Bruna da Penha de Mendonça Coelho[1]
O artigo “Materialismo histórico e dialético: Entre aproximações e tensões”, publicado na revista Lua Nova em 2023, tem como objetivo apresentar os pressupostos do materialismo histórico e dialético na obra marxiana, compreendendo esses pressupostos como constitutivos de uma postura investigativa específica perante a realidade social. Isto é, parte-se de uma abordagem que, longe de dogmatizar essa obra e apreendê-la a partir de pressupostos estanques, trata de pensá-la em sua dinamicidade e em suas chaves de interpretação das relações sociais. Para isso, o artigo explora o tema por meio de eixos temáticos da elaboração teórica marxiana, além de recobrar a atualidade dos chamados clássicos da sociologia e os possíveis pontos de contato e tensão entre essas abordagens.
Nessa linha, o artigo explora, em primeiro lugar, os pressupostos do materialismo, entendido como forma de investigação da realidade que compreende as relações sociais concretas como base primeira da análise sobre essa realidade. Só é possível chegar à abstração no plano do pensamento, e fazê-lo sem recair em idealismos, quando se parte da materialidade das relações sociais – para depois reconstituí-las em termos de teorização. Mas se trata de um materialismo que, ao não se esgotar em si, demanda que essa análise seja, ao mesmo tempo, histórica e dialética. Histórica porque situada no bojo da processualidade histórica, não sendo, portanto, natural ou imodificável; e dialética porque não é uma realidade fixa, mas, sim, dinâmica, em permanente movimento e permeada por contradições.
Nos termos de Marx e Engels, em “A ideologia alemã”: “os pressupostos de que partimos não são pressupostos arbitrários, dogmas, mas pressupostos reais, de que só se pode abstrair na imaginação” (Marx, Engels, 2007, p. 86). Isto é, “são os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação” (Marx, Engels, 2007, p. 86). Esse ponto de partida se coaduna com a ideia de práxis, central ao marxismo, e que pressupõe a completa conexão entre atividade teórica e atividade prática. Como observa Marx nas “Teses sobre Feuerbach”(1845), o problema do que considerava um “materialismo vulgar” era, aproximando-se do idealismo, tomar a realidade como um objeto de mera observação externa, sem entendê-la como práxis ou atividade humana sensível.
Partindo dessas observações iniciais, a escrita do artigo se debruça sobre as formas como o materialismo histórico e dialético permeia eixos temáticos centrais da obra marxiana, tais como: (1) a crítica da economia política burguesa e os desdobramentos da teoria do valor; (2) os pressupostos históricos do surgimento do capitalismo; (3) os contornos do processo revolucionário de superação do capitalismo e a luta de classes. Esses planos não são analisados de forma cronológica ou estanque entre si, mas, sim, tendo como base a percepção de que se trata de eixos absolutamente imbricados (a divisão, portanto, se dá apenas no plano organizativo, para permitir a sistematização dos argumentos ao longo do artigo).
Quanto ao primeiro desses eixos, o artigo aporta as contribuições da introdução da “Crítica da Economia Política”e das duas primeiras seções do Livro I de “O Capital”. Nos termos de Marx, “nosso tema é, em primeiro lugar, a produção material. Como os indivíduos produzem em sociedade, a produção de indivíduos, socialmente determinada, é, naturalmente, o ponto de partida” (Marx, 2008, p. 237). A economia burguesa, em sua compreensão, partiria, ao revés, de categorias genéricas como Estado, nação ou população. A partir dessas categorias, ela extrairia “relações gerais abstratas que são determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor” (Marx, 2008, p. 237). A crítica à economia clássica passa pela reivindicação de um ponto de partida materialista (isto é, pela compreensão de que é preciso entender as bases concretas de como a sociedade produz e reproduz as condições de vida) e histórico (ao pensar a especificidade histórica da autovalorização do capital por meio da transfiguração da força de trabalho em mercadoria). Um ponto de partida que é, igualmente, dialético, ao refletir sobre a dinâmica desse processo e sobre as suas contradições. Elementos como produção e circulação, valor de uso e valor de troca, trabalho abstrato e trabalho concreto, são pensados como dimensões de um mesmo fenômeno – e não como fenômenos externos e dicotômicos.
