Antonio Carlos Wolkmer[1]
Introdução
Após a Segunda Guerra Mundial, adquiriu-se enorme interesse pelo estudo da teoria marxista do Direito, principalmente com a tradução para o inglês das principais obras dos juristas soviéticos, sua divulgação por meio das críticas contundentes feitas no Ocidente – especialmente por Hans Kelsen – e a forte incidência política da antiga União Soviética sobre a Europa em grande parte do século XX. O efeito dessa redescoberta foi não apenas despertar uma série de estudos críticos sobre os fundamentos normativos da Teoria Geral do Direito, mas, sobretudo, priorizar interpretações de cunho ideológico no Direito positivo predominante nos países de tradição liberal, dominados pelo modo de produção capitalista. O levantamento histórico das principais correntes marxistas do Direito desenvolvidas na ex-república dos soviéticos, da época que se sucede à Revolução de Outubro até o final da “era estalinista”, permite visualizar dois períodos claramente definidos: o período clássico da teoria marxista do Direito e o período do sovietismo-estalinista do Direito.
Tendo em conta esse cenário, somado ao clima efervescente da Guerra Fria, Kelsen escreveu ao longo dos anos 1950 – mais precisamente com publicação em 1955, nos Estados Unidos – seus dois ensaios: The communist theory of law e The political theory of bolshevism, com tradução para a língua espanhola em 1957 (Emecé Editores, Buenos Aires) sob o título Teoria comunista del Derecho y del Estado, obra em que faz uma análise crítica das teorias marxistas do Direito e do Estado, pondo em questão a “cientificidade” dessas interpretações.
Para esse propósito, na presente reflexão, serão destacados aspectos da discussão acerca do caráter “científico” e “ideológico” do Direito, em que Kelsen percorre desde a teoria do Estado e do Direito em Marx e Engels, para depois o questionamento e o rechaço das teses de Lenin, de Reisner, dos clássicos do sovietismo – Stucka e Pashukanis –, seguindo para o período estalinista de Vyshinsky, Golunski e Strogovich. A obra em tela proporcionará posteriormente um rico e polêmico confronto entre as teses do formalismo normativista kelseniano em defesa de uma “teoria pura do Direito” e a dimensão ideológica do Direito trazida por alguns adeptos da teoria marxista, como Umberto Cerroni, Vladimir Tumanov e Ljubomir Tadić.
1 A interpretação de Kelsen sobre o Estado e o Direito em Marx e Engels
Para uma análise acurada, Kelsen toma em conta num primeiro momento passagens clássicas da Contribuição à crítica da economia política e de O capital, lembrando que a concepção do Direito está inseparavelmente identificada com a teoria marxista do Estado, considerados ambos não como fenômenos isolados, mas que subsistem no contexto da sociedade dividida em dois grupos antagônicos: a classe dos exploradores, proprietários dos meios de produção, e a classe dos trabalhadores explorados. A questão que se põe na leitura de Kelsen é que Marx e Engels confundem o verdadeiro Direito (ciência normativa) com ideias jurídicas deformadas (uma teoria ideológica do Direito). Examinando a afirmação de Marx de que o Direito é uma das formas ideológicas da realidade econômica, Kelsen adverte para certa confusão que surge entre a “teoria especial do Direito” (ideologia jurídica como função do pensamento e do imaginário dos juristas burgueses/certo modo invertido de interpretação das normas) e o Direito em si (criado por um legislador e aplicado pelos tribunais, não sendo produto de ideólogos e doutrinas “ideológico-especulativos”). Considerando o Direito como reflexo da estrutura econômica (certa teoria do Direito), Marx denuncia o Direito burguês formalista como ideologia materializada em normas que se proclamam “justas”, mas que, no entanto, tratam de preceitos enganosos que deformam a realidade social. Distintamente, Kelsen observa que é
