Camila Monteiro Corvisier[1]
Hannah Lourdes Ramos[2]
João Pedro Gomes Balanco[3]
Introdução
A Teoria Política, bem como outras áreas de conhecimento acadêmico, sempre foi majoritariamente marcada por trabalhos masculinos, ainda que as mulheres tenham produzido trabalhos filosóficos e políticos ao longo da história (BERGÈS, COFFEE, 2016). Mais recentemente, figuras femininas e seus trabalhos têm sido resgatados, recuperando uma parte esquecida – pois obliterada – da tradição filosófica e política. Parte da justificativa para este ensaio reside, assim, na recuperação da figura de Mary Wollstonecraft e de seu pensamento enquanto filósofa e arguta observadora da política de seu momento. Embora as obras de Wollstonecraft já tenham sido trabalhadas em estudos de gênero e estudos literários (BERGÈS, COFFEE, 2016), é necessário observar os escritos da autora enquanto filósofa, contribuindo para um estudo mais detalhado de seus argumentos e de sua construção retórica.
Nesse sentido, justifica-se o estudo de uma dentre as várias questões de sua obra Reivindicação dos Direitos da Mulher (2016 [1792]): a apropriação do conceito de tirania, considerando como a autora constrói de forma retórica o problema que aponta. Este argumento aproxima Wollstonecraft do debate de sua época, mesmo que não seja tratado aqui diretamente, e mostra como a filósofa inglesa alarga o campo de discussão sobre a tirania ao mostrar que não apenas as mulheres estão submetidas a ela, mas também a praticam sobre si mesmas. Baseamo-nos nos capítulos 2, 3 e 4 de Reivindicação dos Direitos da Mulher, a saber, “Discussão sobre a opinião prevalecente acerca do caráter sexual”, “Continuação do mesmo assunto” e “Observações sobre o estado de degradação a que, por causas diversas, se encontra reduzida a mulher”. Nosso propósito é examinar mais detidamente, com base sobretudo nos estudos sobre retórica de Quentin Skinner (2001, 2017) e John Pocock (2013), e como este é um forte argumento de Wollstonecraft, trabalhado especialmente nestes capítulos iniciais, ainda que apenas almejemos brevemente lançar as bases para a discussão e não esgotar a análise.
A retórica de Mary Wollstonecraft
Antes de prosseguirmos com o estudo da retórica em Mary Wollstonecraft, cabe apresentar em linhas gerais a perspectiva de Quentin Skinner e John Pocock para a investigação em História das Ideias. Em Significado e interpretação na História das Ideias ([1969] 2017), Skinner defende o estudo específico para compreender os significados e usos dos conceitos e ideias na argumentação de seu contexto, debruçando-se na especificidade e nas intenções dos atores, que são ofuscadas por outras interpretações baseadas no essencialismo das “questões perenes”. Skinner propõe estudar além do que os textos clássicos disseram, focando naquilo que estão fazendo ao escrever; em outras palavras, as intenções dos pensadores: “compreender o que pretendiam dizer ao dizê-lo” (SKINNER, 2017, p. 390). Segundo Skinner (2017), para captar as intenções no ato comunicativo do ator é necessário situá-lo em seu contexto linguístico e social e recuperar os fatos para compreender o significado do texto.
Não pretendemos situar a obra de Mary Wollstonecraft em um contexto linguístico, mas brevemente destacar outra dimensão: a mobilização retórica. Neste sentido, Skinner possui contribuições para a discussão da obra da filósofa inglesa do século XVIII. A teoria dos atos de fala proposta pelo autor aparece, posteriormente, como uma retórica: o uso de certos termos está inserido em contextos linguísticos que determinam seu tom descritivo e valorativo, e esses atos ilocucionários apresentam consequências. Como expõe Quentin Skinner (2001, p. 181-2), a forma como o vocabulário normativo é manipulado pode introduzir novos sentidos em seu contexto, pois o objetivo é persuadir o interlocutor e, com isso, produzir uma mudança conceitual através da retórica. Dessa forma, ocorre a apropriação de linguagens por grupos alterando seu sentido para legitimar um comportamento e ponto de vista.
