Ronaldo Tadeu de Souza[1]
O Boletim Lua Nova entrevistou Érico Andrade, presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e bolsista produtividade do CNPq. Agradecemos imensamente a disponibilidade e generosidade do Érico em nos conceder esta entrevista. Nesta segunda parte, conversamos sobre os principais desafios da filosofia hoje e da nova diretoria da ANPOF. A primeira parte pode ser lida aqui.
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Em sua opinião, quais são os principais desafios da filosofia hoje?
Érico Andrade (EA): Os principais desafios das filosofias hoje são três e entrelaçadas: eu vou falar aqui não tão organizadamente seguindo a ordem das razões, não dá pra falar dessas três coisas de forma concomitante. Eu acho que um dos principais desafios da filosofia hoje é quebrar com essa diferença de gênero que existe, ou seja, que a filosofia tenha mais pessoas trans, mulheres; isso é uma questão central. Outro grande desafio da filosofia hoje e eu falo até como Presidente da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) isso a gente pode até retomar mais à frente na nossa conversa, é que fortalecer as outras regiões do Brasil em que a filosofia está ainda caminhando, que é o norte, especialmente no norte e centro-oeste do Brasil. Fortalecer todos esses passos, consolidar a filosofia no Nordeste que tem se fortalecido muito nos últimos anos e as questões de raça. Eu acho que a questão de raça que hoje é uma questão premente, e a filosofia não pode deixar de enfrentar.
Por exemplo, por que tem tão poucas pessoas negras na filosofia? Para vocês terem uma ideia, eu juntamente com outros colegas, tomamos a iniciativa de fazer o GT de Raça e Filosofia. A dificuldade que nós tivemos para colocar uma mulher negra na coordenação desse GT foi algo inacreditável. E por quê? Porque muitas vezes as mulheres negras elas estão em outras pós-graduações fazendo filosofia, mas não necessariamente em uma pós-graduação de filosofia. Isso é uma questão para a gente pensar sobre.
Eu acho que esses desafios, são os desafios colossais que a gente tem que enfrentar como área. E tanto do ponto de vista institucional, isto é, nas discussões da ANPOF na qual eu sou o presidente, na CAPES, no CNPq; e também do ponto de vista da prática filosófica, no que diz respeito às pesquisas filosóficas. É fundamental que essas questões passem a imperar no debate filosófico e público. Ou seja, a gente não pode fazer agora discussões desconsiderando as questões de gênero. As mulheres na filosofia têm feito um trabalho extraordinário nesse aspecto. Várias pensadoras brasileiras têm colocado em pauta filósofas como Madame Châtelet, Elisabeth e tantas outras que não acerto dizer o nome.
Nós temos também, por outro lado, um grande caminho a ser feito no que diz respeito ao debate da negritude, do racismo na filosofia. Porque como se tem a compressão da filosofia universal e absoluta, uma pessoa negra na filosofia ela era quase embranquecida porque ela estudava coisas de branco. Ou seja, é como se não enxergasse até então problema em estudar isso, como se isso fosse dizer algo da gente. E não necessariamente elas dizem coisas da gente de nossa cultura; diz de outras culturas de outros momentos e que podem transversalmente nos tocar claro, é evidente, mas não quer dizer que seja suficientemente absolutos ao ponto de suplantar todas essas questões, todas nossas demandas, todas nossas inquietações. Então, eu acho que isso é importante, ou seja, não apenas ter mais pessoas negras na filosofia, como trazer temas que envolvam a racialização no debate filosófico.
É necessário que nas escolas as pessoas percebam que tem pensadoras mulheres, pensadores negros e negras, pensadoras trans fazendo filosofia. Então, se as pessoas não perceberem isso nas escolas vai ser difícil porque até para entrada de pessoas negras, mulheres, trans nos cursos de filosofia são menores. Então eu acho que a gente vai ter um desafio fundamental no próximo período. Hoje as questões fundamentais da filosofia nesse sentido são as de gênero, de raça e de regionalidades. Se a gente não considerar que o Brasil é diverso é grande e que a gente tem que fortalecer todas as regiões. Então isso eu acho que é o grande desafio que a filosofia brasileira tem hoje: são esses 3 aspectos. E que envolvem a construção de uma tradição filosófica, mais plural do que essa calcada apenas no comentário de filósofos europeus.
