Sofia Pieruccetti Gutierrez[1]
No presente ensaio, apresentado em duas partes, pondero em que medida a Procuradoria-Geral da República (PGR) contribuiu para a virada autoritária do neoliberalismo no Brasil. O interesse de pesquisa mais amplo reside nas intersecções entre direito e política no século XXI, considerando dois fenômenos contemporâneos e globais: a recessão democrática que se intensifica a partir da crise financeira de 2008 e a expansão do protagonismo político do aparelho judiciário desde o término da Guerra Fria. Ambos processos políticos tanto refletem a consolidação global do neoliberalismo quanto a aprofundam no nível nacional, pressupondo a autonomia relativa do campo jurídico e do campo político.
Na esteira dos trabalhos de Foucault (2008), Dardot e Laval (2017) e Brown (2019), para além de mera ideologia ou política econômica, o neoliberalismo é concebido em termos de racionalidade política, ou seja, um sistema de práticas localizadas historicamente que estruturam e orientam “não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados” (DARDOT e LAVAL, 2017, p. 15). A noção de racionalidade política é um recurso heurístico útil por conceber a maleabilidade dos elementos objetivos e subjetivos do neoliberalismo, que podem ser recombinados com outros tipos de racionalidades políticas – conservadorismo, nacionalismo, populismo, entre outros -, desde que compatíveis com a economia concorrencial de mercado.
O Brasil possui um histórico bastante particular com a racionalidade política neoliberal, tendo sido o último país da América Latina a internalizá-la efetivamente em práticas governamentais (FILGUEIRAS, 2006). O momento inicial da popularização do neoliberalismo, liderado por Thatcher e Reagan durante as décadas de 1970 e 1980, coincide com a redemocratização no Brasil, marcada por uma forte presença de movimentos sociais. A tensão entre o modelo de república inaugurado pela Constituição Federal de 1988 e políticas de inspiração neoliberal pode ser verificada mais intensamente a partir do século XXI. No que diz respeito à implementação da cartilha de reformas, há mais continuidades que rupturas entre o governo FHC e as administrações petistas, especialmente na “rolagem da dívida pública, que inibe a capacidade de investimento do Estado, e a abertura comercial, que mina a indústria interna” (BOITO, 2017).
Ao mesmo tempo, e talvez de forma contraintuitiva, a formulação de políticas públicas levou adiante pautas progressistas nos governos de Lula e Dilma. O experimento redistributivo brasileiro entre os anos de 2004 e 2014, com a formalização de empregos e a valorização do salário mínimo (KERSTENETZKY, 2017) e o combate ao desmatamento da Amazônia e às mudanças climáticas promovidas por Marina Silva na pasta de Meio Ambiente (KAGEYAMA e DOS SANTOS, 2011), entre outras, alinham-se ao que Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista” (FRASER, 2019), momento histórico no qual a lógica concorrencial econômica coexistiu com políticas afirmativas propostas por correntes liberais de movimentos sociais.
Se considerarmos os governos petistas na chave do “neoliberalismo progressista”, então, o período entre 2014 e 2022 corresponde a um período de desdemocratização e autocratização da comunidade política brasileira. Proponho, assim, a divisão do período em duas partes: a crise do sistema político, de 2014 a 2018, e o governo de Jair Bolsonaro, de 2018 a 2022. Tomo como emprestada a hipótese de “virada autoritária do neoliberalismo”, cuja formulação original de Fraser (2019) sobre o caso estadunidense indica a eleição de Trump como marco da virada no país. A autora assinala a cisão entre o discurso do candidato Trump e as políticas efetivamente levadas a cabo uma vez que ele chega à Presidência.