Na sequência, o artigo passa pela questão de como o materialismo histórico e dialético permeia as análises sobre os pressupostos históricos do surgimento do modo de produção capitalista – com base, sobretudo, na obra “Formações econômicas pré-capitalistas” e no capítulo da “assim chamada acumulação primitiva” do Livro I de “O Capital”. Marx questiona a interpretação da economia burguesa sobre esses pressupostos, uma vez que essa interpretação apreende a gênese do capitalismo de forma idealista e a-histórica, como se fosse o produto de condições naturais. Isto é, uma explicação que escamoteia a expropriação dos meios de vida e de trabalho: “o que tem de ser explicado é a separação entre essas condições inorgânicas da existência humana e a existência ativa, uma separação somente completada, plenamente, na relação entre o trabalho-assalariado e o capital” (Marx, 1985, p. 82).
Por fim, quanto à temática da luta de classes e do processo revolucionário de superação do capitalismo, o texto toma como base os escritos do “Manifesto Comunista” e de “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”. A percepção materialista, histórica e dialética desse processo leva à compreensão de que o chamamento político à ação é conectado à teorização sobre as contradições e limites da sociedade capitalista. Se “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes” (Marx, Engels, 2005, p. 40), é apenas na práxis coletiva que se pode pensar sobre a dialeticidade do movimento histórico das relações sociais materiais.
Na segunda parte do artigo, por sua vez, são recobrados os aportes teóricos de Durkheim e Weber, com o objetivo de refletir sobre possíveis pontos de aproximação e tensão entre suas formulações teóricas e contribuições metodológicas, de um lado, e, de outro, os pressupostos do materialismo histórico e dialético. Essa comparação é apresentada a partir de duas frentes de análise: (1) as implicações sobre as formas de compreensão acerca das ordens valorativas de precedência entre indivíduo e sociedade; (2) a problemática das pré-concepções de mundo dos pesquisadores e a percepção acerca das relações entre saber científico e ação política.
Antes de adentrar nesses temas de forma mais específica, o artigo se debruça, ainda, sobre considerações a respeito da atualidade dos assim chamados clássicos da sociologia. Em um primeiro momento, argumenta-se sobre a própria chave de pretensão explicativa dessas obras, que não se pretendiam restritas a configurações histórico-geográficas estanques. Em uma segunda linha de argumentação, diretamente relacionada à primeira, passa-se pela caracterização da proposta investigativa das ciências sociais, baseada em esforços de convencimento e no questionamento de uma compreensão estanque da realidade social.
Quanto à primeira frente de análise comparativa dos clássicos, relativa às percepções acerca das relações entre indivíduo e sociedade, o artigo rememora, inicialmente, a afirmação de Marx e Engels de que são os indivíduos reais e suas condições materiais de vida que fornecem a base e os pressupostos de sua análise (Marx, Engels, 2007, p. 86). É possível afirmar que, na compreensão do materialismo histórico e dialético, o indivíduo só se concebe como tal enquanto ser social. Em outras palavras, são os seres sociais (Marx, 2008) que fornecem a base de investigação, por meio da forma como produzem e reproduzem, socialmente, as condições e possibilidades materiais de vida. Categorias como mercadoria, trabalho e valor só podem ser bem compreendidas, segundo essa ótica, em sua dimensão social e relacional, e não como fruto de escolhas individuais: “como a economia política ama robinsonadas, lancemos um olhar sobre Robinson em sua ilha” (Marx, 2017, p. 151).