Neste escopo, Quentin Skinner (2001) analisa as estratégias possíveis de se adotar para gerar o efeito ilocucionário de persuadir e convencer o seu leitor a enxergar de outro modo um ponto de vista moral. A manipulação retórica dos termos permite que as sociedades legitimem ou questionem sua identidade moral (SKINNER, 2001, p. 149). O autor elenca duas estratégias retóricas: a primeira consiste na “manipulação do ato de fala potencial de certos termos valorativos” (SKINNER, 2001, p. 151)[4] e por meio dessa estratégia, pode-se tanto inserir novos termos na linguagem quanto manipular termos existentes, transformando-os em neutros ou favoráveis ao ponto de vista moral e ideológico. Por sua vez, a segunda estratégia consiste em “manipular os critérios para aplicar um conjunto existente de termos elogiosos” (SKINNER, 2001, p. 153)[5]; isto é, a aplicação de termos favoráveis para a descrição do próprio comportamento que é aparentemente questionável. É também desenvolvida por Skinner a técnica da paradiástole, ou redescrição retórica [rethorical redescription], que se dá pela descrição de uma ação ou estado de coisas mobilizando termos valorativos-descritivos que não seriam comumente utilizados. O intuito é colocar o comportamento descrito sobre um novo ponto de vista moral e o efeito que se busca é a persuasão e legitimação do comportamento.
John Pocock (2013), por outro lado, retoma a teoria de Ferdinand Saussure, principalmente os conceitos parole e langue. O autor mobiliza os dois conceitos associando o primeiro ao ato de fala individual, a agência e ação, enquanto o segundo é referente ao contexto linguístico, o vocabulário assimilado pelo ator. Nesse sentido, o historiador do discurso político deve estabelecer como necessidade prioritária o estudo da “linguagem ou linguagens em que determinada passagem do discurso político estava sendo desenvolvida” (POCOCK, 2013, p. 31). Entre essas linguagens, há as sublinguagens, como os idiomas e a retórica. Estamos interessados nos idiomas ou modos de discurso existentes dentro dessa língua. A agência do ator histórico é ressaltada em sua relação com o contexto linguístico.
A retórica é um caráter, uma sublinguagem que se origina no interior do discurso político como modos de argumentação e, portanto, há uma constante ação da fala sobre a língua, da parole sobre a langue, que reinventa e altera as regras do jogo do contexto linguístico. Como consequência, o historiador do discurso político deve partir da langue para parole, compreender a inovação, a performance e o lance, as mudanças das regras do jogo – evidentemente, o contexto continua sendo fundamental para esse conhecimento. Ou seja, o historiador também estuda uma “história da retórica”, sobre como os grupos se apropriam e expropriam de linguagens na disputa de termos para alterar o seu sentido. Nas palavras de Pocock, esse uso antinômico da linguagem por diferentes grupos pode ser posto da seguinte forma: “o uso, pelos governados, da linguagem dos governantes, de maneira a esvaziá-la de seus significados e reverter seus efeitos” (POCOCK, 2013, p. 68). Trata-se, assim, também nos termos de Pocock, de uma retórica da hostilidade.
A retórica de Mary Wollstonecraft é permeada por essas estratégias, se considerarmos como o conceito de tirania, nosso enfoque, era mobilizado por diversos autores de sua época referindo-se ao que poderíamos genericamente intitular de “poder político”, e Wollstonecraft apropria-se dele para observar a condição das mulheres. No entanto, como sugere Barbara Taylor (2016), apesar de Wollstonecraft estar convencida de que a culpa é dos homens, o “peso retórico” [rhetorical weight] da autora recai com força sobre as mulheres, em uma linguagem depreciativa que por vezes afasta o leitor moderno. Taylor (2016, p. 225) defende que é preciso olhar para uma sugestão presente em Wollstonecraft: os costumes [manners] podem ser, ao mesmo tempo, degradantes e empoderadores para as mulheres.
