Especial Junho de 2013
Ricardo Fabrino Mendonça[1]
Rayza Sarmento[2]
Quando junho de 2013 aconteceu, o Margem[3], grupo de pesquisa que integramos, estava interessado no processo acentuado de conversação política online que se desenrolava no país e já podia ser observado nas plataformas de redes sociais, em especial no Facebook. Estávamos àquela altura preocupados/as em compreender engajamentos discursivos, troca de razões, manifestações de desrespeito a partir de questões que envolviam minorias políticas, com foco especial nos debates que sucederam a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2011, sobre casamento homoafetivo[4].
O contato com a literatura sobre a Primavera Árabe era incontornável ao grupo, especialmente com autores que, para além dos repertórios utilizados nos protestos, também estavam preocupados em acompanhar a circulação discursiva anterior a eles (Howard et. al., 2011). O interesse e contato prévio com tais debates foi fundamental para o engajamento direto das pesquisas do grupo nos protestos ocorridos no Brasil, a partir do aumento da tarifa do transporte público em São Paulo, em 2013. De algum modo, contudo, e apesar do interesse prévio, também fomos atropelados por Junho de 2013.
Curiosamente, esse atropelamento começou no exterior, quando uma antiga colaboradora de origem turca (Selen Ercan) nos convidou a olhar para aquele rebuliço que se manifestava nos dois países, com uma semana de diferença. Havia, naquele momento, uma certa estupefação com a magnitude, a velocidade, a permanência (efêmera) daquelas multidões que reivindicavam um outro jeito de estar no espaço público. Havia questões sobre a natureza daquilo, suas causas e consequências. Interessava-nos, desde o início, pensar aquelas manifestações à luz de conceitos fundamentais da sociologia política e das teorias da comunicação, navegando por um emaranhado confuso, pujante e afetivamente eloquente.
Passados dez anos, nosso objetivo neste pequeno texto é rememorar algumas trilhas e achados de pesquisas que se desdobraram daquele atropelamento não só de nossas agendas, mas da própria vida política brasileira. Não coadunamos com leituras que põem na conta de 2013 todas as mazelas que se seguiram nos anos subsequentes. Defendemos, entretanto, que 2013 configura-se como uma inflexão importante para entender muito do que se passou na última década.
Nesse sentido, a ideia de acontecimento sempre nos foi cara para olhar para 2013. Tal noção ajuda a pensar a natureza de eventos que desestabilizam a vida ordinária, promovendo processos de reflexão pública e disputas sobre as causas, agências e horizontes de possibilidades abertos por aquilo que nos desestabiliza (Mendonça e Simões, 2022; Mendonça et. al, 2019; Mendonça e Sarmento, 2017; Queré, 2005). Mais do que explicar 2013, sempre procuramos entender sua natureza acontecimental, investigando a dimensão política das disputas sobre seus significados e causalidades, bem como seu poder hermenêutico e seus desdobramentos que se espalham espaço-temporalmente.
Tais processos rememorados a seguir estão ligados a uma compreensão central do Margem como grupo de pesquisa e do nosso entendimento sobre a política: a centralidade da linguagem e dos processos comunicativos. Entre as apropriações das teorias dos movimentos sociais, teoria crítica e teorias feministas mobilizadas nessas pesquisas, é a compreensão de que discursos estruturam e não apenas representam a realidade política que nos permite analisar a forma como sujeitos e grupos enunciam demandas, engajam-se em discussões e se expressam por meio de palavras, silêncios, corpos ou mídias. Metodologicamente, nenhum dos trabalhos citados aqui seria possível sem uma perspectiva interpretativista sobre a política e a Ciência Política. Esse olhar, ainda marginal na área, possibilita a construção de campos e imersões qualitativas diretamente ligados aos processos de significação dos sujeitos e grupos sobre seu fazer político.
Na pesquisa de campo, em meio às marchas ou às assembleias populares horizontais em Belo Horizonte e entrevistas realizadas em Goiânia, Belo Horizonte e São Paulo, um focoimportantede nossa atenção foi compreender quem eram os atores no cerne daquele processo. Em uma primeira discussão, abordamos as transformações da ação coletiva, buscando entender o que dava liga àquelas singularidades dispersas em multidões que não partilhavam projetos políticos e, mesmo, pautas muito coerentes (Mendonça, 2017). Discutimos aí o modo como a vivência partilhada de espaços, tempos e afetos estruturava conexões, criando um senso de coletividade que não era essencialmente da ordem do cognitivo. Nesse momento já despontava também um argumento que nos é caro, e que se opõe à parte da literatura da área, segundo o qual as subjetividades que embasam 2013 não precedem o acontecimento, mas são reconfiguradas por relações ali estabelecidas (Mendonça e Bustamante, 2020).