É decisivo e interessante o que você está refletindo, Érico, como filósofo negro. Eu, Ronaldo, sou da ciência política, mais precisamente da área de teoria política. Nessa área também é difícil ver pessoas negras (mulheres negras, então, são aves-raras). Está mudando agora com os Encontros de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro e Latino Americano, que estão se consolidando no calendário acadêmico nacional, mas ainda assim é complicado quando se pensa em pessoas negras para falarem, apresentarem trabalhos etc. Quais são os meios para atenuar isso? Como professor de filosofia, como você pensa em meios para inserir o negro na pesquisa e como se ensina uma aluna negra um debate sobre filosofia? Você tem alguma ideia?
EA: Essas áreas sempre foram hostis à gente… Elas foram feitas e desenvolvidas em parte para reafirmar a inferioridade da pessoa negra e a superioridade da pessoa branca; então é normal que nessas áreas a gente tenha reticências em entrar nelas. Imagina eu entrar em uma área que não tem nenhuma pessoa negra sendo estudada e as pessoas brancas que são estudadas estão dizendo que eu sou inferior como pessoa negra, Hegel, Kant esses autores todos, então, são questões complicadas para pessoas negras.
Do ponto de vista pessoal há muito tempo desde que eu entrei na universidade, faz um tempo já que eu tenho nas minhas Bolsas PIBIC mulheres; e com o avançar das minhas reflexões, hoje em dia eu só tenho orientandas de iniciação científica, porque de mestrado, doutorado, na pós-graduação é mais complexo porque vêm pessoas de outros lugares aí você não tem como controlar, mas já na iniciação científica como eu estava falando eu só tenho mulheres negras minhas orientandas. Tem que ter uma certa firmeza nisso porque vão falar, mas você não vai pegar as melhores alunas e etc, mas para mim faz parte do processo revolucionário pautar e trazer essas mulheres para perto. É óbvio que muitas vezes elas vêm da escola pública, não tem a mesma formação de pessoas de outros lugares, não tiveram acesso ao curso de inglês ou curso de francês na época do colégio, mas é um trabalho mesmo. É um trabalho que tem que ser feito na prática.
Eu também sou psicanalista, eu faço trabalho social, obviamente eu sou professor [de instituição pública] não posso ganhar dinheiro com psicanálise. Mas eu atendo pessoas negras. Então eu acho que é colocar isso como prioridade absoluta no nosso investimento político. E não só dos negros e negras, dos brancos e brancas, as pessoas tem que se implicar por esse processo também é procurarem consolidar e fortalecer a pesquisa de pessoas negras. E tendo uma cota de PIBIC para essas pessoas, ou seja, além das políticas estatais de ações afirmativas nós mesmos como professores e professoras, como profissionais temos que colocar isso em prática.
Você acha que a filosofia política deu respostas à altura para os desafios do século XXI? Por exemplo, no entendimento e crítica à ascensão da direita pelo mundo, o papel das redes sociais, etc., você pensa que a filosofia política deu respostas à altura do seu tempo e dos desafios sociais e políticos?
EA: Sua pergunta eu a acho muito interessante primeiramente. É por quê? Porque ela convoca a gente a pensar se a filosofia está cumprindo o seu dever de ser uma forma de pensar e conceituar o tempo histórico presente. Então, será que a filosofia está dando conta disso ou não? Eu diria que parcialmente sim. A tarefa da filosofia é por excelência algo inacabado. Mas essa parcialidade, ela se dá em dois ângulos, por um lado, por esse inacabamento próprio da filosofia, ou seja, uma tarefa que está sendo construída por nós nesse momento em que estamos pensando sobre essas questões, a partir do momento que você me convida a refletir sobre elas, é o tempo presente e a reflexão presente que está acontecendo nesse instante; por outro lado, é parcial também, porque o que faltou de percepção a esse respeito tem muita relação como o próprio modo pelo qual a filosofia foi pensada no Brasil, nossa filosofia foi pensada no Brasil muitas vezes a partir de uma compreensão novamente muito calcada no horizonte europeu.
