Allegra Levandoski[1]
A ascensão da extrema direita brasileira é um fenômeno recente, que atrai os olhares de analistas das mais diferentes áreas. O intuito é o mesmo: compreender e identificar possíveis causas que explicam essa transformação da política nacional, mas também, como um deputado federal do “baixo clero” se tornou presidente da República.
Jair Messias Bolsonaro, um ex-militar reformado do Exército, no ano de 2018, foi capaz de se eleger como presidente do Brasil em meio a uma disputa política jamais vista antes na história do país. Uma corrida presidencial marcada pela polarização da sociedade, o fim da alternância de poder entre os tradicionais Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB) e uma campanha pautada pelo uso das redes sociais. Uma série de transformações que questionam grande parte das interpretações até então vigentes no campo da Ciência Política (NICOLAU, 2020).
Mas como compreender essas mudanças? Quais seriam os elementos capazes de explicar esse evento para além de perspectivas de fortalecimento do discurso conservador? São essas e outras questões que o presente texto pretende responder. Para cumprir essa tarefa, utilizo-me das categorias de antipetismo reativo e antipetismo cultural (LEVANDOSKI, 2020). Essas noções foram formuladas a partir da compreensão dos conceitos de antipartidarismo reativo e antipartidarismo cultural de Torcal, Gunther e Montero em Anti-party sentiments in Southern Europe (2001).
Semelhantemente, essas categorias à luz do estudo de discursos de jornais e declarações na Câmara dos Deputados permitiram a minha elaboração das noções de antipetismo reativo e antipetismo cultural em iniciação científica desenvolvida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da professora Mayra Goulard. Ambas categorias foram obtidas a partir do entendimento do antipartidarismo e da negação política de agremiações específicas como fator determinante de análise.
Do antipartidarismo ao antipetismo no Brasil
O debate acerca dos partidos no Brasil e as respectivas relações de identidade que estes estabelecem com a sociedade não são temáticas novas, tanto para cientistas políticos brasileiros, quanto para os brasilianistas que se dedicam a explorar o tema como Perry Anderson (2020), Nicolau Jairo (2020) e entre outros.
Contudo, apesar das possibilidades de divergências quanto à literatura especialista no assunto, o senso comum e a avaliação do clássico texto Os partidos políticos e a democracia, de Peter Mair (2001), sugerem um ponto de acordo: a crise da representatividade das agremiações políticas. Mais especificamente, “as funções representativas dos partidos estão em declínio e foram assumidas, pelo menos parcialmente, por outros organismos” (MAIR, 2001, p. 285).
Mas o que isso significa? E qual seria a relação dessa crise com a existência de uma suposta perspectiva negativa da população brasileira perante aos partidos e, mais especificamente, ao PT? Uma parte da resposta para essas perguntas estaria não somente na metamorfose de atribuições que as siglas partidárias exercem, mas, sobretudo, na existência de uma leitura negativa sobre as mesmas.
As perspectivas críticas acerca dos partidos podem ser divididas em duas grandes interpretações como sugerido por Torcal, Gunther e Montero (2001): o antipartidarismo cultural, aquele cuja reação negativa aos partidos se dá pela existência de uma cultura política já estabelecida de valoração de um passado ideal e autoritário. Ou, a segunda tipificação de antipartidarismo, o reativo. Portanto, aquele cuja rejeição se organiza em termos de reação à conjuntura atual, crises econômicas e escândalos de corrupção. Tratam-se de modalidades distintas, cujas temporalidades e capilarização do sentimento antipartidário no indivíduo se organizam de maneira única, de um lado própria de uma culturalização e educação política, e de outro, resposta ao momento presente.
É com base nessa breve categorização obtida pelos autores, sobre modelos de antipartidarismo, que proponho uma nova reflexão acerca dos eventos entre Junho de 2013, a instauração do processo Lava Jato e a condenação de figuras públicas da política nacional e, enfim, ao processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. São todos esses eventos de ordem conjuntural e de crise política do país que podem ser associados com o surgimento de uma avaliação negativa do Partido dos Trabalhadores. E como se pretende defender neste texto, do antipartidarismo reativo ao PT.
Trata-se de uma afirmação que pode ser verificada por meio da análise do discurso ━ frequência de temas mencionados ━ de leitores e de representantes de diversos segmentos sociais (elite econômica, elite cultural, etc.). Para isso, investiguei os painéis de comentários e entrevistas nos jornais A Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo. A análise de dados qualitativos foi feita entre o período de 2 de dezembro de 2015 a 12 de maio de 2016, dados estes comparados com os discursos de Jair Bolsonaro no plenário da Câmara Federal no mesmo período.
Nesse sentido, ao elaborar uma série de gráficos que visaram comparar diferentes eixos temáticos como “Corrupção”, “Moral/Bons Costumes”, “Economia”, entre outros, foi possível obter dentre os resultados alguns dados relevantes. Assim foi possível constatar, por exemplo, que o tópico referido como de bons costumes ━ o qual se define como citações favoráveis ao tradicionalismo e a evitação de comportamentos considerados desviantes ━ obteve uma frequência de apenas 10,53% nos discursos de manifestantes. No mesmo período, Bolsonaro o mencionou em 23.81% de suas falas em plenário como deputado federal.
Ainda mais evidente é o caso do tema “Patriotismo”. O parlamentar abordou o assunto em quase 50% (42.86%) de seus discursos, enquanto que a classe Manifestantes, por sua vez, fez referência a ele em apenas 9.65% das ocasiões.