perfeitamente possível descrever o Direito burguês afirmando que é […] uma norma ou uma ordem normativa, sem incorrer em distorção ideológica da realidade social. […] o Direito é um objeto de conhecimento: a realidade jurídica. Isso é precisamente o que se conseguiu com uma “teoria burguesa do Direito” em sua tendência anti-ideológica.[2]
Alicerçando-se nos textos de Marx, Kelsen pondera que toda sociedade possui alguma forma de propriedade; e, havendo propriedade, pressupõe-se sempre algum tipo de ordem legal. Decorre assim que, se “cada forma de produção cria suas próprias relações jurídicas”, logo, em uma “sociedade comunista deverá existir Direito”.[3] A posição de Kelsen acentua-se ao explorar e questionar criticamente certas passagens da obra de Marx, pois, no seu entender, a previsão marxista de “uma sociedade de justiça perfeita, sem Estado e sem Direito, é uma profecia utópica, como o messiânico Reino de Deus, o paraíso do futuro”.[4] De igual modo, a descrição da sociedade primitiva não resiste à crítica científica, pois esse estado ideal da humanidade, retratado por Engels, aproxima a Filosofia marxista da doutrina do Direito natural, na medida em que este também propugna por uma natureza originária plena de felicidade. Ora, tal argumento não se baseia em fatos, mas sim em dedução. Adverte ainda Kelsen que a crítica marxista da realidade social é de um moralismo fortemente emocional, o que se torna perfeitamente compreensível quando também se admite que a “doutrina de Marx e Engels tem um caráter nitidamente anárquico”.[5]
Outra contradição apresentada por Kelsen é a de que o socialismo científico
é por sua própria natureza uma ideologia. […] Marx e Engels demonstram exatamente a mesma ilusão ideológica da teoria social burguesa denunciada por eles como ideologia. […] Esse “socialismo científico” não é nem mais nem menos ciência que as doutrinas burguesas denunciadas por Marx como ideologias. […] esta confusão de teoria e prática, de ciência e política, satisfaz todos os requisitos para ser uma ideologia […].[6]
Disso resulta o que representa a questão da ideologia na discussão de uma suposta “ciência pura” do Direito.
Em algumas páginas de sua cultuada Teoria pura do Direito, Hans Kelsen deixa expresso com muita veemência o rigor formal de uma teoria do Direito que se propõe a erradicar todo e qualquer tipo de “juízo ideológico”. Partindo das dicotomias neokantianas de “ser/dever ser”, “natureza/cultura” e “causalidade/imputação”, bem como tendo presente o conceito pejorativo de ideologia estabelecido por Marx e seus seguidores, Kelsen proclama ostensivamente sua “ciência do Direito” como pura e naturalmente anti-ideológica. Dessa forma, coincide preliminarmente com Marx quando atribui juízo negativo à ideologia, discordando, entretanto, ao edificar o Direito como ciência real, e não representação ideológica.
A comprovação da isenção ideológica está no fato de que o Direito positivo trata do Direito real e possível, ou seja, do Direito como ele é exatamente, e não como deve ser – próprio, nesse caso, de um Direito “ideal” ou “justo”. Na constatação da proposta do positivismo jurídico, não há que se valorar o Direito enquanto ciência normativa, pois seu objeto são unicamente as normas jurídicas em seu aspecto geral, e não particular, desprovidas de interesses políticos e juízos ideológicos.