Por exemplo, uma coisa muito importante aqui no Brasil, que formou muito a USP em São Paulo e outros lugares também, que é o debate da teoria crítica; a gente incorpora muito o debate da teoria crítica aqui no Brasil fortemente e muitas vezes a teoria crítica, que é interessante ela e é importante sim, mas muitas vezes ela está circunscrita a uma perspectiva que não necessariamente coincide com aquela que a gente está vivenciando. Se a gente pensar, por exemplo, no Habermas que é um filósofo muito estudado aqui no Brasil, ele apostava no consenso a partir do diálogo, do lugar ideal de fala, etc. O Habermas é exaustivamente estudado no Brasil, que é um país em que a desigualdade impera. Então, há uma discrepância entre o que o Habermas coloca e o que o Brasil é do ponto de vista factual. E mesmo assim a gente estudou Habermas incansavelmente tentando sempre de alguma forma adaptar o Brasil à teoria habermasiana e algumas vezes sem se colocar em questão: será que esse modelo filosófico nos ajuda?
Outro exemplo é o John Rawls. Estudar John Rawls com as fortes idealizações que ele tem aqui no Brasil é um problema. Além do caráter imperialista que a filosofia dele parece ter e que nunca é pauta nos debates brasileiros. Falta, então, a percepção crítica desses pensadores europeus e americanos, e nós terminamos [por conta disso] tendo uma percepção parcial dos problemas do próprio país, porque não damos conta que parte desses problemas se deve ao imperialismo que filósofos como John Rawls que defendem de forma direta ou indireta. Ou um esforço tremendo de adaptação do modelo teórico habermasiano ao Brasil como orientador de reflexão política: não dá e não deveria ser assim.
Com relação à questão da extrema direita e o avanço dela. A extrema direita no Brasil ela sempre foi muito forte. A gente não pode esquecer o Movimento Integralista. E a extrema direita é muito forte por uma razão muito simples: a branquitude nunca aceitou o fim da escravidão. Então a extrema direita que a gente vê hoje não é outra coisa senão uma reação neocolonial às pautas identitárias que vieram forças nos últimos anos. Então, o que está se vendo como extrema direita é uma continuidade do integralismo, acentuado pelas questões próprias do nosso tempo que eram impossíveis de serem pensadas antes das redes sociais [têm um papel importante aqui], isso é novo, isso não tinha como ser pensado antes. A indústria da mentira sempre existiu, não é? Produções distorcidas da realidade foram feitas por grandes filósofos como Kant e Hegel no que eles afirmam a respeito dos povos africanos. Distorção sempre existiu. Mas a mentira, que também sempre existiu, agora ganha a forma de uma potencialização de caráter industrial. Isso vem com as redes sociais.
Ora, então essa ascensão da Extrema direita, na verdade, tem que ser reconsiderada, porque não há ascensão. Ela é uma continuidade desse projeto de extrema direita no Brasil; o fato dela ter atingido a presidência, isso sim é uma coisa inédita. O fato dela ter atingido a presidência antes de termos qualquer governo de extrema esquerda isso é algo que nos faz refletir sobre a própria história do Brasil, ou seja, é muito mais fácil o neocolonialismo do que um projeto emancipatório no nosso país. Isso foi o que as urnas demonstraram. Ou seja, ascensão é somente pelo fato de ter sido eleita essa extrema direita para a presidência, mas do ponto de vista histórico, a extrema direita sempre esteve presente no Brasil de forma reativa.
Se a gente pensa que o Estado brasileiro é um Estado que mata pessoas negras por conta de uma guerra às drogas, que é na verdade uma guerra aos corpos negros, o Estado brasileiro de hoje ele cumpre, então, a mesma função do Estado no Império. O Estado imperial é o mesmo Estado da Nova República, ele tem a mesma condição de massacrar os corpos negros; não mudou nada. O Brasil ainda é um país religioso cristão, você vai no Supremo Tribunal Federal tem lá um crucifixo, você vai aqui para reitoria da Universidade Federal de Pernambuco e você vai ter um crucifixo também. Então de alguma forma a hegemonia branca nunca foi colocada em xeque. A gente não teve um projeto realmente emancipatório. O que a gente percebe é há uma continuidade do projeto neocolonial.
