aulas dos itinerários formativos do Ensino Médio ainda não haviam sido atribuídas a nenhum docente. Os períodos vespertino e noturno, que atendem estudantes trabalhadores dos estratos socioeconômicos mais baixos, são os mais prejudicados: esses estudantes tiveram em média um dia e meio a menos de aula por semana; ou seja, tiveram acesso a apenas 70% da formação prevista na Lei n. 13.415/2017.
Com relação à promessa da reforma de oferecer maior liberdade de escolha aos estudantes, o estudo da REPU aponta que 35,9% das escolas estaduais de São Paulo (1.327 escolas) ofereceram apenas dois itinerários formativos aos estudantes no primeiro semestre de 2022, limitando severamente a sua liberdade de escolha. Nos 334 municípios paulistas que possuem apenas uma escola estadual de Ensino Médio, 168 (50,3%) escolas ofertam apenas dois itinerários formativos. Também ficou demonstrado que as escolas que ofertam maior número de itinerários formativos são as que atendem estudantes com nível socioeconômico mais elevado; isto é, estudantes mais pobres estudam em escolas com menor liberdade de escolha. Assim, os dados mostram uma faceta preocupante da atual reforma do Ensino Médio: a indução e o aprofundamento das desigualdades escolares. Evidenciam-se, assim, os efeitos negativos de uma política pública que busca produzir mudanças educacionais profundas sem realizar os investimentos necessários para tanto.
As duas reformas aqui analisadas prometem mudanças curriculares supostamente “modernizadoras”, mas, na verdade, encobrem o não enfrentamento das condições de precariedade histórica do Ensino Médio massificado, que sequer teria sido expandido se não fosse a pressão da população. Uma vez consolidada a sua oferta, as elites do país, que nunca tiveram interesse pela educação do povo, trataram de utilizar a estrutura do Estado para promover reformas educacionais superficiais e incapazes de afetar aquilo que é o coração da qualidade do ensino em qualquer escola: a formação dos estudantes, a REMUNERAÇÃO [Ver capítulo 7] e as condições de trabalho dos professores para que eles queiram e possam ensinar bem.
PARA SABER MAIS
CÁSSIO, Fernando; GOULART, Débora Cristina. A implementação do Novo Ensino Médio nos estados: das promessas da reforma ao ensino médio nem-nem. Retratos da Escola, Brasília/DF, v. 16, n. 325, p. 285-293, 2022. Disponível em: <https://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/1620/1108>.
CORTI, Ana Paula de Oliveira. Ensino Médio: a expansão das matrículas nos anos 1990. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 1, p. 41-68, 2016. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/edreal/v41n1/2175-6236-edreal-41-01-00041.pdf>.KRAWCZYK, Nora. O Ensino Médio no Brasil. São Paulo: Ação Educativa, 2009. Disponível em: <www.bdae.org.br/bitstream/123456789/2342/1/emquestao6.pdf>.
SILVA, Monica Ribeiro da. A BNCC da reforma do Ensino Médio: o resgate de um empoeirado discurso. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 34, e214130, 2018. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/edur/v34/1982-6621-edur-34-e214130.pdf>.
[1] Socióloga, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). E-mail: anapaulacorti@gmail.com
[2] BEISIEGEL, Celso de Rui. A qualidade de ensino na escola pública. Brasília, DF: Líber Livro, 2006; SPOSITO, Marília Pontes. O povo vai à escola: a luta popular pela expansão do ensino público em São Paulo. São Paulo: Loyola, 1984; SPOSITO, Marília Pontes. A ilusão fecunda: a luta por educação nos movimentos populares. São Paulo: Hucitec / Edusp, 1993; ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
[3] CORTI, Ana Paula de Oliveira. À deriva: um estudo sobre a expansão do ensino médio no estado de São Paulo (1991-2003). Tese (Doutorado em Educação). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.
[4] É importante dizer que a reforma educacional de FHC, nos anos 1990, teve como alvo principal o Ensino Fundamental, criando políticas de focalização e de financiamento prioritário nessa etapa. Mas, no final da década, houve também ações direcionadas ao ensino médio, ainda que esse não fosse o foco privilegiado do Estado brasileiro naquele momento.
[5] KRAWCZYK, Nora. A escola média: um espaço sem consenso. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 120, p. 169-202, 2003. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/cp/n120/a10n120.pdf>.
[6] São cinco itinerários: (1) Linguagens e suas Tecnologias; (2) Matemática e suas Tecnologias; (3) Ciências da Natureza e suas Tecnologias; (4) Ciências Humanas e Sociais aplicadas; e (5) Formação Técnica e Profissional.
[7] REDE ESCOLA PÚBLICA E UNIVERSIDADE. Novo Ensino Médio e indução de desigualdades escolares na rede estadual de São Paulo [Nota Técnica]. São Paulo: REPU, 02 jun. 2022. Disponível em: <www.repu.com.br/notas-tecnicas>.
Fonte Imagética: Foto de Thought Catalog na Unsplash. Disponível em <https://unsplash.com/pt-br/fotografias/RdmLSJR-tq8>. Acesso em 30 mar 2023.