Matheus de Carvalho Barros[1]
Neste texto apresento sinteticamente um artigo de minha autoria, e de mesmo título, publicado recentemente na revista Cadernos de Campo (Unesp). Ele foi fruto de pesquisa desenvolvida na graduação em Sociologia (UFF), cujo resultado foi a monografia Um condenado da terra nas trilhas do materialismo histórico: Florestan Fernandes e o marxismo. Naquele momento pesquisei a presença do marxismo em diferentes momentos da trajetória política e intelectual de Florestan Fernandes, sobretudo com ênfase em sua fase dita “madura”. O artigo deriva do terceiro capítulo do meu trabalho monográfico.
O objetivo do artigo foi analisar o marxismo de Florestan Fernandes a partir de 1975 com a publicação de A Revolução Burguesa no Brasil. A tradição teórica oriunda de Karl Marx está presente na vida e na obra do sociólogo paulistano desde a década de 1940, quando Florestan traduz e escreve uma introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política de Marx, em 1946, a convite de Hermínio Sacchetta, como parte de suas tarefas de militante do Partido Socialista Revolucionário (PSR) – organização trotskista ligada à Quarta Internacional.
Entretanto, é somente a partir da década de 1960, na medida em que a posição política e científica de Fernandes assume uma postura mais radicalizada – devido à conjuntura histórica – que a relação do sociólogo paulistano com a teoria marxista irá se aprofundar. A tradição oriunda de Marx passa a ter outra conotação na vida e na obra de Florestan. Significado este que não é apenas sociológico, mas fundamentalmente ligado à uma práxis política socialista e à investigação das forças sociais capazes de contribuir para a destruição da ordem social capitalista no Brasil.
Em meados dos anos 1970, Florestan Fernandes passa a produzir de forma mais intensa e sistemática trabalhos de análise política. Segundo José Paulo Netto (1987), numa reconstrução teórico-revolucionária da constituição da formação social brasileira, faz emergir um pensador que, a partir de então, se dedica também a tematizar aspectos internos da teoria marxiana e marxista. Nesse sentido, o tema do socialismo consolida-se de forma definitiva em seus escritos, particularmente na sua fase assumidamente publicista (- nos artigos de jornais, revistas, conferências, simpósios etc. – ) (TOLEDO, 1998). Nesse período, destacam-se as obras: Circuito fechado de 1976; Da Guerrilha ao Socialismo: a revolução cubana de 1979; Brasil em Compasso de Espera de 1980; e O que é Revolução de 1982.
Sendo assim, a partir da análise desses escritos, o objetivo do artigo foi analisar a relação entre o sociólogo paulistano e a tradição marxista, buscando apontar que a assimilação principal que Florestan Fernandes fará do marxismo em sua fase mais madura se dá em termos do resgate da concepção de revolução, ou da edificação de uma teoria e de uma ciência revolucionária que correspondesse às especificidades do Brasil e da América Latina.
O artigo foi dividido em cinco partes. Nas duas primeiras – intituladas O pós-Revolução Burguesa e o dilema da revolução brasileira, respectivamente – foi realizada uma análise sobre a conjuntura sócio-histórica de radicalização política e teórica do sociólogo paulistano, assim como, sua adesão ao marxismo.
Analisando as particularidades da transformação capitalista na periferia, em 1975, Florestan Fernandes publica uma de suas obras mais importantes. Segundo Carlos Nelson Coutinho (2000), é o primeiro texto onde o marxismo é assumido explicitamente como ponto de vista metodológico pelo sociólogo paulistano. Refiro-me aqui à obra Revolução Burguesa no Brasil.
Para José de Souza Martins (2006), o livro em formato de ensaio ganha sentido no ambiente intelectual do debate brasileiro sobre o tipo de sociedade capitalista que estava se desenvolvendo no Brasil. Desta forma, A Revolução Burguesa poderia ser vista como o último grande estudo do ciclo de reflexões históricas e sociológicas abrangentes, sobre o destino histórico do Brasil.
A Revolução Burguesa no Brasil equivaleria, em certo sentido, a obra O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia de Lenin, um marco nos estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo em sociedades diferentes da Europa Ocidental (Martins, 2006). O sociólogo argumenta que a interpretação de Florestan sobre o processo da lenta e complicada revolução burguesa no Brasil tem como um dos seus aspectos mais positivos o distanciamento de um marxismo determinista e engessado. Em outras palavras, o marxismo de Florestan Fernandes se contrapôs a todo de tipo de vulgarização da tradição oriunda de Marx que propõe uma concepção de história regida por “etapas inexoráveis, segundo um modelo abstrato de processo histórico” (MARTINS, 2006, p. 18). Modelo esse que corresponderia a um etapismo mecanicista e a uma visão antidialética da realidade.