E se a gente pensa, por exemplo, as forças armadas no Brasil elas sempre estiveram a serviço do capital e sempre tiveram a serviço também de um projeto colonial, as forças armadas nunca foram pensadas do ponto de vista emancipatório. Talvez o Luiz Carlos Prestes, um momento, um lampejo. Mas você tem uma história das forças armadas com uma história de projeto colonial. A propaganda da ditadura militar com relação à Amazônia. “Vamos passar a transamazônica, vamos atravessar o inferno verde onde não há vida. Era [um projeto] brutalmente colonial a propaganda exercida na década de 1960, brutalmente colonial. Então essa perspectiva colonial está presente no exército brasileiro fortemente. Também o exército sempre foi um agente político no Brasil importante. Por que? Porque o exército é a forma organizada de reprimir e colonizar, o exército é aliado no Brasil a essa aberração que se chama polícia militar. Então é um conluio de forças do Estado contra, especialmente, o corpo negro contra o corpo indígena.
Essa extrema direita, essa perspectiva, ela sempre esteve presente no Brasil. O nosso fundamento religioso é radicalmente racista. As pessoas negras não têm uma aderência a religiões neopentecostais, por exemplo. É uma espécie de apagamento da negritude que está em jogo. Eu não estou dizendo que a pessoa negra tem que ser e se ligar a uma religião afrobrasileira, de modo nenhum, mas o fato de serem, por vezes, incondicionalmente, ligadas às religiões neopentecostais, faz refletir sobre que tipo de apagamento está em jogo aí?
Conte-nos como se deu a ideia da candidatura para ser presidente da ANPOF, como surgiu e quais os apoios e tópicos da chapa. Você tem algum projeto específico? Como é ser o primeiro negro a ser o presidente da ANPOF?
EA: Susana Castro que era presidente antes, ela é uma pessoa que tem estudado muito as questões decoloniais, ela tem feito um movimento até parecido com o meu, ela estudava filosofia grega e agora estuda feminismo, questões de racismo e de gênero fortemente. É uma pesquisadora brasileira importante sobre as questões de gênero; então na época ela não queria sair como presidente novamente e me consultou sobre a possibilidade de eu ser o presidente da ANPOF. Eu sou um homem negro, nordestino; e fiquei semana pensando, não foi uma coisa óbvia para mim, e aceitei. Aceitei esse cargo que é muito desafiador. Por quê? Porque primeiro é manter um legado que eu acho significativo que é a questão da importância das mulheres na filosofia, na diretoria comigo tem mais mulheres do que homens, isso é um ponto relevante. E por outro lado, expandir as questões raciais.
No meu caso em particular, sem deixar de considerar as questões centrais com relação a avaliação da pós-graduação com temas que eu tenho muito apreço. Porque se a gente quer combater o capitalismo, o neoliberalismo na universidade, a gente tem que discutir a avaliação. Porque o que induz o produtivismo é a avaliação. Então, se a gente não pauta um debate sobre a qualidade da avaliação, a gente vai ser capturado por essa lógica quantitativa do neoliberalismo. Então esse é um ponto que a ANPOF não pode se furtar no que respeita ao debate da pós-graduação e da filosofia Brasileira como uma área institucional.
A gente acabou de ter um presidente, um ex-presidente [da República] que diz que vai governar para oprimir minorias. Nosso objetivo não é oprimir ninguém. Ou seja, eu tenho uma percepção da filosofia que não necessariamente coincide com a filosofia brasileira como um todo, então o meu desafio não é impor minha percepção da filosofia, mas é dialogar com a área e escutar o que a área entende dela mesmo. Porque não podemos perder de vista que nós somos representantes da pós-graduação brasileira, não somos a pós-graduação Brasileira, então eu acho que o fundamental da nossa direção é essa capacidade de escuta e de articulação do debate com vistas não a produzir consensos, que eu acho que é uma coisa que muitos colegas ainda pensavam. Nós temos 55 programas de pós-graduação no Brasil, não é obrigado 55 programas de pós-graduação a produzir consensos. O importante é que a gente entenda essa diversidade do Brasil e se vai haver um consenso, se vai haver dissenso, pontos mais ou menos consensuais ou não isso para gente é menos relevante do que dar vazão a essas vozes, escutar essas vozes, escutar essa diversidade regional, essa diversidade de gênero, essa diversidade de raça; essa é a questão central na nossa direção […].