Por isso, é preciso atentar cautelosamente para a forma como a mobilização retórica é adotada por Wollstonecraft. É interessante notar, inclusive, como a autora deixa o seu estilo de escrita evidente aos leitores, como forma de combater a tirania que ela mesmo evidencia, logo na introdução da Reivindicação:
[…] se eu expressar minha convicção com o sentimento e a energia que sinto quando penso no assunto, alguns de meus leitores serão tocados pelos ditames da experiência e da reflexão. Animada por esse importante objetivo, abdicarei de escolher minhas frases ou polir meu estilo. Pretendo ser útil, e a sinceridade me fará sem afetações, já que, preferindo persuadir pela força de meus argumentos, em vez de deslumbrar pela elegância de minha linguagem, não perderei tempo com circunlóquios nem com a fabricação da retórica bombástica e túrgida dos sentimentos artificiais, que, vindos da cabeça, nunca chegam ao coração. Estarei preocupada com coisas, não com palavras! E, na ânsia de tornar as pessoas do meu sexo membros respeitáveis da sociedade, tentarei evitar aquela dicção floreada que se move lentamente dos ensaios aos romances e, destes, às cartas familiares e conversações. (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 28).
A subversão do conceito tirania: homens tiranizam mulheres
Em linhas gerais, no segundo e no terceiro capítulo da Reivindicação, intitulados “Discussão sobre a opinião prevalecente a respeito do caráter sexual” e “Continuação do mesmo assunto”, Wollstonecraft dá sequência à seguinte tese: “até que as mulheres sejam educadas de forma mais racional, o progresso da virtude humana e o aperfeiçoamento do conhecimento encontrarão contínuos obstáculos” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 63). Essa tese é contrária à noção de que as mulheres nasceram para satisfazer as necessidades dos homens e crítica ao debate de que há uma natureza nas mulheres que as levam a serem irracionais e escravas dependentes do sexo masculino.
Nessa linha argumentativa, a autora executa uma mobilização retórica interessante e poderosa: a subversão da teoria do direito divino dos reis. Wollstonecraft se apropria do vocabulário corrente, instrumentalizando-o contra os seus adversários – é a reversão dos efeitos explicitada por Pocock. O termo aparece como direito divino dos maridos. Essa manipulação do vocabulário corrente permite tanto que a autora avance em uma reversão do seu sentido, atrelando o termo à necessidade de contestar esse direito divino que permite a dominação dos homens sobre as mulheres, quanto que faça uso da ironia, pois ao vincular o poder dos maridos ao direito divino, Wollstonecraft sugere sua ilegitimidade, como eles próprios sabem.
Para argumentar a favor desta estratégia retórica durante esses dois capítulos, Wollstonecraft constrói e fortalece a noção de que o poder exercido pelos homens sobre as mulheres é tirânico. Tirânico no sentido de que esse poder é utilizado para reforçar uma falsa ideia que as mulheres não conseguem ou não desejam combater: a de que homens e mulheres têm objetivos de vida diferentes por causa de seu sexo. A distinção dos sexos é a causa pela qual o entendimento e a razão são negligenciados às mulheres (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 81), tornando-as de pouca força mental e incapazes de serem dotadas de virtudes. Ou melhor, instaurando a ideia de que as mulheres precisam ser dotadas de certas virtudes, como a paciência, a docilidade, o bom-humor e a flexibilidade, incompatíveis com o exercício do intelecto (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 83).
