Gabriel de Matos Garcia[1]
Mary Wollstonecraft pode ser caracterizada como uma republicana feminista. Republicana porque defende um conceito republicano de liberdade, o qual podemos denominar: “liberdade como independência”. Feminista porque defende a igualdade entre os sexos e porque possui uma interpretação da dominação masculina exercida sobre as mulheres. (HALLDENIUS, 2015). Obviamente, esses dois elementos interagem entre si e se influenciam mutuamente. O elemento republicano condiciona e estrutura todo o pensamento feminista de Wollstonecraft, ao passo que o elemento feminista faz com que Wollstonecraft desafie e qualifique o pensamento republicano de seu tempo, sem, entretanto, abandonar os seus princípios fundamentais. Meu objetivo neste breve texto é analisar um dos conceitos centrais dessa teoria feminista republicana de Wollstonecraft: o conceito de liberdade.
Antes de enfrentarmos essa questão, é importante analisar brevemente o contexto intelectual no qual Wollstonecraft estava inserida. Este era marcadamente republicano. Entre as suas associações próximas estavam nomes como Joseph Priestley, Thomas Paine e Richard Price.
Quais eram as características centrais desse republicanismo do século XVIII? Em primeiro lugar, esses autores compreendiam a liberdade como independência. Nas palavras de Richard Price, “os indivíduos na vida privada, enquanto mantidos sob o poder dos senhores, não podem ser denominados livres, por mais equitativa e gentilmente que sejam tratados”. (Ibid., p. 21 apud PRICE, 1778)[2]. Nessa concepção, a ausência de liberdade não está diretamente relacionada a estar submetido à interferência de outrem, como na ideia de liberdade negativa, mas sim ao status possuído em relação aos demais. Se estou submetido à vontade arbitrária de outra pessoa, ainda que esta não me coaja ou interfira em minhas ações, para os republicanos eu me encontro em uma situação de não liberdade, pois não tenho a capacidade de contrariar ou impedir que esse poder seja exercido sobre mim, estando, exclusivamente, dependente da boa vontade da pessoa a qual me encontro submetido. Por outro lado, ao ser impedido de agir devido a uma lei que não representa uma vontade arbitrária, não posso me considerar menos livre devido a isso.
Em segundo lugar, como corolário desse conceito de liberdade, esses republicanos sustentam que uma pessoa só pode ser livre quando vive em um Estado livre, ou seja, um Estado no qual o poder político não é arbitrário. Como sustenta Skinner, “a presença do poder arbitrário dentro de uma associação civil tem o efeito, como eles [os republicanos] gostam de dizer, de converter seus membros da condição de homens livres para a de escravos” (SKINNER, 2008, p. 85). Somente um regime republicano, no qual as leis são realizadas pelas pessoas ou por representantes por elas escolhidos e a elas responsáveis, e no qual essas leis são aplicadas igualmente, pode estabelecer um poder político não arbitrário. Qualquer outro tipo de regime político, como a monarquia absoluta, viola a liberdade de seus súditos e os transforma em escravos.
De modo geral, esse era o contexto republicano no qual Wollstonecraft estava inserida. Apesar disso, são escassas as discussões que analisam a sua teoria à luz do republicanismo. Virginia Sapiro, por exemplo, apesar de enfatizar o meio republicano no qual Wollstonecraft estava inserida, não a caracteriza como uma pensadora republicana, e não analisa a sua teoria nestes termos (SAPIRO, 1992). Barbara Taylor argumenta ouvir “ecos do pensamento republicano” no conceito de cidadã de Wollstonecraft, mas ainda analisa a sua teoria como inspirada fundamentalmente no protestantismo (TAYLOR, 2003, p. 219). Pettit, apesar de incluir Wollstonecraft na tradição republicana, não analisa a sua teoria de forma sistemática (PETTIT, 1997). Essa análise é necessária, porém, uma vez que a defesa de um conceito republicano de liberdade é central para a teoria desenvolvida por Wollstonecraft e, simultaneamente, o seu feminismo realiza contribuições e desafios para o republicanismo de seu tempo.
Voltemos, portanto, à teoria da liberdade de Wollstonecraft. A análise sobre esse conceito está baseada em três questões principais. Em primeiro lugar, o que a liberdade significa para Wollstonecraft? Em segundo lugar, sob quais condições ou circunstâncias a liberdade é importante? Por fim, qual o papel desempenhado pelo conceito de liberdade na teoria desenvolvida por Wollstonecraft? (HALLDENIUS, 2015, p. 19).
No que diz respeito à primeira questão, o primeiro aspecto que merece atenção é que o conceito de “liberdade como independência” de Wollstonecraft possui dois componentes distintos. Um componente da liberdade é a independência em relação aos outros (componente externo) e o outro componente é a independência da própria mente (componente interno). Como destacado por Halldenius, esses componentes são analiticamente distintos, mas fortemente (ainda que assimetricamente) dependentes um do outro.
Em relação aos componentes da liberdade, o externo está baseado na ideia de que, para serem livres, as pessoas precisam ser independentes em relação às outras nas relações sociais que compartilham entre si. A análise da sociedade desenvolvida por Wollstonecraft gira em torno da dinâmica opressiva da relação entre o “forte” e o “fraco”. Ela observa uma série de relações sociais que possuem essa relação de dependência, as quais degradam tanto o mais fraco quanto o mais forte, em diversos de seus trabalhos. Em Reivindicação dos direitos da mulher, ela se refere à situação das mulheres no casamento, assim como nas relações políticas. Em A revolução francesa, ela descreve as condições dos desprivilegiados na França. Em Uma reivindicação dos direitos dos homens, ela também analisa a situação de opressão e dependência da classe trabalhadora em relação aos ricos e poderosos. Neste sentido, as mulheres e os pobres, segundo Wollstonecraft, estão submetidos a um sistema opressivo que mina as suas liberdades, tornando-os dependentes de seus mestres. Já o segundo componente da liberdade estabelece que, além da relação estabelecida com os demais na sociedade, uma pessoa livre também possui uma independência interior, “o estado em que uma pessoa confia em seu próprio julgamento e não valoriza outra autoridade além daquela que sua própria razão sanciona” (Ibid., p. 25).
