Matheus Botelho[1]
Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu na Europa com o presidente francês Emmanuel Macron para discutir a conhecida crise venezuelana. A reunião aconteceu no dia 17 de julho e contou também com a presença da vice-presidente da Venezuela e dois líderes da oposição ao atual governo[2]. Está claro, hoje, para as potências mundiais que a tentativa de impor restrições ao regime no país não obteve sucesso. O governo de Nicolás Maduro continua no poder e com algum grau de apoio por parte dos venezuelanos.
O governo Lula tenta adotar uma nova estratégia diplomática para resolver os impasses políticos na Venezuela, que tem uma das maiores reservas mundiais de petróleo. Diferentemente do governo de Jair Bolsonaro, o novo governo tenta estabelecer um canal de diálogo entre os atores políticos venezuelanos e parte das potências mundiais, nesse caso a França.
Ao ser questionado pela mídia sobre o assunto, Lula ressalta a importância do princípio da autodeterminação dos povos ao referir-se ao caso da Venezuela. De acordo com sua perspectiva, é primordial que se respeite a soberania e a capacidade de decisão do povo venezuelano em relação aos rumos de seu país. Esta posição enfatiza a relevância de permitir que os cidadãos da Venezuela exerçam livremente seu direito de participação política, garantindo que questões internas sejam resolvidas de acordo com os mecanismos democráticos e a vontade popular. O que me pergunto é: em que medida, partindo do pressuposto de que a Venezuela vive em um regime ditatorial, os cidadãos têm a capacidade de se mobilizar para alterar as estruturas do Estado e impor arranjos institucionais mais democráticos no país?
Nesse contexto, a capacidade de mobilização dos cidadãos torna-se uma questão fundamental para compreender a possibilidade de alteração das atuais estruturas do Estado e impor arranjos institucionais mais democráticos. Para trazer clareza a essa questão, exploraremos as considerações do cientista político Russel Dalton, que analisa como os cidadãos exercem a participação política em suas diferentes formas e em contextos diversos. Por meio dessa análise, podemos compreender como o fator educação e a capacidade de engajamento político dos cidadãos podem desempenhar função crucial na transformação do cenário político venezuelano.
Os Custos para a Transição
Dalton (2014) defende o conhecimento minimamente esclarecido por parte dos eleitores para que façam escolhas públicas de melhor qualidade, entendendo as opções disponíveis, bem como para poder influir nas ações de seus representantes. Ou seja, para participar, por exemplo, de escolhas públicas de alta complexidade e para essa escolha ocorrer da melhor forma, é preciso que os cidadãos tenham habilidades cognitivas o suficiente para compreender as variáveis dessa escolha, bem como as implicações de certas decisões.
O autor do livro Citzen Politics considera ainda que os diferentes modos de participação implicam em diferentes graus influência sobre a decisão final nos processos políticos, também implicam em diferentes graus de conflito, esforço ou cooperação entre os envolvidos. O caso do voto, que tem baixo grau de conflito e exige pouco esforço dos eleitores, se enquadraria neste último. No entanto, a participação em atividades comunitárias, uma outra modalidade de participação, implica, por vezes, em altos níveis de conflito e requer igualmente um elevado grau de cooperação entre os atores (DALTON, 2014, p. 39).
Ora, as chamadas democracias industriais parecem convergir para o óbvio: a passagem de um regime autoritário para uma democracia exige tempo e negociações. É preciso, de acordo com a teoria de Dahl (2014), que os arranjos permitam primeiro a inserção de diversos segmentos sociais via participação, além de permitir amplas formas de contestação pública, exigindo ainda do grupo no poder absorver o que Dahl chamou de “custos de tolerância”.
Retornando a Dalton (2014, p. 66), o cientista político nos diz que a escolaridade pode ser uma variável importantíssima a ser considerada ao observar os níveis de participação, embora vejamos algumas contradições nesse postulado nos últimos anos. Dalton ressalta que há uma correlação positiva entre os níveis de escolaridade e a participação política. Relata ainda que alguns estudos mostram que pessoas com níveis mais altos de educação tendem a ser mais ativas politicamente do que aquelas com níveis mais baixos de educação. Destaca que os níveis de educação podem aumentar a amplitude dos interesses políticos dos cidadãos, mesmo que não aumente o nível geral de conhecimento político, ou seja, o nível de esclarecimento sobre as decisões públicas não é melhor entre esse público, ou seja, embora haja maiores taxas de participação entre esse público, não há necessariamente maior sofisticação e compreensão adequada dos problemas públicos em detrimento de eleitores com menores taxas de escolaridade.