Para além de categorizar a opressão masculina como uma forma de tirania, a autora se utiliza de um artifício retórico muito comum nesta obra. Talvez, inclusive, o que é mais recorrentemente utilizado quando ela contra-argumenta as noções de seus contemporâneos sobre gênero: a questão de que, ao desqualificar as mulheres, os homens estão sendo irracionais e agindo de maneira pouco filosófica. Dentre seus alvos, Jean-Jacques Rousseau se sobressai, criticado pelo que Wollstonecraft classifica como as “extravagantes quimeras de Rousseau” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 62). Ao transgredir o vocabulário e as noções correntes, Wollstonecraft se utiliza da ironia para dizer que, no período iluminista, no qual ela mesma escreveu, pode-se questionar sem perigo, apesar dos “contestadores ruidosos” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 63) irracionais que se colocam contra a inovação. A sua ironia ao longo destes capítulos – que permeia toda a obra – também se mostra no uso exacerbado de pontos de exclamação, marcas da convicção da autora e de sua escrita sem afetações.
Outra mobilização retórica que podemos destacar é acerca do conceito de despotismo, que podemos caracterizar como uma manipulação do ato de fala potencial. Ao expor a maneira como as meninas são tratadas, de modo a reproduzir a dependência da mente e a fragilidade, este conceito adquire uma nova configuração e sentido: mostrar como as meninas, posteriormente mulheres, são conduzidas ao confinamento e à fragilidade feminina pela dominação masculina. No trecho a seguir, ao relatar a conversa com uma mulher da alta sociedade que se vangloriava de sua delicadeza e sensibilidades, a autora nos mostra como ela opera o conceito de despotismo:
Tal mulher é um monstro irracional quanto alguns imperadores romanos, depravados por um poder sem lei. Contudo, uma vez que os reis têm sido mais controlados pela lei e pelo freio, mesmo que débil, da honra, os anais da história não registram exemplos tão inaturais de loucura e crueldade, tampouco o despotismo que mata a virtude e o gênio no nascedouro, pairando sobre a Europa com tal explosão destrutiva que desola a Turquia e torna os homens, assim como a terra, estéreis. (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 67, grifos nossos)
Desse modo, Wollstonecraft subverte a dimensão que é utilizada no conceito de despotismo: ao invés de ser o governo dos reis propriamente dito, a autora introduz a questão acerca da criação das mulheres, a negação de suas virtudes ao nascerem e de uma educação que cultive seu intelecto. Enquanto os homens são ensinados desde a infância a realizar uma multiplicidade de tarefas, as mulheres são confinadas e escravizadas para as ocupações dóceis. A razão para essa subserviência encontra-se no “orgulho e pela sensualidade do homem e por seu desejo míope do domínio, semelhante ao dos tiranos[…]” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 68, grifos nossos). Do mesmo modo, o conceito de tirania também é mobilizado contra aqueles que a exercem, como denúncia dos homens.
Observamos, portanto, que Wollstonecraft se apropria e ressignifica os conceitos de despotismo e tirania ao explicitar a escravidão das mulheres. A autora promove uma inovação linguística e novas dimensões são colocadas sobre os conceitos. Além disso, são mobilizados contra aqueles que o enunciam, pois iguala os homens aos reis tirânicos. Ou seja, é a parole atuando sobre a langue, a agência sobre o contexto para desnudar as falácias que se reproduziam sobre as mulheres.
Tais estratégias retóricas elencadas acima, além de reforçar a tese da necessidade de uma educação formal para homens e mulheres como forma aperfeiçoamento do conhecimento, também mostram o objetivo de realizar dois argumentos muito fortes e relevantes para a Reivindicação como um todo. Primeiro, assim como os homens, as mulheres também possuem capacidade e direito de desenvolver suas virtudes físicas e mentais e a razão.Segundo, a opressão das mulheres é realizada tanto por homens “conservadores” quanto por aqueles que se consideram “iluminados”, e corroborada pelas próprias mulheres. Esses dois argumentos convergem e se sobrepõem repetidamente com o passar dos capítulos, nas discussões sobre o fortalecimento do corpo e da mente, do amor, da amizade e do casamento, embora não nos detenhamos neles aqui.