A liberdade possui, portanto, esses dois componentes. Ela é um estado de independência externa, nas relações sociais estabelecidas com os demais, mas também um estado de independência interna, de desenvolvimento da própria capacidade de julgamento. Como mencionado anteriormente, esses dois elementos estão relacionados entre si. A independência interna depende, em grande medida, da independência externa. Como destacado por Halldenius, a relação não é lógica, mas psicológica e moral (Ibid., p. 26). Na medida em que uma pessoa se encontra submetida à vontade de outra, ela perde a sua capacidade de julgamento próprio. Uma pessoa em uma situação desse tipo se submeterá à vontade daquele que o comanda, tanto porque isso é o mais racional a se fazer, tendo em vista à própria preservação, quanto porque gradativamente uma pessoa nessa situação se acostumará a obedecer e a considerar seus julgamentos como indignos de consideração.
É claro que Wollstonecraft não está sustentando ser impossível que uma pessoa sujeita à dependência externa atinja a independência interna por meio de diversos mecanismos psicológicos, mas ainda assim essa pessoa não seria livre. A liberdade, para Wollstonecraft, não é, apenas, um estado interno da mente. Estar submetido à vontade de outra pessoa já é uma circunstância que, em si, impede que uma pessoa seja moralmente livre.
Em relação à segunda questão que nos propomos a analisar, o objetivo é questionar: “o que devemos presumir para que faça sentido perguntar se uma pessoa é livre ou não, independente ou não?” (Ibid., p. 27). É importante observar que o conceito de liberdade republicana é dependente das instituições, na medida em que ser livre envolve possuir determinado status que só tem sentido quando essas instituições são consideradas. Para Wollstonecraft, porém, essas instituições não se restringem às leis (instituições formais), mas envolvem também os costumes sociais e as relações morais estabelecidas pelas pessoas (instituições informais). A dominação não é exercida apenas no âmbito formal, mas se distribui por toda a sociedade. A independência, neste sentido, é tanto um fenômeno social – estabelecer relações sociais como uma pessoa livre com outras pessoas com esse mesmo status – quanto um fenômeno moral – pois ser livre é ser reconhecido como moralmente igual em relação aos demais.
Portanto, a questão da liberdade ou da falta dela só se aplica ao observarmos qual é o contexto no qual determinada pessoa está inserida. A liberdade “é uma posição moral, uma interdependência igual, inerentemente social e amparada por uma moralidade substantiva de igualdade de influência mútua entre todas as pessoas que possuem a capacidade para a razão” (Ibid., p. 30).
Por fim, a última questão diz respeito ao papel desempenhado por esse conceito de liberdade na teoria desenvolvida por Wollstonecraft. O principal aspecto a ser destacado nesse sentido é a liberdade ser necessária para o desenvolvimento da virtude, um valor caro para Wollstonecraft. Uma pessoa que não possui liberdade, ou seja, que está submetida ao arbítrio de outra, será incapaz de agir por meio de qualquer princípio que não seja a satisfação pessoal e as emoções mais básicas. Esse tipo de situação inibe o desenvolvimento da razão e, consequentemente, da virtude, fazendo com que pessoas não livres sejam escravas de suas paixões. É impossível haver o desenvolvimento da virtude por parte de escravos.
Meu objetivo neste texto foi analisar a teoria da liberdade desenvolvida por Wollstonecraft. Em torno das três questões que guiaram essa análise, alguns pontos merecem destaque. Em primeiro lugar, vimos que ela defende uma concepção republicana de liberdade composta de dois elementos: liberdade externa nas relações sociais e liberdade interna por meio do desenvolvimento das próprias capacidades de julgamento. Além disso, observamos que Wollstonecraft não considera que a liberdade assim compreendida está relacionada apenas à esfera política, como os republicanos de seu tempo. A liberdade exige que se estabeleçam relações sociais justas e que as pessoas se relacionem como moralmente iguais. Esses componentes são importantes, uma vez que as mulheres não estão submetidas à dominação apenas na esfera pública, mas também na esfera privada, principalmente em seus lares, por parte de seus maridos. Por fim, Wollstonecraft sustenta que a liberdade é necessária para o desenvolvimento da virtude. Pessoas que se encontram em relações de dominação são escravas de suas paixões e da satisfação de seus interesses imediatos. Esse é o caso da relação estabelecida entre homens e mulheres, na qual não é legítimo esperar que haja o desenvolvimento da virtude.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
HALLDENIUS, L. Mary Wollstonecraft and Feminist Republicanism: Independence, Rights and the Experience of Unfreedom. Nova Iorque: Routledge, 2015.
PETTIT, P. Republicanism: A Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press, 1997.
SAPIRO, V. A Vindication of Political Virtue: The Political Theory of Mary Wollstonecraft. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
SKINNER, Q. “Freedom as the Absence of Arbitrary Power”. In: (eds.) LABORDE, C.; MAYNOR, J. Republicanism and Political Theory. Oxford: Blackwell, 2008.
TAYLOR, B. Mary Wollstonecraft and the Feminist Imagination. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
WOLLSTONECRAFT, M. Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Boitempo, 2016.
[1] Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail para contato: gabriel.ggarcia87@gmail.com.
[2] Todas as traduções são de minha responsabilidade.