Segundo a autora, campanha foi marcada por um populismo reacionário, com promessas redistributivas para a classe trabalhadora branca, masculina e cristã, e que o presidente Trump abandona – não avança em controlar Wall Street e nomeia um ex-banqueiro da Goldman Sachs para secretário do Tesouro, não incentiva indústrias nacionais para além da desregulamentação, apresenta uma reforma tributária regressiva (Fraser, 2019). O fator que permanece da campanha e se intensifica é a retórica que humilha e culpabiliza dissidentes e conserva hierarquias injustas e injustificáveis, que Fraser denomina “política reacionária de reconhecimento”. Além dos Estados Unidos, a modalidade autoritária do neoliberalismo ganhou tração mundial a partir da crise financeira de 2008. A particularidade desta vertente reside na escalada na propensão do Estado para empregar a força e os meios legais e extralegais para conter forças sociais de oposição. Assim, a manutenção das políticas neoliberais depende cada vez menos de negociações e concessões políticas e cada vez mais de aparatos judiciais e administrativos (BRUFF, 2014). O espectro de estratégias do neoliberalismo autoritário engloba desde a coerção por meio do policiamento e vigilância até o emprego de mecanismos jurídicos que consolidam relações de poder e desigualdade existentes (TANSEL, 2017).
O sistema judicial brasileiro participou de forma decisiva na crise política e no governo Bolsonaro, as duas fases da virada autoritária do neoliberalismo no Brasil. Especialmente, a cúpula do Ministério Público Federal (MPF) parece ter posição institucional de destaque nesses processos, ao lado do Supremo Tribunal Federal (STF), atuando na disputa dentro do Estado entre a função executora de políticas e a função fiscalizadora da execução, ora em conflito, ora em alinhamento com o governo federal. Desde 2003, quando o MPF assegura a deferência dos governos petistas à lista tríplice, o padrão de trabalho dos membros da instituição muda da defesa de direitos e políticas públicas para o “padrão accountability” do Poder Executivo, atraindo para si grande visibilidade midiática e perante a opinião pública no geral (MARONA e BARBOSA, 2018; VIEGAS, 2022).
No caso da crise política, as forças que encabeçaram a ofensiva contra o governo Dilma somente angariaram o apoio popular que legitimou a deposição a partir da Operação Lava Jato. Embora Sérgio Moro e Deltan Dallagnol sejam as figuras mais famosas associadas à operação, o escopo que a Lava Jato assumiu não pode ser explicado sem a liderança de Rodrigo Janot à frente da PGR. As denúncias realizadas por Janot contra Dilma, Lula e Michel Temer (denunciado duas vezes em pleno exercício de mandato) demonstram a personalização das escolhas de ação institucional, em especial se contrastadas com a postura assumida pela PGR a partir de 2019, com a gestão de Augusto Aras.
A breve exposição que se segue possui duas partes. Nesta primeira, busco situar o fortalecimento das instituições judiciais no contexto da ascensão do neoliberalismo a partir da década de 1990. Na segunda parte, avaliarei algumas ações de Rodrigo Janot na crise política por meio da Operação Lava Jato e de Augusto Aras durante o governo de Jair Bolsonaro, compreendendo o período da virada autoritária entre 2014 e 2022. A menção reiterada de “vetores estrangeiros do neoliberalismo” ao longo do texto não assume tons conspiratórios e nem pretende ser uma explicação totalizante dos eventos mencionados no ensaio. Significa somente reconhecer a influência da circulação internacional de saberes, práticas e discursos nas instituições brasileiras, com o objetivo de romper com a retórica de neutralidade e universalidade do direito para revelar o entrelaçamento do intervencionismo judiciário com a recessão democrática no Brasil.
Neoliberalismo, sistema judicial e Estado brasileiro
As instituições judiciais sofrem modificações profundas a partir da ascensão do neoliberalismo enquanto modo de governo dominante. Na ortodoxia neoliberal, o Estado liberal precisa ser forte para defender a concorrência. Se a produção legislativa e a execução de políticas públicas para garantir direitos sociais são minimizadas, há o correspondente empoderamento do que Pierre Bourdieu (1998) chama de “mão direita do Estado”, encontrada nos setores públicos mais receptivos à racionalidade política neoliberal: finanças, orçamento, controle, policiamento e jurisdição. O uso do aparelho repressivo que visa defender o território contra inimigos externos e internos, a natureza cada vez mais punitiva do sistema penal e da política criminal e a autonomização das instituições judiciais são tendências observadas globalmente e que correspondem à reformulação neoliberal dos Estados.