De modo geral, Wollstonecraft constrói uma linha argumentativa que parte da premissa de que tanto os homens quanto as mulheres são dotados de razão, devendo se curvar apenas à autoridade dela, o que permite conduzir toda a humanidade à virtude e à felicidade (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 73). Desta forma, o sexo masculino impede o aperfeiçoamento do conhecimento e da existência humana quando designa ao sexo feminino os papéis únicos de mães, companheiras ou escravas; pois, ao fazê-lo, as mulheres são condenadas e estimuladas a cultivar somente a sensibilidade, a delicadeza e a fraqueza. Os homens constrangem as mulheres a agirem irracionalmente, pois são consideradas as qualidades esperadas da feminilidade em oposição às qualidades masculinas, entendidas como a força, a vitalidade e a racionalidade. O desenvolvimento das virtudes mentais está intimamente vinculado ao das virtudes físicas; portanto, a exaltação da “graça” e da “beleza” do corpo fragilizado da mulher faz parte do projeto de dominação dos homens. Essa dominação permite não apenas que os homens mantenham seu poder sobre as mulheres, como também as convence de que essa “beleza” as favorece de alguma forma, tanto em relação aos homens quanto em relação às mulheres, além de criar uma falsa ideia de naturalidade da fraqueza do sexo feminino (BERGÈS, 2013, p. 61).
Por sua vez, as diferentes educações destinadas a homens e mulheres são despóticas no sentido de ensinar as mulheres a aceitar e até mesmo se vangloriar desta ordem estabelecida. Como interpreta Bergès, mais do que simplesmente a falta de educação, Wollstonecraft culpa o tipo errado de educação recebido pelas mulheres (BERGÈS, 2013, p. 99). Dessa forma, por meio do cultivo desses vícios destinados a elas, as mulheres também podem se tornar tiranas ao adquirir poder, já que essas vias são consideradas injustas por Wollstonecraft (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 67).
Apesar disso, é importante reconhecer que a autora não afirma que há uma igualdade natural inquestionável entre homens e mulheres, pois, como mencionaremos adiante, questiona-se que não se sabe se as qualidades física e mental das mulheres é igual a dos homens, já que nunca lhes foi permitido desenvolvê-las:
Deixemos espaço para que suas [das mulheres] faculdades se desenvolvam e suas virtudes ganhem força e, então, decidiremos qual deve ser a posição do sexo feminino, por inteiro, na escala intelectual. […] Mais ainda, se a experiência provar que elas não podem atingir o mesmo grau de vigor mental, de perseverança e de força moral, deixemos que suas virtudes sejam do mesmo tipo, ainda que elas lutem em vão para obter o mesmo grau; e a superioridade do homem será igualmente clara, se não mais clara; e a verdade, uma vez que é um princípio simples, que não admite modificação, será comum a ambos. A ordem da sociedade, como está estabelecida no momento, não seria invertida, pois a mulher teria apenas o lugar atribuído a ela pela razão e não poderia usar de artifícios para estabelecer o equilíbrio da balança, muito menos para invertê-lo. (WOLLSTONECRAFT, 2016, pp. 56-58)
Ainda que isso seja dito, para Wollstonecraft não importa se essas qualidades diferem; mas sim que a capacidade de desenvolvê-las por meio da racionalidade é a mesma. O reconhecimento dessa possível diferença natural, por sua vez, pode ser tanto uma estratégia de apaziguar os leitores da época ao não negar completamente as noções correntes, quanto uma aceitação dessa “realidade” a contragosto (BERGÈS, 2013, p. 62).Por meio dessas estratégias retóricas argumentativas, a autora coloca os homens e as mulheres que contribuem para esse projeto em um local de irracionalidade em que eles não eram comumente entendidos; ao justificar sua defesa por esse tipo de educação dizendo que as mulheres são igualmente racionais e que não educá-las coloca em xeque o aperfeiçoamento da humanidade, Wollstonecraft denuncia a subjugação feminina e, assim, usa a linguagem desses pensadores contra eles mesmos.