Outro aspecto que aparece com eloquência nos dados a este respeito é a quantidade de entrevistadas e entrevistados que se sentem como protagonistas de 2013. Nas mais de 50 entrevistas realizadas no projeto, bem como em conversas com outros pesquisadores da área, chamava a atenção a frequência com que se atestava quem “realmente” puxou as marchas em tal ou tal localidade. Nosso primeiro impulso superficial foi o de suspeitar de tanto protagonismo. Logo, compreendemos, contudo, que 2013 dependeu dessa descentralização do sentimento de protagonismo e que o fato de tantos indivíduos e coletivos entenderem-se no olho do furacão era o que permitia a amplitude da mobilização diversa ali observada (Mendonça e Figueiredo, 2019).
As entrevistas também nos expuseram aos conflitos internos, desigualdades e multiplicidades interpretativas a atravessar aquele processo. Passamos a observar, por exemplo, como os debates sobre desigualdade de gênero, expressos em tantos cartazes e demandas nas marchas, atravessaram também a constituição dos grupos, junto do reavivamento dos feminismos pluralizados nas ruas e nas redes (Alvarez, 2014). A literatura sobre gênero no contexto árabe já trazia insights sobre como tais dinâmicas eram vivenciadas de forma diferenciada entre homens e mulheres (Johansson-Nogués, 2013). Por meio de entrevistas com manifestantes, identificamos as denúncias sobre atos machistas a permear os protestos e ocupação das ruas e a violência policial sexista em momentos de repressão (Sarmento, Reis e Mendonça, 2017). As estratégias de resistência feministas também foram reforçadas, seja nos atos e ocupações públicas, seja na organização interna dos grupos, com a multiplicação e fortalecimento das frentes feministas. Entre os muitos relatos a que tivemos acesso, cabe lembrar as “estatísticas de tempo de fala” que um dos coletivos mineiros fazia manualmente para demonstrar a predominância da voz masculina nesses espaços.
Também no campo das tensões internas a Junho de 2013, identificamos as diferentes compreensões sobre democracia entre ativistas (Mendonça, 2018). Para tanto, um primeiro movimento teórico foi necessário, para desconstruir a ideia de modelos democráticos e avançar uma concepção centrada em sete dimensões que atravessam os debates entre diferentes correntes teóricas. Na sequência, observamos como as menções de entrevistadas e entrevistados à ideia de democracia pautavam-se por diferentes compreensões da mesma. Identificamos, sobretudo, uma compreensão de democracia profundamente marcada por ideias de participação direta, que negavam, ou se calavam, sobre dimensões institucionais e representativas e de controle da democracia.
Isso ajudou-nos a entender o próprio repertório de confronto empregado por diferentes grupos em 2013 e a centralidade de formas diretas de intervenção, bem como uma aposta na política prefigurativa (Mendonça e Bustamante, 2020). Esses aspectos também nos ajudaram a compreender como muito dos processos de 2013 anunciavam e expressavam os movimentos de erosão democrática que viriam a se acentuar nos anos subsequentes. Muitos dos limites, dos dilemas, das insatisfações, das crises e das tentativas deliberadas de enfraquecer a democracia perpassam 2013, não apenas nos atos, mas na forma como interpretações sobre eles se desdobraram nos anos subsequentes, em que a suposta “voz das ruas” foi muito mobilizada para perpetrar violências contra pessoas e instituições.
No bojo das ações do projeto, também se fortaleceram algumas colaborações. Do convite inicial de Selen Ercan nasceram algumas discussões que se debruçaram sobre os protestos no Brasil e na Turquia, seja para negar a suposta dicotomia entre conflito e consenso na teoria política (Mendonça e Ercan, 2015), seja para destacar a dimensão performativa de protestos em suas dimensões deliberativas, agonísticas e antagônicas (Ercan et al. 2022).