Primeiramente, eu não fui o primeiro negro. Teve um colega meu, Edgar Marques, professor da UERJ, que é um homem negro, e que foi presidente da ANPOF. Eu acho que no momento em que Edgar foi presidente esse debate no Brasil ele não tinha a relevância que tem ganhado nos últimos anos. E a cada ano que passa esse debate vem ganhando relevância. Então, é importante primeiro que a gente não faça o apagamento do próprio Edgar como um homem negro, ou seja, para a gente não cometer uma espécie de racismo, que quando tem uma pessoa negra que foi presidente a gente terminar dizendo que não teve por embranquecê-lo, que foi o que aconteceu com Machado de Assis; Machado de Assis virou branco quando na verdade ele era uma pessoa como eu, um mulato, um mestiço dentro da terminologia da época. Então eu acho que esse é um ponto importante. E quem poderia falar melhor disso seria o próprio Edgar Marques.
Agora, do ponto de vista da minha candidatura e da minha presidência, essa questão da racialidade está no primeiro plano. É claro que eu sou um pesquisador, tenho um trabalho já de várias e inúmeras coisas na área de filosofia, assim como o Edgar, e também outros colegas que foram presidentes e presidentas. E os presidentes e presidentas da ANPOF são pessoas que têm já trabalhos consolidados na área, são pessoas que representam áreas na filosofia; isso não está em cogitação aqui. Eu acho que o que está em cogitação, que está no centro do debate é o fato de eu pautar essa questão da racialidade, ou seja eu estou como presidente da ANPOF como um homem negro e não como um cara que estudou na Sorbonne. Eu estou na presidência da ANPOF como um homem negro.
Então acredito que esse é um teste, um diferencial. Ou seja, eu entendo que a pauta da racialidade não é algo marginal na filosofia, mas sim que ela está no centro do debate e vou pautar a minha gestão, juntamente com meus colegas e minhas colegas claro, na questão da negritude como um elemento central na filosofia brasileira que tem que ser resolvido. Esse abismo que separa as pessoas negras da filosofia não pode ser mais sustentado. Então o desafio que a gente tem como gestor da ANPOF é trazer a questão da negritude para primeiro plano do debate filosófico. É nesse sentido, portanto, que a minha presença como homem negro tem relevância do ponto de vista da racialidade, porque ela se apresenta como tal.
E tem o Grupo de Trabalhos (GT) Filosofia e Raça na ANPOF também.
EA: Esse GT ele vem com atraso de séculos. Mas estamos fazendo a filosofia brasileira pensar nas questões da negritude, nas questões indígenas e nas questões, inclusive, dos povos orientais. Ou seja, de como o embranquecimento ele se expande inclusive em direção à própria percepção objetiva dos povos orientais. Então esse GT Filosofia e Raça é claro que tem um forte apelo com relação às questões da negritude, mas é também um GT que expande a reflexão sobre o próprio caráter da branquitude e como a branquitude funcionou como monopolizadora do debate filosófico e monopolizadora do espaço público.
Então de alguma forma esse GT ele conseguiu colocar em pauta na última ANPOF de forma presencial, um debate relevante sobre a questão da raça e da produção de espaços públicos, da produção do debate público, da produção da própria filosofia. Então, informar racialmente a questão da filosofia, eu acho que é um mérito extraordinário desse GT. Por exemplo, têm pessoas da África no nosso GT, então isso envolve tanto a percepção do que é ser negro na África do que é ser negro no Brasil; do que é ser oriental no Brasil, o japonês, o chinês que são confundidos como a mesma coisa. Então tudo isso passou a permear o debate filosófico brasileiro, a permear a percepção inclusive do que é o Brasil. E inclusive como a branquitude tem o poder no Brasil de transformar tudo aquilo que ela toca em coisa de branco. O debate que a gente tem feito nesse GT tem sido extraordinário; porque eu digo sempre antes de existir a pessoa negra, existe o branco. E antes de existir o oriental, existe o ocidental, então acho que esse é um ponto relevante que o nosso GT tenha colocado em questão […].