A subversão da tirania: mulheres tiranizam a si mesmas
O capítulo 4 da Reivindicação relaciona-se aos outros dois apresentados, ao pensarmos que Wollstonecraft aprofunda sua constatação inicial sobre a condição das mulheres e o exercício da tirania. Para Sandrine Bergès (2013, p. 86), neste capítulo, Wollstonecraft busca explorar como as mulheres são ao mesmo tempo, tiranas e escravas e por que motivo não lutam contra sua opressão.
Observamos que Wollstonecraft continua às voltas com o debate acerca da razão das mulheres, caracterizando a discussão de sua época como “teorias ilusórias”. Para a autora, ao contrário de tomar a mulher como parte do homem, deve-se pensá-la como um todo próprio, para somente assim questionar se ela possui razão ou não. Desse modo, Wollstonecraft se lança a dizer: “Em caso afirmativo, o que por ora admitirei, ela [a mulher] não foi criada meramente para ser o consolo do homem, e o caráter sexual não deveria destruir o caráter humano” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 78).
É interessante perceber o modo como Wollstonecraft constrói seu argumento, parecendo colocá-lo à prova, ao mesmo tempo que afirma sua posição, como comentamos acima sobre a capacidade das mulheres. A autora se vale de pequenos artifícios como este “por ora admitirei”, como se desafiasse aos seus leitores que testassem a força dos argumentos. Ela parece antecipar os comentários que lhe poderiam ser feitos, indicando que reconhece reverter um argumento comumente utilizado ao utilizá-lo de outra forma. Por isso mesmo, ela nos parece colocar seus argumentos à prova para reforçá-los. Seu estilo coloca as questões em chave de dúvida, como na passagem “se elas são seres morais, deixem-nas ter uma chance de se tornarem inteligentes” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 93), mesmo que a autora saiba a resposta. Uma questão interessante da retórica de Wollstonecraft, portanto, a espécie de “teste” que ela (se) propõe: se as mulheres forem educadas tal como os homens, e não educadas para a sensibilidade, não haveria diferença de intelecto e virtudes entre elas e eles.
Se o entendimento foi negado às mulheres, isso se dá pela diferença de sexo que os distingue, como aponta Wollstonecraft, e assim o caráter humano se degrada, tornando as mulheres em escravas abjetas ou tiranas caprichosas (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 67). Dessa forma, Wollstonecraft realiza uma segunda subversão do conceito tirania que apenas aludimos acima. A tirania é considerada como uma fraqueza moral, argumento também inovador, considerando a força dos tiranos sempre como motor principal das discussões. Neste caso, as mulheres tornam-se tiranas de si mesmas, em uma breve tirania (pois envelhecem), uma vez que foram despojadas de humanidade e adornadas com graças superficiais (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 58).
Ao mesmo tempo, as mulheres são escravas de seu próprio corpo pelos sentidos que lhes é incutido, chamando-o de sensibilidade tanto pelos homens quanto pelas próprias mulheres (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 85). A sensibilidade não apenas faz com que as mulheres pareçam fracas, mas que o sejam de fato, pois os sentidos são desenvolvidos às custas da razão (BERGÈS, 2013, p. 91). Da mesma forma, o termo soberania também é revertido, marcando a soberania da beleza e o papel das mulheres enquanto rainhas efêmeras. As mulheres são exaltadas pela sua inferioridade, o que Wollstonecraft diz parecer uma contradição, embora ela desmascare ser esta a lógica do problema.
Assim, o grande problema é a forma como o tipo de educação dado às mulheres as conduz aos certos tipos de virtude que são apontados por Wollstonecraft. A Reivindicação procura atentar para o que acontece com as mulheres, mas talvez não necessariamente se dirigindo a elas, como clama Olympe de Gouges em Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791), ainda que não seja ouvida por suas conterrâneas (BERGÈS, 2013, p. 98).