Embora suas considerações abordem apenas as democracias consolidadas, o autor argumenta que, em geral, os eleitores com níveis de escolaridade elevados são mais propensos ao comparecimento eleitoral do que aqueles com níveis educacionais mais baixos. O autor ilustra a questão ao demonstrar que nos Estados Unidos, os eleitores com níveis mais altos de educação são mais propensos a votar do que aqueles com níveis mais baixos de educação. Esse pressuposto não se aplica apenas ao voto, mas também para todas as outras formas de participação política, como as atividades comunitárias ou contato direto com políticos.
Isso ocorre porque a educação pode fornecer aos eleitores as habilidades e recursos necessários para se envolver em formas mais sofisticadas de participação política, como ativismo e contato direto com políticos. Por exemplo, eleitores com níveis educacionais mais altos podem ter mais facilidade em entender questões políticas complexas e em avaliar as informações sobre candidatos e questões em votação. Eles também podem ter mais recursos, como tempo e dinheiro, para se envolver em atividades políticas, como campanhas e grupos de interesse. Por outro lado, eleitores com níveis educacionais mais baixos podem ter menos habilidades e recursos para se envolver em formas mais sofisticadas de participação política. No entanto, eles ainda podem ter a capacidade de votar e participar de outras formas mais simples de participação política.
Dalton sugere ainda que diferentes formas de participação política exigem diferentes níveis de habilidade do eleitor. Por exemplo, a votação exige que o eleitor tenha a capacidade de ler e entender as informações sobre os candidatos e as questões em votação (2014, p. 26). Já o contato direto com políticos pode exigir habilidades de comunicação e negociação (2014, p. 39-40).
Em resumo, os níveis de escolaridade podem afetar a disposição e a capacidade dos eleitores de se envolver em diferentes formas de participação política, e diferentes formas de participação política exigem diferentes níveis de habilidade do eleitor.
O Papel Decisivo dos Níveis de Escolaridade na Construção de uma Democracia Participativa
A relação entre educação e política tem sido objeto de análises e debates contínuos em diversos contextos na Ciência Política. A educação desempenha um papel crucial no empoderamento dos cidadãos, fornecendo-lhes ferramentas intelectuais e habilidades críticas para compreender as complexidades do cenário político e se engajar em processos democráticos de maneira informada e mais ativa.
Ao analisar os maiores níveis de escolaridade na Venezuela, apesar de seu regime ditatorial, em comparação com as menores taxas de escolarização no Brasil, onde a democracia está estabelecida e as instituições consolidadas, buscamos compreender como a educação pode impactar a participação e influenciar a dinâmica política em diferentes contextos. Esse contraste entre os dois países vizinhos nos permite explorar como a educação pode configurar a nova realidade política da Venezuela.
Ao explorar a relação entre níveis de escolaridade e a dinâmica política em cenários tão diversos, aspiramos assimilar como a educação pode ser um fator determinante na formação de cidadãos engajado e esclarecidos, independentemente das circunstâncias políticas em que se encontram. (ALMOND e VERBA, 2015).
Sobre isso, importante considerarmos os dados apresentados pelo Latinobarômetro de 2020, que indica níveis educacionais maiores entre venezuelanos do que brasileiros:
Fonte: Latinobarômetro 2020.
No survey realizado em 2020, observa-se uma considerável disparidade nos níveis educacionais entre venezuelanos e brasileiros. Nota-se que a proporção de cidadãos com formação no ensino superior é quase 10% maior na Venezuela, representando 22% dos seus cidadãos em comparação com 12,7% dos brasileiros. Além disso, os resultados nos revelam uma taxa inferior de analfabetismo na Venezuela em relação ao Brasil.
Dalton (2014, p.66) discute como o aumento dos níveis educacionais pode reforçar a amplitude dos interesses políticos dos cidadãos, mesmo que não aumente necessariamente o nível geral de conhecimento político ou a capacidade de avaliar questões políticas complexas.
Se os níveis educacionais tendem a aumentar os interesses políticos dos cidadãos, então a redemocratização venezuelana tende a ter mais sucesso ao permitir maior grau de contestação pública e inserção de novos arranjos participativos. Conforme nos indicam os dados do barômetro, as taxas de escolarização em nível superior, médio e técnico são maiores na Venezuela do que no Brasil, que, por sua vez, tem uma altíssima taxa de educação básica incompleta e maior nível de analfabetismo se comparado com a Venezuela.