O ponto de partida, enquanto marco teórico, está justamente quando Kelsen enfaticamente sublinha que a teoria pura do Direito é a teoria do Direito positivo em geral,
não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. […] É ciência jurídica e não política do Direito”.[7]
Reside nisso a diferença entre teoria pura do Direito e ciência jurídica tradicional, que,
consciente ou inconscientemente, ora em maior ora em menor grau, tem um caráter “ideológico”. […] Precisamente, através desta sua tendência anti-ideológica revela-se a teoria pura do Direito como verdadeira ciência do Direito. Com efeito, a ciência tem, como conhecimento, a intenção imanente de desvendar o seu objeto. A “ideologia”, porém, encobre a realidade enquanto […] a desfigura. Tal ideologia tem a sua raiz na vontade, não no conhecimento, nasce de certos interesses, ou melhor, de outros interesses que não o interesse pela verdade.[8]
Obviamente, como assinala Vladimir Tumanov, é indiscutível a sua importância para a “ciência burguesa do Direito do século XX”, pois soube “sempre provocar o maior interesse pela sua teoria […], que teve o seu momento de glória entre as duas guerras. Depois da Segunda Guerra Mundial a sua influência na Europa cai”, mas o culto de sua obra e a sua popularidade continuaram muito fortes nas faculdades de Direito da América Latina.[9]
O problema ideológico tem sido aspecto de maior controvérsia entre Kelsen e teóricos do marxismo jurídico. Desde Marx, o primeiro a realçar e desenvolver metodologicamente tal categoria, a “ideologia” vem abrangendo dois sentidos: como sistema teórico de ideias de justificação e de legitimação (Destutt de Tracy); e como consciência falsa, ilusão mítica e distorção do mundo. Esta última concepção, dominante na tradição dos textos clássicos do marxismo, foi utilizada por Kelsen para articular suas críticas contundentes às doutrinas jurídicas soviéticas. Assim, para diferenciar a “neutralidade” de sua teoria do Direito, proclamada como ciência purificada, Kelsen emprega um conceito estreito e pejorativo de ideologia. Toda e qualquer sistematização jurídica que não seja a “teoria pura normativa”, quer se trate das doutrinas jurídicas burguesas tradicionais, quer das marxistas, resulta em formulações ideológicas.
Defendendo a todo custo o chamado princípio da objetividade do conhecimento científico e honrando toda uma tradição teórica alemã (neokantismo), marcada pela rigorosa distinção entre “juízos de valor” e “juízos de fato” (daí a oposição entre política e ciência), Kelsen procura excluir extremadamente da esfera específica da dogmática jurídica todos os resíduos ideológicos e os princípios transcendentais inerentes às noções de Direito natural, justiça, moral etc.
Não obstante sua pública e radical posição em favor de uma ciência “pura” distinta da ideologia, chama atenção Ljubomir Tadić de que Kelsen, mais tarde, não permanecerá “inteiramente fiel a esta atitude inicial, pois admitiu o uso da noção de ‘ideologia’ com vários significados, não somente negativos mas também positivos”.[10] Essa distinção está presente quando examina a concepção marxista do Direito, ou seja, esse Direito pode ser entendido como “ideologia jurídica positiva” e como “ideologia jurídica negativa”. Para Kelsen, é exatamente “a concepção materialista da história a que permite conceber o Estado e igualmente o Direito como ‘ideologia’ pura […]”.[11]
2 As insurgências formalistas de Kelsen contra os clássicos: Stucka e Pashukanis
Assevera Kelsen ao criticar, de forma implacável, os autores clássicos do marxismo jurídico, Stucka e Pashukanis, que a ciência do Direito, enquanto técnica normativa, torna-se incompatível com uma interpretação econômica ou materialista da sociedade. Não há na lógica kelseniana, como comenta Orlando Gomes, interesse em “indagar a razão-de-ser das normas vigentes em determinado regime, pois sua teoria atribui ao Direito um objeto ideal, que é a norma […]”.[12]
Indiscutivelmente, tanto (num primeiro momento) as críticas materialistas de Petr Stucka quanto (posteriormente), de forma mais ampla, Evgeni Pashukanis – em sua A Teoria Geral do Direito e o marxismo –, ambos fortemente influenciados pelo economicismo da Segunda Internacional, buscaram desenvolver e sistematizar, pela primeira vez, uma teoria marxista do Direito, na medida em que visualizam o Direito não como estrutura normativa, mas como sistema de relações sociais, produto natural do modo de produção socioeconômico.[13]