A partir da publicação de A Revolução Burguesa no Brasil a questão do socialismo não se constituía como um assunto entre outros na obra de Florestan Fernandes. Para ele – particularmente nas últimas décadas de sua produção intelectual -, o socialismo era, a rigor, uma questão vital e decisiva em sua obra. Mais do que isso, o socialismo era uma questão existencial, a qual Florestan Fernandes se dedicou integralmente do ponto de vista ético, político e intelectual (TOLEDO, 1998).
Portanto, a inflexão radical no pensamento de Florestan Fernandes se dá em seu confronto prático e teórico com a contrarrevolução burguesa (forma como ele denominava a ditadura civil-militar instaurada com o golpe de 1964). O desenvolvimento dessa inflexão é centrado na análise e na explicação da realidade brasileira. Nessa perspectiva, segundo Netto (1987), a compreensão da estrutura interna dos processos históricos-sociais brasileiro e latino-americano exige de Florestan o resgate de categorias próprias da tradição marxista. O decisivo é que tal resgate é processado a partir do material de pesquisa, ou seja, é o movimento real que requer o arsenal heurístico. Desta forma, “a recuperação categorial marxista não resulta de um exercício intelectivo: ela se opera no tratamento concreto do material histórico” (NETTO, 1987, p. 297). Nesse contexto, conceitos como “democracia” e “revolução” – inspirados nas formulações de Marx, Engels e Lenin – se tornam fundamentais na produção teórica do sociólogo paulistano.
A terceira e a quarta seção do artigo – intituladas Um novo tipo de sociedade na América: a Revolução Cubana e O Marxismo Latino-americano: Florestan e Mariátegui – analisam o interesse de Florestan Fernandes pelos dilemas latino-americanos assim como seu interesse pela produção política e sociológica do marxismo no Novo Continente. Para tal empreitada, em primeiro lugar, analisei os escritos de Florestan sobre a revolução liderada por Fidel em 1959, contidos no livro Da Guerrilha ao Socialismo: a revolução cubana, publicado em 1979. Em seguida, avaliei a recepção e difusão da obra de José Carlos Mariátegui empreendida pelo sociólogo paulistano.
Fernandes será um dos responsáveis pela divulgação da obra do teórico peruano no país. Mais do que isso, foi justamente o autor de A integração do Negro na Sociedade de Classes, “o primeiro grande impulsionador da obra Mariateguiana no Brasil, de fato” (PERICÁS, 2010, p. 345). Foi por incentivo de Florestan que, em 1975, a editora Alfa Ômega conseguiu publicar, pela primeira vez no país, os Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, originalmente publicado em 1928, e considerado como o mais influente estudo histórico de uma nação da América do Sul (RUBBO, 2016).
Enfim, na quinta e última seção – intitulada O materialismo histórico como ciência revolucionária – analiso uma introdução escrita por Fernandes em 1983 à coletânea de escritos de Marx e Engels sobre a história, publicada pela coleção “Grandes cientistas sociais” da editora Ática. Esse é um dos textos mais importantes para entender a relação do Florestan “maduro” com o marxismo. Nesse momento específico de sua trajetória, como já mencionado anteriormente, a assimilação principal que o sociólogo paulistano fará do marxismo se dá em termos do resgate da concepção de revolução ou da edificação de uma teoria revolucionária.
Costa (2007) aponta que a leitura detida dos clássicos e dos teóricos marxistas mais atuais possuiria, no caso, esse objetivo mais fundamental de pensar as especificidades da revolução socialista no Brasil e na América Latina. Nesse sentido, não somente na introdução à coletânea de Marx e Engels sobre a história, mas também na introdução da coletânea de escritos de Lenin publicada em 1978, assim como em alguns pequenos textos de intervenção, os aspectos tratados por Florestan Fernandes são justamente os que enfatizam a constituição do materialismo histórico como uma ciência revolucionária.
Nesses escritos, o sociólogo paulistano advoga o desenvolvimento de uma ciência social histórica que combine, intrínseca e objetivamente, a crítica de si mesma com o conhecimento crítico da ordem existente. Florestan defende uma ciência social que se manifeste como:
teoria e prática, como expressão autêntica da verdadeira ciência em sua capacidade de transcender ao enquadramento ideológico burguês e de fazer parte do movimento que abale o presente estado de coisas, isto é, de ser comunista, de identificar-se com a situação de interesses da classe dos trabalhadores e com o que ela significa para o advento e o desenvolvimento de um novo ciclo histórico revolucionário (FERNANDES, 1983, p. 37).