A tentativa de redemocratizar a Venezuela certamente contará com algumas contradições em detrimento ao contexto global, uma vez que as chamadas democracias consolidadas hoje passam por crises e enfrentam o que Dalton (2014) chama de “paradoxos de participação”, que nada mais é do que uma queda dos níveis de participação do eleitor no cotidiano político. Ou seja, países que têm de lidar com esses impasses – que tornam incerto o futuro do regime democrático –, são aqueles que tentam mediar uma negociação para, de uma vez por todas, restabelecer a democracia na Venezuela, ou ao menos estabelecer um regime muito semelhante àquele existente nos países industrializados.
Se por um lado, a participação é tida como um elemento fundamental das democracias, permitindo que os cidadãos expressem suas posições e influenciem as políticas públicas, por outro, alguns argumentam que a participação pode ser ineficaz, pois o impacto de um único indivíduo é frequentemente diluído em meio a muitos outros cidadãos. Além disso, a participação pode ser desigualmente distribuída, com alguns grupos tendo mais acesso e influência do que outros, uma vez que algumas formas de participação podem ser mais eficazes que outras (DALTON, 2014, p. 64).
Diante do cenário político complexo que envolve a crise política e econômica na Venezuela, torna-se evidente a importância da busca por novas estratégias diplomáticas, sobretudo para o Brasil, que no governo Lula busca um protagonismo como liderança regional, e do reconhecimento da relevância da educação como fator decisivo nesse processo. Enquanto as democracias consolidadas enfrentam seus próprios desafios internos, é essencial que os esforços para a democracia na Venezuela sejam orientados pela compreensão de que a participação dos cidadãos, a contestação pública e a busca por arranjos institucionais inclusivos dos diversos segmentos sociais do país são fundamentais para o êxito da transição democrática.
As reflexões de Russell Dalton sobre a influência da educação na participação política destacam a importância de eleitores mais instruídos, capazes de engajar-se em formas mais sofisticadas de participação, como ativismo e contato direto com políticos. Nesse contexto, os níveis educacionais superiores dos cidadãos venezuelanos, em comparação com os brasileiros, podem ser um fator de estímulo para ampliar os interesses políticos e, por consequência, impulsionar uma redemocratização mais rápida.
Enquanto a Venezuela enfrenta desafios decorrentes de sua história política recente, é crucial que os esforços em direção à democracia sejam permeados pelo diálogo, pela cooperação e um entendimento de que deve ser preservado o princípio da autodeterminação dos povos. O estabelecimento de canais de comunicação e negociação entre os atores políticos venezuelanos e as potências mundiais, como exemplificado acima pelo encontro entre os presidentes Lula e Macron, representa um passo importante para a construção de soluções inclusivas e democráticas.
Contudo, é importante reconhecer que a transição de um regime autoritário para um regime democrático dotado de direitos e garantias a todo e qualquer cidadão é um processo complexo, que exige tempo e persistência, sobretudo diplomacia. Nesse sentido, a busca por um regime mais democrático na Venezuela deve incorporar a participação da sociedade civil e o estímulo à contestação pública como pilares para uma transformação sólida e duradoura.
Desse modo, a redemocratização do país requer não apenas uma mudança de liderança política simplesmente, mas também uma profunda reflexão sobre a necessidade de criar espaços de participação e inclusão política, proporcionando que os cidadãos exerçam seu papel ativo na tomada de decisões públicas e na construção de um futuro democrático. A educação desempenha um papel fundamental nesse contexto, ao fornecer às pessoas habilidades intelectuais para compreender questões herméticas e capacidades para influir nas ações de seus representantes.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
ALMOND, Gabriel Abraham; VERBA, Sidney. The civic culture: Political attitudes and democracy in five nations. Princeton university press, 2015.
DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp, 2014.
DALTON, Russel, J. Dalton, Citizen Politics. 6 ed. A. Los Angeles, 2014.
NORRIS, Pippa. Democratic deficit: critical citizens revisited. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
SALVIANO, Murilo. Venezuela: declaração de reunião com Lula e Macron prevê ‘acompanhamento internacional’ da eleição e suspensão de sanções. G1. Publicado em 18 de julho de 2023. Acesso em: 19 de julho de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/07/18/venezuela-declaracao-de-reuniao-com-lula-e-macron-preve-acompanhamento-internacional-da-eleicao-e-levantamento-de-sancoes.ghtml.
[1] Mestre e Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos (PPGPol/UFSCar). Pesquisador do Núcleo de Estudos em Sociologia Econômica e das Finanças.
[2] As conversas também foram intermediadas pelos presidentes Gustavo Petro, da Colômbia, e Alberto Fernández, da Argentina.
Fonte Imagética: Venezuelans, once again, cried out for freedom, respect for human rights and democracy in their country, during a congregation held in Florida, fev 2019. Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Venezuelans_strike_for_democracy_in_Florida.jpg>. Acesso em 26 jul 2023.