A concepção classista do Direito é nítida em toda a obra de Petr I. Stucka (1865-1932), que critica o idealismo tradicional da teoria voluntarista e da doutrina jurídico-teleológica. Observa Stucka que a teoria voluntarista se torna imprecisa na medida em que estabelece a criação do Direito por uma vontade divina, monárquica, e não pela vontade de uma classe dominante. Na verdade, o interesse de classe é determinante em última instância, demarcando e ungindo todo o sistema das relações sociais. Partindo dessas premissas, o Direito é definido por Stucka como um sistema ou um ordenamento de relações sociais determinado pelo “interesse de classe”, sendo sancionado e tutelado em face das violações promovidas pela organização da classe dominante (Estado).[14] Já Evgeni B. Pashukanis (1891-1937), considerado por Cerroni como “le premier savant marxiste authentique et sérieux dans le domaine du Droit”[15], depois de uma profunda crítica às doutrinas jurídicas do Ocidente, coloca em destaque o aspecto histórico do Direito em face da infraestrutura econômica. O sentido dado por Pashukanis possibilita uma nova interpretação das teorias socialistas “antinormativistas”, pois afirma-se o propósito de demonstrar, de forma mais concisa, o caráter burguês-capitalista do normativismo tradicional.[16]
As reações do formalismo kelseniano incidem forte e intolerantemente sobre esses autores, quer seja sobre as “tendências políticas de classe da teoria do Direito de Stucka”, quer seja sobre a desvalorização do “Direito Público como uma doutrina ideológica de juristas burgueses”.[17] Privilegiando aqui alguns pontos da contenda entre Kelsen e Pashukanis, importa ter presente que, para Kelsen, Pashukanis equivoca-se ao tentar captar o Direito como parte da realidade social (determinado pelo interesse de classe) e ao atribuir-lhe dimensão ideológica enquanto sistema normativo, pois em sua Teoria pura do Direito “tratou de purificar a teoria tradicional do Direito de seus elementos ideológicos”.[18] Assinala ainda Kelsen o perfeito “mecanicismo” presente em Pashukanis, que, ao imitar a interpretação econômica de Marx dos fenômenos políticos, acabou reduzindo o “jurídico” ao econômico, tratando das relações jurídicas subordinadas aos fenômenos exclusivos do modo capitalista de economia fundado no princípio da propriedade privada dos meios de produção. Assim, ao identificar o Direito com as relações econômicas, Pashukanis acaba mitigando o papel do Direito público e aclamando o Direito privado como o autêntico Direito burguês, que se instrumentaliza na relação contratual “entre sujeitos proprietários que se apropriam e alienam mercadorias”.[19]
As objeções de Kelsen e os contrapontos a ele foram densamente discutidas em um debate internacional envolvendo a “teoria pura” com a teoria marxista do Direito, constituindo-se tema central do simpósio organizado pelo Instituto Hans Kelsen, em Viena, em 9 e 10 de maio de 1975, reunindo alguns dos mais expressivos juristas da Alemanha e da Áustria.[20] Evidenciou-se que a construção normativista kelseniana tem como objeto, como já ficou claro, a norma, e, em razão disso, não importa sua derivação político-econômica, mas sim sua fundamentação lógica e a consistência de sua validez. O mínimo grau de eficácia do Direito
somente é condição e não fundamento de sua vigência. A norma fundamental não se reduz, como na teoria de Pashukanis, a relações econômicas ou interesses economicamente fundados em uma classe dominante. O objeto da teoria de Kelsen é, pois, o Direito objetivo e não, como sustenta Pashukanis, a relação jurídica de Direito subjetivo.[21]
Importa observar que a teoria de Kelsen não tem preocupação com uma crítica ideológica ao Direito privado (que merece maior atenção de Pashukanis) e ao Direito público, pois trata-se de formulação que não explica o conteúdo e a dimensão histórico-valorativa do “jurídico”, em que, indistintamente, “qualquer conteúdo pode ser Direito, e o Direito acaba sendo confinado ao âmbito de uma técnica social”.[22]
Ainda questionando as proposições de Pashukanis, Kelsen aponta o erro de reduzir todo o Direito a uma teoria ideológica do Direito privado e do esforço de minimizar o teor coercitivo do próprio Direito. Resulta problemática a restrição artificial do conceito de Direito, na medida em que se considera a afirmação de Pashukanis de que “não pode haver, fora do Direito burguês, outras formas distintas de Direito”.[23] Certamente, para Kelsen, não convence a distinção entre as regras de Direito e as regras técnicas, porquanto
ambas podem ser impostas pelo poder coativo e, por conseguinte, são regras de Direito no sentido de determinada técnica social, e que, ao aceitar a primazia do Direito subjetivo, incide na ‘falácia’ do dualismo teórico jurídico da jurisprudência burguesa que sempre foi criticada pela teoria pura do Direito.[24]