Desta forma, nesses textos, Fernandes quer demonstrar que o marxismo desenvolve um padrão integrativo de ciência ou de conhecimento sócio-histórico e político, envolvendo a apreensão da realidade em diferentes níveis interdependentes. Ele destaca, sobretudo, que a junção entre teoria e prática proposta pela tradição oriunda de Karl Marx, permite que a ciência assuma um caráter instrumental a serviço da revolução social.
Portanto, acredito que uma das discussões mais recorrentes em torno da obra de Florestan Fernandes tem sido o debate sobre o lugar do marxismo no seu horizonte teórico. A maioria dos comentadores de sua obra aceita a noção de que a herança de Marx se configura como mais uma das perspectivas, dentre outras, da explicação sociológica presente no pensamento teórico de Florestan. Contudo, a partir desta breve incursão por alguns aspectos da trajetória e da obra do mais importante sociólogo brasileiro, é possível argumentar que a sociologia de Florestan Fernandes sofreu um profundo e constante impacto do marxismo.
Se em um primeiro momento de sua trajetória – mais especificamente na empreitada de consolidar a sociologia como uma ciência no Brasil – a relação do sociólogo paulistano com o marxismo residia na preocupação de identificar as contribuições metodológicas de Marx às ciências sociais, em um segundo momento de sua vida ele irá ressignificar essa relação.
A partir da segunda metade da década de 1960, o marxismo passa a ter outra conotação na vida e na obra de Florestan Fernandes. Diante de seu embate com a ditadura civil-militar e a amarga experiência do exílio, o sociólogo paulistano passa a defender um padrão científico engajado, intrinsecamente subordinado aos interesses das classes subalternas. Nesse contexto, para Fernandes, a tradição de Marx passa ser não apenas uma ferramenta de interpretação da realidade concreta, mas fundamentalmente um instrumento de transformação radical. Portanto, analisar a trajetória de Florestan Fernandes, sobretudo as suas obras mais “maduras”, significa mergulhar em um dos capítulos mais relevantes da incorporação do marxismo nas ciências sociais brasileira.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas:
BARROS, Matheus de Carvalho. O materialismo histórico como ciência revolucionária: Florestan Fernandes e o marxismo no pós Revolução Burguesa. Rev. Cadernos de Campo/ Araraquara / n. 32 / p. 43-66 / jan/ jun. 2022.
COSTA, Diogo V. de A. O marxismo na sociologia de Florestan Fernandes. In: 31º Encontro Anual da ANPOCS, 2007, Caxambu MG. 31º Encontro Anual da ANPOCS, 2007.
COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e “imagem do Brasil” em Florestan Fernandes. In: Id., Cultura e sociedade no Brasil. Ensaios sobre ideias e formas. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
FERNANDES, Florestan. Introdução in: K. Marx e F. Engels: história. Organizador (coletânea) FERNANDES, F. SP: Ática, 1983.
MARTINS, José de Souza. Prefácio in: A revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica/ Florestan Fernandes – 5.ed. – São Paulo: Globo, 2006.
NETTO, José Paulo. “A recuperação marxista da categoria de revolução”. In: Maria Angela D’Incao (org.), O Saber Militante: Ensaios sobre Florestan Fernandes. Rio de Janeiro/São Paulo, Paz e Terra/Unesp – 1987.
PERICÁS, L. B. José Carlos Mariátegui e o Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, n. 24, v. 68, pp. 335-61 – 2010.
RUBBO, Deni Alfaro. Nossoirmão mais velho: Florestan Fernandes, leitor de Mariátegui. Lua Nova [online]. n.99, pp.79-105 – 2016.
TOLEDO, Caio de Navarro. Utopia e socialismo em Florestan Fernandes. In: MARTINEZ, Paulo (org.), Florestan ou o sentido das coisas. São Paulo: Boitempo, 1998.
[1] Doutorando em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ). Bacharel e mestre em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador do Núcleo de Estudos Comparados e Pensamento Social (NEPS-UFRJ/UFF). Possui interesse nas áreas de Teoria sociológica, Teoria marxista e pensamento social latino-americano. E-mail: carvalho_barros@id.uff.br
Fonte Imagética: Jornal da USP. Florestan Fernandes raro e inédito chega às livrarias. 24 abr. 2018. Fotografia do Arquivo do Jornal da USP. Disponível em: <https://jornal.usp.br/cultura/florestan-fernandes-raro-e-inedito-chega-as-livrarias/>. Acesso em: 31 mar. 2023.