Fale-nos um pouco sobre a Escola Filosófica de Pernambuco, se é que podemos chamar assim esse grupo importante aí em torno de você, da Mariana Fischer, do Filipe Campello, do Marcos Silva e do NÓZ?
EA: Perfeito. Eu acho que Recife tem sido um lugar privilegiado enquanto espaço de reflexões que vão para além daquilo que a gente estabeleceu como tradição filosófica brasileira. A gente tem feito um esforço muito grande de pensar questões a partir dos pensadores dos povos originários, das pessoas negras. Eu acho que há uma concepção em Recife que está sendo gestada nesse momento que convoca várias dos nossos pesquisadores e pesquisadoras a pensar questões políticas a partir desse recorte racial e de gênero. Isso tem ganhado cada vez mais força aqui em Recife. Tem um colega meu, Marco Silva, por exemplo, que é da área de lógica, um pensador de ponta aqui e também com projeção no mundo mesmo, e que tem também se voltado para questões da racialidade. Tem a Mariana Fischer, com discussão de gênero a partir de Butler já incorporando Lélia Gonzalez; o Filipe Campello, trabalhando as questões em diálogo com o pensamento e perspectivas dos povos ameríndios. Tem também um povo massa que está em outros cursos e que tem pensado de forma filosófica.
Então, há um clima se formando aqui de pensarmos questões a partir, digamos, de pelo menos descentrar o cânone e também pensando em questões a partir da experiência brasileira, que é atravessada pelas questões raciais e de gênero. Eu acho que a há essa gestação, que é muito diferente, por exemplo, do que teve aqui em Recife há séculos atrás, que foi a Escola de Recife com o Tobias Barreto, que era uma percepção muito ligada à filosofia alemã, à filosofia européia. Tobias Barreto, que, dizem, andava com jornal alemão em Recife, enquanto as pessoas nem sabiam ler e escrever em português e ele com jornal alemão – ou seja, um completo afastamento da realidade que só é possível, ou só foi possível, porque se tinha a compreensão de que o modelo europeu era um modelo universal. Essa desconexão da realidade implica uma compulsão e uma aceitação do paradigma e do modelo europeu. E que a gente hoje nesse momento da filosofia aqui em Recife, não pensa dessa forma.
Como é visto o Gilberto Freyre aí em Pernambuco especificamente, tanto nos espaços acadêmicos como nos espaços culturais? Pergunto porque, por exemplo, Mário de Andrade e Oswald de Andrade são personagens paulistas da Semana de Arte Moderna de 1922 e são vistos de modo diferente aqui em São Paulo do que do resto do Brasil…
EA: É muito boa essa questão. Gilberto Freyre tem o mérito de ter pensado o Brasil a partir do que o Brasil de fato era, porque os pensadores até ele pensavam o Brasil de acordo com o que o Brasil deveria ser, isto é, branco. Então o pensamento construído até a obra de Gilberto Freyre era para pensar o Brasil de acordo com o que ele deveria ser e esse pensamento serviu de lastro para todo um projeto de imigração branca para o Brasil. Estamos falando da confluência entre a eugenia e a imigração sobretudo europeia. O Gilberto Freyre entra e escreve nesse contexto.
Nesse contexto, Gilberto Freyre tem o mérito de não querer incorporar o modelo europeu como modelo universal e absoluto. Para atingir esse modelo, o Brasil teria que embranquecer. Então, ele questiona isso, a obra dele fez isso. E aí ele vai brigar com os racistas da década de 20, com o racismo científico. Sobre isso é evidente que está neste lugar. Ele também tem insights bons, ele diz que, por exemplo, a música pernambucana, a dança pernambucana é com os pés, e a dança baiana com as mãos, uma coisa simples, mas que tem sentido. Os sobrados aqui em Recife são mais estreitos, ele afirmava, já os baianos mais largos. Enfim, essa percepção que ele tinha da cidade, do povo, da cultura, é interessante em certo sentido.
