Especial Junho 2013
Olívia Cristina Perez[1]
Em meados de Junho de 2013 milhares de brasileiros/as foram às ruas com pautas diversas que incluíam direito à cidade; reconhecimento de direitos para grupos mais sujeitos a opressões sociais, tais como mulheres, negros, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros; além de críticas ao Estado que seria corrupto e incapaz de garantir direitos sociais. Esse ciclo de protestos ficou conhecido como Jornadas de Junho de 2013.
Passados dez anos das Jornadas, os ensinamentos daqueles/as jovens que participaram e foram socializados politicamente durante e após o ciclo de protestos permanecem como um desafio para o aprimoramento da democracia brasileira.
Argumento neste texto que Junho de 2013 revelou uma descrença em relação às instituições políticas parlamentares, ao mesmo tempo em que aprofundou essa desconfiança. Mas não é apenas uma desconfiança sem lastro social. Os/as jovens que participaram dessa série de manifestações e que se organizaram depois delas ensinam que as instituições políticas parlamentares são de fato limitadas, porque pouco inclusivas. Para esses/as jovens militantes, a política institucional (principalmente os partidos), não incluiriam nos postos chaves de decisão negras/os, mulheres, moradores de regiões periféricas, população LGBTQIA+ e jovens – grupos esses que formam a maioria da população. Como forma de solucionar esses problemas, os/as jovens se organizam em mobilizações políticas do tipo coletivos.
Explicando melhor os argumentos do texto, um dos focos das interpretações a respeito das Jornadas tratam do legado delas e, dentro desse campo, alguns estudos destacam a formação de organizações políticas mais fluidas e horizontais durante e após as Jornadas, a exemplo dos coletivos (Gohn, 2014; 2017; Perez, 2019; Gohn, Penteado, Marques, 2020; Perez, Souza, 2021; Perez, 2021).
Em parte, o foco dessa literatura sobre coletivos tem relação com a forte presença de organizações que se denominavam dessa forma nas Jornadas. A própria organização considerada central para o estopim dos protestos, o Movimento Passe Livre (MPL), se apresentava à época como uma organização sem liderança, distante da burocracia e dos protocolos das organizações mais tradicionais, como os partidos (Movimento Passe Livre, 2013).
Depois das Jornadas, as organizações do tipo coletivos começaram a se multiplicar nas universidades, nos protestos e mesmo nos partidos políticos. Isso se explica pelo fato de que diversos jovens foram socializados politicamente no ciclo de protestos de 2013 e naqueles posteriores, aprendendo e replicando a importância da horizontalidade na mobilização política (Perez, 2019).
No entanto, mais do que afirmar a presença da horizontalidade ou a ausência de lideranças nas organizações políticas contemporâneas formadas durante e depois de Junho de 2013, é essencial entender o que significa essa defesa em termos relacionais, ou seja: contra quem os jovens vinculados a essas organizações estão se colocando e qual a demanda embutida na ideia de horizontalidade.
Mostro em outros textos que as organizações contemporâneas, a exemplo dos coletivos, se afirmam como mais horizontais e fluidas para se contraporem e se diferenciarem – discursivamente e por vezes na prática – das organizações tradicionais que repudiam (Perez, 2019; Perez; Souza, 2020). É comum as pessoas integrantes dos coletivos criticarem outras organizações políticas consideradas tradicionais, como os partidos políticos e aquelas pertencentes à esfera parlamentar, consideradas engessadas e hierárquicas. A própria adoção do nome coletivo demarca um distanciamento em relação a outros tipos de organizações políticas. Para os/as jovens, participar de um coletivo é uma forma de agir politicamente distante dos vícios e dos problemas das organizações políticas tradicionais (Perez; Souza, 2020).
Para se distanciarem dos problemas percebidos nas instituições políticas tradicionais, os/as jovens socializados durante e depois de Junho de 2013 propõem uma forma de mobilização política mais inclusiva em ao menos dois sentidos.
Em primeiro lugar, a inclusão deve acontecer com a atuação em prol dos grupos com mais dificuldade de acesso a direitos, tais como mulheres, negros/as, população LGBTQIA+, jovens e moradores de periferias (Rios; Perez; Ricoldi, 2018).
Em segundo lugar, os coletivos consideram que essa população deve estar presente nas decisões das organizações. Para esses/as jovens não basta que o Estado concretize direitos (embora isso seja fundamental). Ampliando a concepção de inclusão, os coletivos defendem que grupos alijados das decisões públicas devem ter a possibilidade de decidir sobre assuntos importantes e em todas as organizações, inclusive nos coletivos dos quais fazem parte.