A controvérsia sobre objeto, método e fundamentos do Direito é replicada em muitos momentos da obra de Pashukanis: particularmente, uma de suas primeiras objeções aparece em passagens da seminal Teoria Geral do Direito e marxismo. Na concepção materialista de Pashukanis, os pressupostos do Direito não se reduzem a uma reflexão lógico-formal, mas às relações jurídicas geradas por um real processo social. Nesse sentido, pondera o principal artífice de uma teoria marxista do Direito que
o extremo formalismo da escola normativa (Kelsen) exprime, sem sombra de dúvida, a decadência geral do mais recente pensamento científico burguês, o qual, glorificando o seu total afastamento da realidade, se dilui em estéreis artifícios metodológicos e lógico-formais. […] Uma tal teoria geral do Direito, que nada explica, que a priori volta as costas […] à vida social, e que se preocupa com normas sem se importar com sua origem (o que é uma questão metajurídica!) ou com suas relações com quaisquer interesses materiais, não pode ter pretensões ao título de teoria senão unicamente no mesmo sentido em que, por exemplo, se fala popularmente de uma teoria do jogo de xadrez. Uma tal teoria nada tem a ver com a ciência.[25]
3 À guisa de conclusão: reações antiformalistas de marxistas do Direito às interpretações de Hans Kelsen
No Conclave de Viena, em 1975, houve concordância em reconhecer que o problema ideológico é uma das questões de maior interesse no enfrentamento entre “teoria pura” e teoria marxista do Direito. Kelsen constrói uma pretensa “ciência jurídica”, priorizando o Direito como sistema de validez formal, imunizada por uma neutralidade que a isola de qualquer condicionamento de matiz ideológico, enquanto para os marxistas a determinação e o conteúdo ideológico das normas jurídicas são fundamentais para a caracterização do fenômeno jurídico. Em vão Kelsen proclama a erradicação do social e do político na esfera do conhecimento jurídico, que se atém à descrição das normas em geral, e não à compreensão (significação motivadora) das normas em si mesmas. Daí procede a crítica marxista de que os postulados de “pureza” e de “neutralidade” valorativa encobrem uma pseudo e pretendida construção científica marcada por interesses ideológicos.
Certamente, as agudas e contundentes objeções de Kelsen ao marxismo não ficam sem resposta. Excluindo as “clássicas” discussões com os juristas socialistas e soviéticos, significativas são as ponderações de Umberto Cerroni, para quem Kelsen se prende a um tipo mais tradicional de interpretação, priorizando a correlação entre estrutura econômica e superestrutura ideológica e deixando de lado “a problemática específica das relações entre sociedade moderna e Estado (e Direito) moderno […]”.[26] Dessa forma, para Cerroni,
descobre-se, na teoria de Kelsen, a presença determinante daquelas deficiências que ele imputava a Marx: uma representação oscilante, não conexa e ambígua da relação Direito-realidade e um pressuposto jusnaturalista de novo tipo. O que, entre outras coisas, deixa supor que Kelsen – ajudado pela tradição interpretativa – examina a obra de Marx, adotando como pauta sua própria concepção, dentro da qual não há lugar para uma mediação orgânica da ideia e da realidade, do Direito e da relação social material, mediação que resulta essencial para a compreensão do Direito.[27]
Ora, no seu esforço de tentar salvar a objetividade do pensamento científico e, por consequência, o discurso jurídico positivista, Kelsen recorre a um seguro e fechado sistema dogmático, solidificado no substrato da lógica formal, erradicando toda a sustentação da base social e da prática política. Não lhe interessam o conteúdo, as relações e as contradições sociais que informam os padrões normativos. Empreendendo tais objetivos, não se equivoca quando formula sua crítica à ideologia, qual seja, “a ideia de que a ideologia é uma consequência dos interesses subjetivos ou de erros lógicos, ‘um desdobramento errôneo do mundo’, uma teoria errônea”.[28] Deve-se reconhecer, por sua vez, a discordância de Ljubomir Tadić, antigo professor de Filosofia do Direito na Universidade de Belgrado, sobre a incorreta generalização de Kelsen, que identifica ideologia e consciência de classe com interesses subjetivos, negando-lhes, por conseguinte, toda a objetividade. Diante das grosseiras rotulações kelsenianas envolvendo “ideologia/marxismo/anticientificismo”, juristas marxistas já responderam, assinalando que os postulados da neutralidade valorativa e da pureza metódica na verdade encobrem uma elaboração de cunho ideológico liberal burguês apropriada à imutabilidade de qualquer status quo vigente.