Por outro lado, quando o Gilberto Freire propõe que esses três povos formaram o Brasil, os indígenas, os negros e os europeus. Quando ele fazia essa proposição, ele mantém uma estrutura hierárquica, especialmente na divisão de tarefas, por assim dizer, no que diz respeito à formação do país. Então, é nessa divisão, nessa hierarquização, que o Gilberto Freyre não questiona o status-quo. Além disso, o posicionamento político conservador dele é insustentável e corrobora o racismo.
Então, o Gilberto Freyre ele é ambivalente, ou seja, ele consegue ser um pensador brasileiro progressista em relação ao que estava se colocando como racismo científico, mas ao mesmo tempo ele é conservador, porque ele, inclusive, defendia uma modernização conservadora, porque ele entendia que essa hierarquização não seria um problema para o país, e isso implica, obviamente, um prejuízo das pessoas negras. E Gilberto Freyre era aquele personagem clássico aqui de Recife: uma pessoa de engenho, que vai virar um intelectual. Aqui tem vários, porque uma cidade antiga como a nossa, como aí em São Paulo, nesse caso também com seus arranjos, mas tem algo parecido entre elas, que é o fato de ter elites centenárias e muito dessas elites vai falindo, vai vendendo engenho, e muitos dos seus filhos viram intelectuais – José do Rêgo, que até fez um livro sobre isso, Gilberto Freyre, e boa parte da intelectualidade pernambucana e que é brasileira é fruto disso, são filhos de donos de engenho. Então essas pessoas vêm a formar essa camada aristocrática reflexiva para pensar o Brasil. E o Gilberto Freyre é esse quadro. Ele vai ser visto com muita crítica pelo movimento negro, e com uma certa ponderação por intelectuais como eu, por exemplo, que entendem a importância dele, o contexto histórico dele, mas que entende também que ele promoveu o racismo a partir do momento que manteve a estrutura hierárquica racial do Brasil conservada, sem questioná-la, como se ela fosse algo harmônico.
Embora Gilberto Freyre não tenha usado o termo democracia racial, é importante ressaltar isso nas suas grandes obras, mas ele mantinha essa aura de uma harmonia que a gente sabe que nunca houve. O próprio Gilberto Freyre narra conflitos, narra cenas de violência muito fortes que as pessoas brancas perpetraram contra as pessoas negras. Mas, do ponto de vista da cultura, ele não entendeu que é a própria forma como ele concebeu a diferença entre as culturas e como elas foram importantes para a formação do país, essa própria forma é ela mesma calcada em uma hierarquia e construída a partir da perspectiva da branquitude. Então Gilberto Freyre é esse pensador que tem uma importância no seu tempo, mas que ao mesmo tempo tem lacunas que são significativas, e algumas delas indiretamente racistas.
Conte-nos um pouco do seu novo livro. Quando irá sair? Já tem um título?
EA: É, eu espero que saia neste semestre. Esse livro vai ser publicado pela editora N-1. Eu estou dizendo em primeira mão pra vocês aqui, né? Foi prontamente aceito por ele [Peter Pál Pelbart]. Quando enviei um índice, introdução, ele pediu o livro todo; mandei, ele aceitou. Estou revisando o livro, que eu tenho aqui do meu lado. Esse livro vai ter três partes. A primeira parte vai ser uma discussão pela filosofia, para mostrar como a filosofia construiu uma episteme racista. A filosofia moderna foi uma forma de ratificar, endossar e ao mesmo tempo produzir o racismo. Então, eu entendo a filosofia como uma produtora do racismo. Uma primeira parte do texto, né? Isso com os filósofos iluministas e, especialmente, com Kant e Hegel.