Em Durkheim, desde As Regras do Método Sociológico, os assim chamados fatos sociais são apresentados como “toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais” (Marx, Engels, 2007, p. 13, grifo não presente no original). Isto é, a sociologia, como projeto científico, deveria se pautar na precedência axiológica da sociedade sobre os indivíduos. Apesar das complexificações que essa formulação-base sofre ao longo da obra durkheimiana, é possível afirmar que esse pressuposto não é posto em xeque. Por sua vez, as relações entre indivíduo e sociedade aparecem, em Weber, de forma ambivalente. A obra weberiana parte da compreensão de que os indivíduos compartilham horizontes culturais que condicionam suas formulações de sentido e sua orientação de ação. E é essa orientação de ação, pautada também em valores e intencionalidades, que compõe os processos histórico-sociais.
Por fim, com relação ao segundo eixo comparativo entre os clássicos, para pensar as possíveis aproximações e tensões das formulações durkheimianas e weberianas com relação ao materialismo histórico e dialético, o artigo reflete sobre as percepções acerca das implicações entre teorização e ação política. Em Marx, como já visto, elaboração teórica e ação política coletiva de transformação da realidade não são senão faces de um mesmo e único fenômeno. Por essa razão, mesmo em textos de chamamento político mais direto, estão presentes formulações explicativas sobre a realidade – e vice-versa (em textos de orientação mais teórica, o horizonte de superação do capitalismo não deixa de estar presente).
Por sua vez, em Durkheim, a própria conceituação dos fatos sociais pressupõe uma espécie de ruptura entre pré-compreensões dos investigadores sociais, de um lado, e a análise que deve ser desenvolvida. Segundo a primeira regra do método sociológico, os fatos sociais devem ser tidos como objetos externos aos pesquisadores, o que permitiria, segundo essa lógica, que esses últimos se isentassem de suas concepções e juízos de valor (Durkheim, 2007). Em perspectiva diversa, a obra weberiana (sobretudo, em “A objetividade do conhecimento nas Ciências e Políticas Sociais” e “O sentido da neutralidade axiológica nas Ciências Sociológicas e Econômicas”) assume o pressuposto de que o próprio ato de escolha metodológica de um objeto de pesquisa se relaciona com uma tomada de posição valorativa. No entanto, Weber entende que, uma vez realizada essa delimitação, seria possível traçar uma separação entre a posição investigativa e essas pré-compreensões valorativas. Indo além, sustenta que não cabe à ciência orientar a ação política.
Em suma, o artigo se propõe a refletir sobre as implicações dos pressupostos do materialismo histórico e dialético enquanto postura de análise da realidade social, sem apreendê-lo de forma mecânica ou estanque. Para isso, busca refletir sobre como esses pressupostos permeiam dimensões centrais da obra marxiana, além de apontar possíveis pontos de aproximação e de tensão com relação às escolhas metodológicas durkheimianas e weberianas. Com isso, não se intenta qualquer transposição histórico-social dogmatizada, mas, sim, compreender os fundamentos e os contornos da proposta investigativa das ciências sociais enquanto elementos dinâmicos e plurais.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
COELHO, Bruna. 2023. Materialismo histórico e dialético: Entre aproximações e tensões. Lua Nova, São Paulo, 118: 75-100.
DURKHEIM, Émile. 2007. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes.
MARX, Karl. 2008. Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular.
MARX, Karl. 1985. Formações econômicas pré-capitalistas. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
MARX, Karl. 2011.O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo.
MARX, Karl. 2017. O Capital: crítica da economia política. v. 1. 2. ed. São Paulo: Boitempo.
MARX, Karl. 1845. Teses sobre Feuerbach. [S.l.]: [s.n.].
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. 2007. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. 2005. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo.
WEBER, Marx. 2008. Ensaios sobre a teoria das Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo: Centauro.
[1] Professora adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Viçosa. Doutora em Sociologia pelo IESP-UERJ e em Direito pelo PPGD-UERJ. E-mail: brunapmcoelho@gmail.com. Orcid: 0000-0003-4974-1590
Fonte Imagética: Estátua de Marx e Engels em Berlim, Alemanha. Arquivo pessoal da autora (Créditos: Bruna da Penha de Mendonça Coelho). Agradecemos a autora por nos ter cedido o uso da imagem.