Em sua crítica às posturas kelsenianas, ainda Ljubomir Tadić entende que a
interpretação de Kelsen dos pontos de vista de Marx sobre o Estado e o Direito caracteriza-se por uma tendência à simplificação constante e aberta, que se reflete, em primeiro lugar, no esforço por reduzir a concepção materialista do mundo a uma simples subcategoria da sociologia […]. Ora, Kelsen não consegue dar uma interpretação adequada da concepção de realidade em Marx. […] Kelsen não chega a captar o verdadeiro sentido da relação entre realidade e ideia, porque seu sistema reduz a realidade a uma massa passiva e amorfa […]. Dado que não é capaz de chegar à raiz da alienação ideológica, a “filosofia crítica” de Kelsen segue sendo uma doutrina não crítica, quer dizer, ideológica.[29]
Outros teóricos marxistas do Direito, como Vladimir Tumanov, identificaram argumentos contraditórios e falaciosos na obra Teoria comunista do Direito, minada por um “pendor para colher dividendos políticos” com a onda de movimentos do anticomunismo da época. Questionava ainda o ex-presidente do Tribunal Constitucional da Federação Russa: “Como interpreta então Kelsen as posições dos fundadores do marxismo? O seu método favorito é a crítica imanente da doutrina marxista, o seu desejo de encontrar contradições e disparidades que a privariam, segundo ele, da sua lógica interna”.[30]
Enfim, pode-se chegar à conclusão de que o rígido formalismo de Kelsen reflete certa posição dominante das ciências humanas em determinado momento do desenvolvimento político-econômico das sociedades burguesas liberais do século XX. Porquanto, ainda que se busquem teorizações aparentemente conformistas e não engajadas aos ditames dessas sociedades, na verdade, sob tais fórmulas e artificialismo técnicos, ocultam-se ideologias e intentos do próprio jogo da “neutralidade”, objetivando fins “impuros”. De fato, a suposta “cientificidade” e a propalada “neutralidade” kelsenianas não deixaram de ser também axiomas normativistas comprometidos, não isentos de interesses ideológicos, pois sua “Grundnorm” (vértice de sua mistificada pirâmide) transformou-se em instrumento inesgotável de legitimação de inúmeras ordens político-jurídicas contemporâneas: tanto de Estados do capitalismo liberal burguês quanto de Estados que viveram um certo tipo de socialismo burocrático autoritário, mas igualmente de regimes corporativistas totalitários.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da Universidade La Salle (Unilasalle, RS) e da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc, SC), onde também coordenou o Mestrado em Direitos Humanos e Sociedade, entre 2017-2023. Doutor em Direito. Professor emérito e titular aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB, RJ). É pesquisador nível 1-A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e consultor ad hoc da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Membro da Sociedad Argentina de Sociología Jurídica (SASJu). Igualmente integrante do Grupo de Trabalho do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO, Buenos Aires): “Pensamiento jurídico crítico y conflictos sociopolíticos”. Membro da International Political Science Association (IPSA, Canadá), do Research Committee on Sociology of Law (RCSL) e do Instituto Internacional de Derecho y Sociedad (IIDS, Lima). Autor de diversas obras no país e no exterior, entre elas: WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015; WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito: tradição no Ocidente e no Brasil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense/GEN, 2019; WOLKMER, Antonio Carlos. Teoria Crítica del Derecho desde América Latina. México: AKAL, 2017.
O texto ora apresentado consiste em uma adaptação de partes e transcrições escolhidas de obras anteriores:
WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 164-172; Introdução ao pensamento jurídico crítico. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 181-205; Teoría Crítica del Derecho desde América Latina. México: AKAL, 2017.
[2] KELSEN, Hans. Teoría comunista del Derecho y del Estado. Buenos Aires: Emecé, 1957. p. 32 e p. 34.
[3] Ibidem, p. 63.