Ainda que por vezes Wollstonecraft pareça dirigir-se com um peso retórico muito forte sobre as próprias mulheres (TAYLOR, 2016), Bergès aponta que o alvo da autora é a classe de mulheres ociosas suficientemente bem sustentadas por seus maridos (BERGÈS, 2013, p. 103). Ao mesmo tempo, os capítulos de que comentamos também são marcados por observações como “escrevo com carinhosa solicitude” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 80) e “Lamento que as mulheres sejam sistematicamente degradadas ao receberem as atenções insignificantes que os homens consideram varonil dispensar ao sexo oposto, quando, de fato, eles estão provando de maneira insultante sua própria superioridade” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 81, grifos nossos).
Dessa forma, Wollstonecraft constata que as mulheres não veem as correntes que as escravizam ou assim como os homens, elas estão cegas pelas “sombras do despotismo” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 56) e, portanto, não resistem. Como aponta Bergès (2013, p. 106) “Ser virtuoso é também ser sábio, e aquele que foi privado da sabedoria não será virtuoso – sequer vislumbrará que a virtude é desejável”[6]. Por isso, as mulheres não buscam se emancipar, são ignorantes daquilo que lhes falta – aqui sim uma marca clássica do despotismo, que retira a capacidade de resistir. Curiosamente, Wollstonecraft não discorre sobre qual seria, portanto, a resistência a ser promovida pelas mulheres, uma questão recorrente quando se denuncia o tirano ou déspota, como claramente o faz John Milton em A tenência de reis e magistrados (1649), ainda que Wollstonecraft cite amplamente outros de seus escritos, como Paraíso Perdido (1667).
Ainda que Wollstonecraft seja enfática sobre o seu desejo de que as mulheres não tenham poder sobre os homens, mas sobre si mesmas (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 87), a passagem a seguir parece ser um indicativo de uma certa desilusão de Wollstonecraft:
No atual estado da sociedade, temo que pouca coisa possa ser feita para corrigir esse mal [sobre a educação das mulheres]; caso algum dia uma ambição mais louvável ganhe terreno, as mulheres poderão ser levadas para mais perto da natureza e da razão e serão mais virtuosas e úteis à medida que se tornem mais respeitáveis. (WOLLSTONECRAFT, 2016, p.101).
Da mesma forma, segundo Bergès (2013, p.93), a caracterização das mulheres enquanto escravas e a constatação de que não quebrarão as correntes por vontade própria, ainda que endossem tal submissão, é parte da retórica republicana. Isto é, uma retórica que se preocupa com o problema da dominação, submissão e a liberdade das mulheres [e dos homens].
Talvez Wollstonecraft lance, então, os seus poderes retóricos aos próprios homens – embora ela mesma reconheça, sendo uma entre elas, que certas mulheres não estão submetidas ao despotismo. Mas como também alerta, ao mencionar nomes como Safo, Eloisa e Catarina, A Grande, sua preocupação não é com exceções, mas que as mulheres se tornem criaturas racionais (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 106). Se Wollstonecraft compadece com as mulheres ao mesmo tempo que retoricamente as recrimina por suas vaidades incutidas, se elas mesmas não podem reconhecer sua condição, o endereçamento aos homens parece uma tentativa de fazê-los entender, subvertendo sua própria linguagem, que a humanidade necessita de duas metades racionais, portanto, livres.
Considerações finais
Procuramos analisar os usos retóricos de Mary Wollstonecraft, em especial dos conceitos de tirania e despotismo, com base nas contribuições teórico-metodológicas de Quentin Skinner e John Pocock e literatura secundária sobre Wollstonecraft. O que podemos observar é que a autora se apropria do vocabulário corrente para transformá-lo: Wollstonecraft vale-se da linguagem dos dominantes em favor dos dominados. O conceito de tirania adquire, pois, um novo significado, isto é, a dominação dos homens sobre as mulheres e das mulheres sobre si mesmas. Podemos perceber como sua inovação linguística é, ao mesmo tempo, uma outra forma de pensar sobre a condição das mulheres de sua época e de denunciar o modo como a subjugação feminina opera. Nos termos de Pocock, a parole agindo sobre a langue.