O fenômeno da expansão nas demandas judiciais já era indicado em 1979 por Michel Foucault enquanto consequência da adoção da lógica concorrencial como princípio organizador da vida pública. Para o autor, a multiplicação das empresas e do empreendedorismo faria crescer exponencialmente as ocasiões de contenciosos e a necessidade de intervenção jurídica. Nesse sentido, há uma relação de causalidade entre a forma-empresa e o intervencionismo jurídico, pois a “sociedade empresarial e sociedade judiciária, sociedade indexada à empresa e sociedade enquadrada por uma multiplicidade de instituições judiciárias são as duas faces de um mesmo fenômeno” (FOUCAULT, 2008, p. 204). Ao garantir o cumprimento dos contratos e a proteção à propriedade privada, a administração estatal dos conflitos representada na jurisdição passa a ser a função estatal mais importante.
Na chave interpretativa da racionalidade política neoliberal, portanto, não causa espanto o fenômeno comumente conhecido como “judicialização da política”. A expressão judicialization of politics foi cunhada por Torbjrn Vallinder e Neal Tate (1995) para retratar a tendência de expansão política do Poder Judiciário no período pós-Guerra Fria. Na Ciência Política estadunidense, a expressão é empregada como um termo guarda-chuva que agrupa vários objetos de análise distintos: o comportamento e preferências políticas de juízes, a juridificação das relações sociais, o escrutínio judicial de prerrogativas do Poder Executivo, a jurisprudência que reconhece direitos não previstos em legislação, entre outros (HIRSCHL, 2008). Não obstante a imprecisão conceitual, o fato de que tantas pesquisas consideram útil as ideias de judicialização da política e politização da justiça parece indicar o esgotamento do modelo liberal clássico do sistema judicial, cuja função primordial era restrita à aplicação da lei e com limitada interferência nas decisões do Poder Executivo e Legislativo. Por outro lado, na prática governamental neoliberal, a menor incidência da ação administrativa geraria um maior campo de intervenção para a ação judiciária (DARDOT e LAVAL, 2017).
Apesar da relevância da jurisdição para a teoria neoliberal, foi apenas na década de 1990, no “Consenso de Washington Aumentado”, que o sistema judicial passou a pautar explicitamente a agenda dos vetores do neoliberalismo. Seguindo com o objetivo de internacionalizar padrões regulatórios da concorrência necessários à liberalização global de mercados, multiplicaram-se iniciativas que visavam tornar o aparelho judiciário um agente facilitador desse processo. Ao fim da primeira década do século XXI, o Banco Mundial (BM) esteve envolvido em mais de 2.500 projetos de reformas judiciais em países do Sul Global (KREVER, 2011). A ideia por trás das diretrizes e medidas propagadas pressupõe uma relação de causalidade entre o desenvolvimento econômico e o “correto” desenho institucional da justiça. O país periférico que garantisse um ambiente favorável aos negócios, principalmente no que tange à proteção da propriedade privada e ao cumprimento de obrigações contratuais, passaria a atrair mais investimentos estrangeiros (CUNHA e ALMEIDA, 2012).
A racionalidade política neoliberal é traduzida localmente de acordo com as especificidades de cada nação, não seguindo um caminho óbvio. O thatcherismo e a retórica de “there’s no such thing as society” que se desenvolviam no Norte não encontraram de imediato uma recepção relevante na política brasileira. No Brasil, o período entre 1974 a 1985 representou uma expansão do engajamento político que havia sido represado durante a Ditadura Militar. Movimentos sociais e sindicais encontraram espaço na Assembleia Constituinte (1986-1987) para fazer valer suas reivindicações via constitucionalização de direitos coletivos e sociais, como a saúde, o trabalho, a cultura, o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
No entanto, seria equivocado presumir uma predominância do viés progressista no texto constitucional originalmente promulgado. Vilhena e Barbosa (2018, p. 376) apontam que o ímpeto transformador da Constituição foi tensionado – e, em última análise, relativizado – por “uma série de cláusulas regressivas, baseadas na forte cultura corporativista e patrimonialista do país e voltadas a concentrar renda e poder por intermédio de uma série de privilégios e interesses de estamentos burocráticos e de setores econômicos”. Dentre os lobbies corporativos mais atuantes, estavam as associações profissionais de magistrados, procuradores e advogados, que também reivindicavam maior poder político e autonomia.