[4] Ibid., p. 65
[5] Ibid., p. 65 e p. 67-69.
[6] Ibid., p. 72-73 e p. 75.
Observar ainda suas interpretações políticas:
KELSEN, Hans. Socialismo y Estado. México: Siglo XXI, 1982. p. 177 e segs.
[7] KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 3. ed. Coimbra: Arménio Amado Ed., 1974. p. 17.
[8] Ibid., p. 161.
[9] TUMANOV, Vladimir. O pensamento jurídico burguês contemporâneo. Lisboa: Caminho, 1985. p. 193-195.
[10] TADIĆ, Ljubomir. Kelsen y Marx. Contribución al problema de la ideología en la “teoria pura del Derecho” y en el marxismo. In: CAPELLA, Juan-Ramón (org.). Marx, el Derecho y el Estado. Barcelona: Oikos Tau, 1979. p. 112-113.
[11] Ibid., p. 114-115.
[12] GOMES, Orlando. Marx e Kelsen. Salvador: Progresso, 1959. p. 37-39.
[13] WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 132-133.
[14] STUCKA, Petr. La función revolucionaria del Derecho y del Estado. Barcelona: Península, 1974. p. 249-284.
[15] [Nota da Equipe do BLN] Em tradução livre, “o primeiro pensador marxista autêntico e sério no domínio do Direito”.
[16] Ver: PASHUKANIS, Evgeni. Teoría General del Derecho y marxismo. Barcelona: Labor Universitaria, 1976. Para um aprofundamento dessas concepções, examinar:
CERRONI, Umberto. Marxisme et Droit. Considérations historique-critiques. In: MARX et le Droit moderne. Paris: Sirey, 1967. p. 134-139. (Archives de Philosophie du Droit).
Vide também: CERRONI, Umberto. Teorie sovietiche del Diritto. Milano: Giuffrè, 1964.
STOYANOVITCH, Konstantin. La Philosophie du Droit en U.R.S.S. (1917-1953). Paris: LGDJ, 1965. p. 43-68, p. 96-134 e p. 175-235.
[17] KELSEN, Hans. Teoría comunista del Derecho y del Estado. Buenos Aires: Emecé, 1957. p. 112 e p. 138.
[18] Ibid., p. 131.
[19] WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 133.
[20] Ver as principais teses levantadas nesse importante conclave na obra:
INSTITUTO HANS KELSEN. Teoría pura del Derecho y teoría marxista del Derecho. Bogotá: Temis, 1984.
[21] REICH, Norbert. Hans Kelsen y Evgeni Pashukanis. In: INSTITUTO HANS KELSEN. Teoría pura del Derecho y teoría marxista del Derecho. Bogotá: Temis, 1984. p. 23-24.
[22] Ibid., p. 28-29.
[23] Ibid., p. 28-29.
[24] Ibid., p. 28-29.
[25] Teoria Geral do Direito e marxismo. Tradução: Prof. Sílvio Donizete Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988. p. 19 e p. 34.
[26] CERRONI, Umberto. Marx y el Derecho moderno. México: Grijalbo, 1975. p. 146.
[27] Ibid., p. 174.
[28] TADIĆ, Ljubomir. Kelsen y Marx. Contribución al problema de la ideología en la “teoria pura del Derecho” y en el marxismo. In: CAPELLA, Juan-Ramón (org.). Marx, el Derecho y el Estado. Barcelona: Oikos Tau, 1979. p. 12.
[29] Ibid., p. 120-123 e p. 130.
[30] TUMANOV, Vladimir. O pensamento jurídico burguês contemporâneo. Lisboa: Caminho, 1985. p 221.
Fonte Imagética: Montagem feita pela Equipe do Boletim Lua Nova a partir das seguintes fontes: Hans Kelsen (1881–1973) ~1930 © Georg Fayer (1892–1950) (Wikimedia Commons), disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hans_Kelsen_(1881%E2%80%931973)_~1930_%C2%A9_Georg_Fayer_(1892%E2%80%931950)_OeNB_8026867.jpg>, acesso em 23 maio 2023; e Karl Marx (Wikimedia Commons), disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Karl_Marx.png>, acesso em 23 maio 2023.