Aplicando o mesmo tratamento quantitativo às falas elaboradas por líderes partidários, movimentos políticos e sociais em comparação com as de Bolsonaro, alguns dos resultados parciais obtidos foram: a “Corrupção” é mencionada em 38.10% das declarações de Bolsonaro, e apenas 5.48% do establishment político. Semelhantemente, o “PT” (Partido dos Trabalhadores) também recebe um maior número de menções negativas por parte do ex-deputado federal (42.86%), um contraste de mais de 30% com a Elite Política.
Gráfico 1 – Frequência de Declarações (Manifestantes X Bolsonaro)
Por fim, a avaliação das diferenças entre os representantes dos setores produtivos quanto e as percepções de Bolsonaro. De forma sumária, destaca-se a menor frequência de declarações por parte do líder político em relação a pautas econômicas como: “Economia” (19.05%) e “Empresariado” (4.76%), assim como a menor relevância das “Manifestações/Insatisfação Popular” (33.33%) do que para a Elite Econômica (53.49%).
Mas quais são as conclusões parciais que podem ser obtidas em termos gerais, com a aplicação dessa metodologia? A principal delas é a presença de um discurso pouco ou nada conservador por civis e suas subcategorias, em contraste com a defesa de uma agenda abertamente reacionária por Bolsonaro.
Com base nesses resultados sumários, é possível admitir o Partido dos Trabalhadores como um possível exemplo prático do entendimento de antipartidarismo reativo. Isso porque, apesar de pesquisa do DataFolha em outubro de 2022 sugerir o PT como a sigla de maior identificação partidária, com 35%, a mesma foi a que mais aglutina sentimentos negativos (39%). Além disso, é visivelmente criticada por manifestantes entrevistados em temas de ordem política, econômica e institucional (LEVANDOSKI, 2020).
Desse modo, a existência de um conjunto de polêmicas ao tempo de enfraquecimento econômico e político do Brasil de 2016 permite o surgimento do antipetismo. Para além, o aparecimento de novas figuras públicas como Bolsonaro ━ o qual já revelava trajetória exponencial de votos no Rio de Janeiro entre os anos de 2010 (120.646 mil) e 2014 (464.572 mil) ━ permite contribuir nesse entendimento de descontentamento político e o surgimento de um vazio institucional que foi preenchido por sua figura de forma abrupta.
Conclusões parciais
Ao buscar responder a pergunta de pesquisa “É possível observar correlações entre os discursos mobilizados por Bolsonaro e os mais diferentes segmentos sociais no decorrer do processo de impeachment de Dilma Rousseff e amplas mobilizações de rua?”, deduzo que existem correlações parciais. A eclosão política ocorrida entre os anos de 2015-2016 estaria mais relacionada ao que é denominado como antipetismo reativo (LEVANDOSKI, 2020) do que com o surgimento inédito de uma agenda conservadora.
Contudo, é importante evidenciar desde já que a defesa de uma abordagem de antipartidarismo reativo (TOCAL; GUNTHER; MONTERO, 2001) não significa a negação da emergência de atores (até então ocultos) contrários a políticas de gênero, direitos reprodutivos, redistribuição de renda e dentre outras medidas.
Para além disso, ao abordar os dados até então apresentados com a leituras sobre antipartidarismo, é possível perceber a predominância de temas próprios do período 2015-2016, como “Economia”, “Governo Federal Executivo”, “Crise Política” e o “Partido dos Trabalhadores” ao invés de uma maior quantidade de discursos, por parte dos segmentos sociais, atacando a democracia ou direitos humanos. Esse argumento busca ir de encontro com a interpretação do antipetismo reativo versus antipetismo cultural.
Por fim, é possível concluir que Jair Bolsonaro possivelmente se beneficiou da existência de uma crise de representação e vácuo político para catalisar a indignação social e catapultar sua eleição, ao tempo que, com a existência de um núcleo fiel de partidários bolsonaristas, se tornou capaz de cumprir sua agenda moral.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova, ou do Cedec.
Referências bibliográficas
LEVANDOSKI, Allegra. Análise de discurso bolsonarista em perspectiva comparada com o lulismo. Revista do CFHC: Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 1-4, 2020.
MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, set/dez. 2017.
NICOLAU, Jairo. 2020. O Brasil Dobrou À Direita: Uma Radiografia Da Eleição De Bolsonaro Em 2018. Rio de Janeiro: Zahar.
PAIVA, D; KRAUSE, S; LAMEIRÃO, P. A. “O eleitor antipetista: partidarismo e avaliação retrospectiva. Campinas: Opinião Pública,, vol. 22, p. 638-674 no 3, dezembro, 2016.
TATAGIBA, L.; TRINDADE, T.; CHAVES TEIXEIRA, A. C. Protestos à direita no Brasil – 2007/2015. In: VELASCO E CRUZ, S.; KAYSEL, A.; CODAS, G. (orgs.). Direita, volver! O retorno da direita no ciclo político brasileiro. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, p. 197-212, 2015.
TORCAL, M.; GUNTHER, R.; MONTERO, J. R. “Anti-party sentiments in Southern Europe”. Working Paper, no 170, 2001.
VEIGA, L. “Os partidos brasileiros na perspectiva dos eleitores: mudanças e continuidades na identificação partidária e na avaliação das principais legendas após 2002”. Opinião Pública, vol. 13, no 2, p. 340-365, 2007.
[1] Graduanda do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH – USP). É pesquisadora do Laboratório de Partidos, Eleições e Política Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LAPPCOM – UFRJ). E-mail: allegralevandoski@usp.br
Fonte Imagética: Agência Brasil. Alckmin e Aécio são vaiados em ato contra o governo na Avenida Paulista. 13 mar. 2016. Fotografia de Rovena Rosa/Agência Brasil. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-03/ato-pro-impeachement-na-avenida-paulista-tem-presenca-de-lideres-politicos>. Acesso em: 04 abril 2023.