Na segunda parte do texto eu vou apresentar a negritude como uma experiência corporal de resistência a esse discurso de inferioridade. Então, eu vou entender negritude como a experiência do corpo coletivo, do corpo de pessoas que se encontram, apesar da sua diversidade em comum, no fato de serem racializadas. Isso gera na gente uma experiência de racialização que nos conecta com um corpo negro. Porque a ideia de raça é algo estranho às pessoas negras, não tinha sentido falar de raça negra na África. E essa ideia de raça negra ganha força no projeto colonial e filosófico e, ao mesmo tempo que ela ganha força, do ponto de vista hegemônico e da política pública, ela vai encontrar também uma forte resistência desses próprios corpos, que vão se rebelar, seja na forma da arte, seja na forma do enfrentamento político, e filosófico. Então, eu vou mostrar que a negritude é, sobretudo, uma experiência de resistência à identidade colonial.
E, na terceira parte, eu vou dialogar fortemente com a psicanálise para mostrar um pouco, a partir de um relato pessoal, como me tornei negro, porque eu não sou uma pessoa negra retinta e obviamente nunca fui nem perto de ser branco. Sempre fui declarado como um pardo. Quando era criança e quando eu virei adulto, ou adolescente, me declarava como pardo, me autodeclarava como pardo. E aí, primeira vez na minha vida, eu me declarei como negro no Censo, agora, que tivemos, porque eu entendi que ser negro é uma experiência, no meu caso, que passa por um processo psicanalítico de reconhecimento de si como um corpo negro, e que essa experiência que eu tenho que me permite me autorizar a me autodeclarar negro. Ela não é experiência absoluta, muito menos calcada numa identidade nos termos coloniais, mas é uma experiência que se refere ao modo pelo qual fui subjetivado, por um lado sendo racializado, por outro lado resistindo a essa racialização.
Então, vou me dar conta que eu era um homem negro num colégio branco, né? Classe média. Mas ao mesmo tempo era um homem negro que morava num subúrbio, e do lado da favela, e onde eu via, por exemplo, corpos negros sendo mortos. E eu vi aqueles corpos negros sendo mortos e aqueles corpos tinham em comum mais do que meu corpo, uma negritude retinta. Mas ao mesmo tempo, eu era racializado ainda que não fosse negro retinto. E, a partir de então, eu passo a me dar conta de que eu sou negro, eu me tornei negro a partir do momento que eu reconheci que, embora não tivesse a mesma experiência de violência que aqueles meus colegas negros viviam, por serem retintos e pobres, eu era negro, naquilo que a classe média branca faz com a negritude, que é sempre estampar: você é negro!
Por mais que seja inteligente, leia o cão, escute ópera, o que for, que você é negro. Então, mesmo tendo estudado no centro da branquitude, que é a Sorbonne, eu sempre fui tratado como uma pessoa negra. Então, nenhuma máscara branca foi suficientemente forte para me recobrir toda a pele, para que eu me achasse branco. Sempre soube que era negro, aliás, eu sempre soube que não era branco, e a partir de certo momento, uma análise pessoal, eu começo a entender que eu sou negro. Mas isso só foi possível quando eu, justamente, entendi que a própria psicanálise, por meio da qual eu narro a minha vida, é ela mesma um projeto de branquitude. Então eu precisei identificar a branquitude para poder me des-identificar como um pardo e, consequentemente, me assumir negro – negro não como uma identidade, mas negro como uma experiência de sofrer racialização, e ao mesmo tempo de combatê-la, pela própria existência do meu corpo. Meu corpo está na academia, meu corpo está na presidência da ANPOF, é sinal de que a resistência negra persiste, insiste, e vence. Vitória do movimento negro.
A minha ideia é que esse livro venha a público agora nesse primeiro semestre, não sei exatamente o mês. Mas eu estou batalhando para que ele chegue logo. Porque tenho vários colegas meus, maravilhosamente generosos, e uma colega minha generosa que está lendo o texto, fazendo observações Mas vai vir a público com certeza neste semestre. “Negritude sem identidade”, é o título, o subtítulo é “sobre as narrativas singulares das pessoas negras”.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Doutor e Pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP e no Grupo de Pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica (CNPQ-USP) e membro da equipe editorial do Boletim Lua Nova/Cedec
Fonte Imagética: foto de Érico Andrade obtida em suas mídias sociais.