Os coletivos então reivindicam mais do que a inclusão da maior parte da população no campo dos direitos sociais, eles querem a inclusão dela em todas as decisões coletivas – e por isso são os primeiros a proporcionarem essa inclusão. Há uma exigência para que as estruturas organizativas permitam a inclusão de grupos alijados das decisões políticas. E essas exigências não são apenas discursivas: os próprios coletivos são criados para permitir a participação desses grupos de forma coletiva e horizontal. Nesse sentido os coletivos são a forma de organização política que possibilita e estimula o crescimento e a visibilidade dessas demandas, concretizando em parte as próprias demandas reveladas em Junho de 2013. E é justamente a demanda de que todos podem e devem participar das decisões coletivas que estimula a criação dos coletivos – em geral pequenas organizações políticas que tentam ser mais inclusivas e mais horizontais.
Nesse sentido, as mobilizações políticas contemporâneas, a exemplo dos coletivos presentes e multiplicados depois das Jornadas de Junho de 2013, têm um recado importante a respeito da origem das desigualdades sociais e de como solucioná-las. Para eles as desigualdades têm relação com o fato de que a maioria da população – mulheres, negras/os, LGBTQIA+, jovens e moradores de periferia – não está incluída nas principais decisões que dizem respeito ao coletivo. Com o argumento de lugar de fala esses jovens vêm forçando as gerações mais velhas a se abrirem para novas formas de agir e de pensar que pedem a democratização de todos os espaços de poder.
No entanto, em que pese a importância das críticas e soluções para o sistema político conforme esses/as jovens que compartilham ideais presentes em Junho de 2013, parece que o sistema político não compreendeu ou, mais provavelmente, não tem interesse em aprimorar a democracia brasileira por meio da inclusão da maior parte da população nas principais decisões públicas.
De fato, essas mudanças não são simples e nem imediatas. A inclusão da maior parte da população nos cargos de poder requer que aqueles que ocupam os cargos de decisão se abram para grupos com os quais eles não estão acostumados a partilhar. Essa não é uma tarefa fácil. É preciso primeiro uma postura de abertura diante do que os jovens protagonistas de protestos nesses últimos dez anos têm a ensinar. Mas é preciso também uma transformação na prática, incluindo aqueles que até agora estão excluídos dos debates e das decisões coletivas. Quem conseguir de fato essa inclusão e mudança na forma como as decisões são tomadas, estará em sintonia com o espírito dos tempos – mais coletivo depois de Junho de 2013.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
GOHN, Maria da G. Manifestações e protestos no Brasil: correntes e contracorrentes na atualidade. São Paulo: Cortez, 2017.
GOHN, Maria da G. Sociologia dos Movimentos Sociais. São Paulo: Cortez, 2014.
GOHN, Maria da G.; PENTEADO, Claudio; MARQUES, Marcelo de S. (Orgs). Dossiê “Os coletivos em cena: experiências práticas e campo de análise”. Simbiótica, Vitória, v. 7, n. 3, p. 1-7, 2020.
MOVIMENTO PASSE LIVRE – São Paulo. ‘Não começou em Salvador, não vai terminar em São Paulo’. In: Maricato, Ermínia e outros. Cidades rebeldes. São Paulo: Boitempo, 2013.
PEREZ, Olívia. Sistematização crítica das interpretações acadêmicas brasileiras sobre as Jornadas de Junho de 2013. Izquierdas, v. 1, p. 1-16, 2021.
PEREZ, Olívia C. Relações entre coletivos com as Jornadas de Junho. Opinião Pública, Campinas, v. 25, n. 3, p. 577-96, 2019.
PEREZ, Olívia C; SOUZA, Bruno. M. Coletivos universitários e o discurso de afastamento da política parlamentar. Educação e Pesquisa, v. 1, p. 1-19, 2020.
RIOS, Flavia; PEREZ, Olivia Cristina; RICOLDI, Arlene. Interseccionalidade nas mobilizações do Brasil contemporâneo. Lutas Sociais, v. 22, p. 36-51, 2018.
[1] Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Atualmente é Professora Adjunta na Universidade Federal do Piauí (UFPI) vinculada aos cursos de bacharelado e mestrado em Ciência Política e ao programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Políticas Públicas. Sua área de pesquisa engloba temas como coletivos, participação social, movimentos sociais, feminismos, juventudes e marcadores sociais da diferença. E-mail: oliviaperez@ufpi.edu.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9441-7517
Fonte Imagética: Manifestação de junho de 2013. O gigante acordou em junho de 2013? (Vermelho: a esquerda bem informada). Disponível em <https://vermelho.org.br/2014/06/13/o-gigante-acordou-em-junho-de-2013/>. Acesso em 01 maio 2023