O redesenho das instituições judiciais na Constituição de 1988 mostra o sucesso do projeto político das carreiras jurídicas, que alcançaram um amplo insulamento institucional. Como árbitro dos interesses contraditórios esposados na Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal e o Poder Judiciário de forma mais generalizada aparecem com destaque renovado na redemocratização. Não obstante, a produção da Ciência Política brasileira é unânime em afirmar que a maior novidade institucional da Nova República é o Ministério Público, que logrou em se apresentar como uma “alternativa institucional viável e disponível, naquele momento, para canalizar os novos problemas e conflitos sociais” (MACIEL e KOERNER, 2014, p. 114) e conquistou autonomia política, administrativa e financeira perante os demais poderes republicanos. Tais garantias, assim como a independência funcional, funcionam como uma blindagem contra a interferência de um Poder Executivo considerado atrofiado (SINHORETTO, 2006). A partir de então, o Ministério Público brasileiro se encontra no papel de mediador das relações entre o Estado e os segmentos da sociedade, atuando, ao menos formalmente, em diversas dimensões, como na fiscalização da probidade administrativa e da corrupção; no controle externo das polícias; na defesa legal dos direitos coletivos e difusos relacionados ao meio ambiente, à defesa do consumidor, ao patrimônio e ao interesse público, entre muitos outros.
Após a transição, e principalmente a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002), a racionalidade política neoliberal passou a ser incorporada no âmbito estatal, refletindo a reorientação político-ideológica das organizações internacionais, setores do empresariado e da alta classe média. Ao contrário do que se possa presumir, grande parte dos pilares da racionalidade política neoliberal instalados na política brasileira por FHC foram mantidos nas administrações petistas que comandaram o Executivo federal entre 2003 e 2016. Mesmo considerando as características peculiares do Brasil, como a própria trajetória política petista, vale destacar que a adaptabilidade é característica da dogmática neoliberal que, em regra, apresenta-se enquanto uma prática apartidária passível de ser apropriada por todo o espectro ideológico. Tanto a esquerda quanto a direita mobilizam discursos a respeito da “modernização”, da “eficácia” e das “boas práticas”.
Nesse ponto, Dardot e Laval indicam não ser impossível a combinação do neoliberalismo com o neodesenvolvimentismo, desde que os elementos keynesianos apoiem a prática do governo empresarial, como “a retomada orçamentária temporária, suspensão provisória dos critérios de estabilidade monetária, medidas para conter a especulação dos mercados” (DARDOT e LAVAL, 2017, p. 380). As políticas redistributivas dos governos petistas que necessitavam de um Estado executor, como o Programa Bolsa Família, a valorização do salário mínimo e a regulamentação do mercado de trabalho conviveram com o simultâneo aprofundamento das reformas estruturais que FHC não consegue implementar – como a autonomia do Banco Central (EC 40 de 2003) e reforma da previdência para os servidores públicos (EC 41 de 2003), típicas do Estado incentivador da concorrência.
Reforma do Judiciário na pauta neoliberal
Recapitulando o que sabemos até aqui, temos que: (i) a agenda neoliberal possui um programa político próprio para o sistema judicial, que pautou reformas judiciais ocorridas no Sul Global a partir da década de 1990; (ii) a consolidação do neoliberalismo nos países capitalistas centrais coincide com a reabertura política e no Brasil, e a norma constitucional aprovada nesse contexto promove um redesenho das instituições judiciais; e (iii) as reformas estruturais promovidas pelo BM e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) avançam no governo FHC e se aprofundam nos governos Lula e Dilma. Retomar esse percurso é importante para observar a tramitação e aprovação da Emenda Constitucional n. 45 de 2004, que foi central tanto para continuar o processo de fortalecimento das instituições judiciais iniciado desde a transição democrática e quanto para a consolidação do neoliberalismo como uma das racionalidades políticas dominantes no campo jurídico brasileiro.