De todo modo, Wollstonecraft também está inserida em um contexto da retórica republicana, como a literatura secundária sobre a autora nos chama a atenção, especialmente Sandrine Bergès (2013). Pode-se perceber, assim, que a filósofa estava profundamente atenta a seu momento político, integrando-se a ele não apenas como escritora, mas também como um importante ator político na sua condição de teórica política e de mulher. Wollstonecraft observa os termos correntemente utilizados e as discussões à sua volta, tomando-lhes os termos para fundar a sua própria Reivindicação que, como gostaríamos, ainda será de todas as mulheres.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências Bibliográficas
BERGÈS, S.; COFFEE, A. “Introduction”. In. BERGÈS, S; COFFEE, A. (eds.) The Social and Political Philosophy of Mary Wollstonecraft.Oxford: Oxford University Press, 2016;
BERGÈS, S. The Routledge’s Guidebook to Wollstonecraft’s A Vindication of the Rights of Woman.Londres: Routledge, 2013;
POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003, 452 p.;
TAYLOR, B. “Mary Wollstonecraft and Modern Philosophy”. In. BERGÈS, S; COFFEE, A. (eds.) The Social and Political Philosophy of Mary Wollstonecraft.Oxford: Oxford University Press, 2016;
SKINNER, Q. Significado e interpretação na História das Ideias. Tradução de Marcus Vinícius Barbosa. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 358-399. jan/abri. 2017. Tradução de Meaning and Understanding in the History of Ideas. In: SKINNER, Q. Visions of Politics. London: Cambridge University Press, 2001, vol. 1, cap. 4, p. 57-89;
SKINNER, Q. “Retrospect: Studying rhetoric and conceptual change”.In: SKINNER, Q.. Visions of Politics. Londres: Cambridge University Press, 2001. pp. 175-188;
SKINNER, Q. “Moral principles and social change”. In: SKINNER, Q.. Visions of Politics. Londres: Cambridge University Press, 2001. pp. 145-158;
WOLLSTONECRAFT, M. Reivindicação dos direitos da mulher. Tradução de Ivania Pocinho Motta. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016 [1792], 452 p.
[1] Graduanda no curso de Ciências Sociais em Bacharelado e Licenciatura (FFLCH/USP), bolsista Fapesp de Iniciação Científica em Ciência Política. E-mail: camilacorvisier@usp.br
[2] Bacharela e licenciada em Ciências Sociais (FFLCH/USP), professora de Sociologia e Filosofia. E-mail: erulissae@alumni.usp.br
[3] Graduando no curso de Ciências Sociais em Bacharelado e Licenciatura (FFLCH/USP), bolsista Fapesp de Iniciação Científica em Ciência Política. E-mail: jpbalanco@usp.br
[4] Tradução livre, no original: “[..] manipulating the speech act potential of certain evaluative terms.”
[5] Tradução livre, no original: “[…] manipulating the criteria for applying an existing set of commendatory terms.”
[6] Tradução livre, no original: “But also to be virtuous is to be wise, and someone who has been deprived of wisdom will not be virtuous – will not even see that virtue is desirable”.
Fonte Imagética: Mary Wollstonecraft (1759–1797). A Vindication of the Rights of Woman: With Strictures on Political and Moral Subjects. Boston: Peter Edes for Thomas and Andrews, 1792. Susan B. Anthony Collection, Rare Book and Special Collections Division, Library of Congress (001.00.00). Disponivel em <https://www.loc.gov/exhibitions/women-fight-for-the-vote/about-this-exhibition/seneca-falls-and-building-a-movement-1776-1890/early-feminist-inspirations/british-inspiration-for-american-women-seeking-equal-rights/>. Acesso em 03 maio 2023.