Também na esfera das cooperações, o Margem passou a integrar, em 2017, um projeto interinstitucional coordenado por Breno Bringel (IESP/UERJ). O projeto buscava traçar uma memória de 2013. Algumas das produções anteriormente mencionadas foram trabalhadas em eventos do projeto. A ele também se vincula a dissertação de Letícia Birchal Domingues, intitulada “Junho de 2013: atores, práticas e gramáticas nos protestos em Belo Horizonte”, que foi defendida no ano de 2019 no PPGCP/UFMG. No trabalho, a pesquisadora procurava reconstruir os pormenores do caso belorizontino, cartografando seus precedentes, seus atos e seus desdobramentos. Ligam-se à dissertação um aprofundamento do debate sobre política prefigurativa (Birchal, 2022), bem como um estudo comparativo sobre as dimensões antidemocráticas de protestos multitudinários no Egito, na Tailândia, na Turquia, nos EUA e no Brasil (Mendonça e Birchal, 2021). Salienta-se, ainda, a tese de doutorado de Márcia Cruz, do mesmo programa, intitulada “Política das ruas e das redes”, que foca na tensão entre autoexposição e anonimato a atravessar 2013. Ainda no escopo do projeto, publicamos, pela EdUERJ, o livro “Junho de 2013: Sociedade, Política e Democracia no Brasil” (Tavares et al, 2022), que conta com capítulos que fornecem diferentes leituras teóricas sobre o evento.
Rememorar brevemente esse percurso de pesquisa nos parece importante para demarcar o entendimento de junho de 2013 como um acontecimento ambivalente e múltiplo, que se revela, científica e politicamente, a partir da posição de observação. O ano de 2013 representa uma inflexão marcante na vida política brasileira. Se fomos atropelados pelo fenômeno em questão, desde então, as carretas não pararam de passar – a não ser, claro, na greve dos caminhoneiros. Além da referida greve, tivemos a contestação das tensas eleições de 2014, a operação Lava-Jato, a violenta retirada de Dilma Rousseff do poder, as ocupações de secundaristas e universitários, a prisão de Lula, a eleição de Jair Bolsonaro, os desdobramentos políticos da pandemia e a ressurreição política de Lula com a explicitação das fraudes que marcaram a Lava-Jato.
De algum modo, Junho se capilarizou em cada um desses momentos impactantes da política nacional, seja porque a) atores-chave desses momentos emergiram ou se fortaleceram nas águas de Junho; b) o repertório de confronto de Junho foi englobado por atores de diferentes posições no espectro político; c) 2013 deslocou pactos e forças políticas e d) 2013 contribuiu para a inserção na cena pública de outras interpretações de passado e horizontes de futuro. Junho de 2013 consagrou uma forma de fazer política mais frontal, extrainstitucional, que camufla sua própria natureza política e que altera os cálculos sobre a relação entre os custos de tolerância e repressão, para usar o clássico axioma de Robert Dahl.
Os atos de 2013 explicitam muitos dos sintomas das combalidas democracias do mundo (incluindo-se as de contextos antes considerados como democracias sólidas). É nesse sentido, que o sintoma tem suas ambivalências. Como uma febre que pode indicar a necessidade de cuidados, 2013 segue com um poder hermenêutico. Cabe-nos escavar a vida política dessa última década em busca das possibilidades de reinventar as democracias para semear sua sobrevivência.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
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[1] Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG. Pesquisador do CNPq e da Fapemig. Coordenador do Margem. ricardofabrino@fafich.ufmg.br
[2] Professora de Ciência Política da UFPA (FACS/PPGCP). Doutora em Ciência Política pela UFMG. Pesquisadora do Margem. rayzasarmento@ufpa.br
[3] O Margem (Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça) está sediado no Departamento de Ciência Política da UFMG e reúne uma equipe de pesquisadores/as interdepartamental e interinstitucional. Seus eixos de pesquisa se voltam para teorias democráticas e da justiça, conflitos sociais, participação, linguagem e política. Integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD). Mais informações podem ser obtidas no Twitter.
[4] Ver Oliveira, Sarmento e Mendonça, 2014; Mendonça e Amaral, 2016; Sarmento e Mendonça, 2016.
Fonte Imagética: foto de Mídia Ninja no site Grafias de Junho. Disponível em: <https://www.grafiasdejunho.org/principal/?cidade=Belo%20Horizonte>. Acesso em 22 de maio de 2023.