As interpretações acerca da Reforma do Judiciário são diversas e, por vezes, aparentemente contraditórias. A variedade aponta para a intensidade da disputa sobre o funcionamento e o governo do sistema judicial. Com a redemocratização e a constitucionalização de direitos, surge a pauta do acesso à justiça, que criticava o hermetismo das instituições judiciais, a reiterada negação de direitos e o entulho legal autoritário da época anterior e, a partir do debate público sobre o novo protagonismo das instituições judiciais, emergem demandas por controle externo e democratização interna (ALMEIDA, 2018, p.227-229). Nessa esteira, nos anos 1990, Hélio Bicudo, deputado federal eleito por São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores, apresentou o Projeto de Emenda Constitucional 96/92 com o objetivo de compatibilizar a organização do sistema judicial ao novo texto democrático da Constituição Federal de 1988.
Ao longo dos treze anos que separaram a proposição do projeto da aprovação da emenda, o conteúdo foi descaracterizado e reformulado de modo a incorporar demandas fundadas no discurso político da racionalidade gerencial, agenda que acabou por prevalecer no texto aprovado (ALMEIDA, 2010). Com a aprovação da reforma, foi iniciada a institucionalização do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), estruturas burocráticas criadas pela EC 45/04 que alteraram profundamente a organização do sistema judicial. Do ponto de vista de especialistas, os órgãos constituem uma “inovação com extraordinária potencialidade de conduzir mudanças” (SADEK, 2010, p. 16).
O predomínio de uma agenda racionalizadora no texto aprovado, com foco no aperfeiçoamento da gestão e da eficiência, teve como um dos resultados a concentração de poderes em torno dos recém-criados órgãos de controle (ALMEIDA, 2010; SANTOS, 2014). Desde então, o papel diretivo do CNJ e do CNMP engloba a definição de parâmetros para o funcionamento de tribunais e promotorias, o julgamento de demandas envolvendo os órgãos e agentes do Poder Judiciário e do Ministério Público, a fiscalização financeira dessas instituições, entre outras funções de controle, planejamento e orientação. Por possuírem o poder de submeter as instâncias inferiores a um controle centralizado, os órgãos passaram a ocupar o alto escalão da política judicial nacional. Com a criação dos conselhos superiores, forma-se então uma nova hierarquia administrativa, paralela à hierarquia jurisprudencial que antes da Reforma já articulava profissionais de primeira instância, tribunais de segunda instância e tribunais superiores.
Na produção acadêmica recente, pode-se observar uma tensão entre a visão neoliberal das instituições judiciais e o corporativismo presente na magistratura e nas procuradorias brasileiras. O sentido neoliberal da política judicial, de acordo com a doutrina do Rule of Law propagada por agências multilaterais, imprime o discurso da gestão pública racional, da simplificação e da eficiência como prioridade para as instituições envolvidas na justiça estatal. Já um sentido corporativista privilegiaria os agentes superiores das instituições do sistema judicial nacional, em oposição ao controle e à participação cidadã nas estruturas internas dos órgãos estatais. Na disputa pelo sentido da política judicial, há uma heterogeneidade entre agentes do campo jurídico. Sendo assim, a incorporação da doutrina do Rule of Law envolve, além de agentes internacionais, agentes nacionais de múltiplas profissões, ramos institucionais e níveis hierárquicos distintos. Ciente das tensões e recombinações possíveis da racionalidade política neoliberal, buscarei, na segunda parte deste ensaio, situar as gestões de Rodrigo Janot e de Augusto Aras na PGR tendo em vista suas contribuições para os processos de autocratização e desdemocratização da comunidade política brasileira.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
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[1] Mestranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista CAPES, membro do Laboratório de Estudos sobre Política e Criminologia (Polcrim) e da equipe editorial do Boletim Lua Nova. E-mail: sofiapieruccettigutierrez@gmail.com.
Fonte Imagética: PGR – Procuradoria Geral da República (Wikimedia Commons). Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Webysther_20180212174501_-_PGR_-_Procuradoria_Geral_da_Rep%C3%BAblica.jpg>. Acesso em 14 ago 2023.